PRÓLOGO
Na minha adolescência sonhei diversas vezes com uma antiga paisagem vicentina. Sonho vivo, no qual perambulava por esses lugares, com o coração apertado, porém bastante familiarizado com tudo que via ao meu redor. Era uma cidade silenciosa, muito verde, sem barulho de automóveis ou de multidões. Nem os bondes eram barulhentos e também não havia muitos cavalos circulando. Tudo era muito perto e tranquilo, assim como registraram os pincéis de Benedito Calixto nas telas ou em diversas fotografias onde aparecem o Morro dos Barbosas, a rua do Colégio e alguns velhos edifícios da Vila Afonsina (hoje todos desaparecidos), o campo onde seria criada a Praça 22 de Janeiro e finalmente a Biquinha de Anchieta. Interessante que nesse primeiro período no qual morei em São Vicente, de 1974 a 1985, não frequentava esses lugares. Fui conhecer a Biquinha quase meio século depois, mesmo morando há apenas algumas quadras dali. Via as fotos e cartões postais, mas não me interessava. As telas do Calixto só conheci em 2020, há poucos meses, quando escrevia essas histórias. Isso me fez lembrar outra curiosidade. No início dos anos 1980, quando recebemos a visita de amigos argentinos e uruguaios, andando pelas ruas próximas à orla, uma das visitantes nos disse que minha mãe já havia vivido em São Vicente em outra época e que andava nesses mesmos lugares os quais estavam visitando. Minha mãe não se lembra de nada. Talvez tenha sonhado muitas vezes, como eu, mas achava que era apenas sonho.
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ALVORADA
SOU DO TEMPO em que São Vicente era Pindorama e só havia índios carijós habitando essa região. Eu e Poty conhecíamos cada pedaço da ilha e também as terras da Serra, onde mora Tibiriba, a nossa amiga de caminhadas e aventuras da imaginação. Entre os índios, como acontece em toda a raça humana, imaginar é construir o que vai acontecer. O que passou fica na lembrança e deve servir sempre de alerta para o que está acontecendo. Mas o que vai acontecer é pura imaginação. Lembro de tudo o que vivi em São Vicente, desde quando não existia uma só casa de pedras e tijolos. Vi muitas chegadas e partidas e tenho lembrança de todas as pessoas que, como eu, aqui viveram e reviveram suas fantasias na infância, as ilusões na juventude, as desilusões adultas e a resignação da velhice.
Quem vive em São Vicente, por mínimo que seja o tempo da existência, tem seu destino traçado por orientadores de Alvorada Nova, um mundo paralelo, das causas, que guarda todas as nossas memórias e define o tipo de experiência teremos que realizar no mundo fenomenal dos efeitos. Alvorada Nova tem portais de acesso e retorno em vários pontos da região, desde Peruíbe até a Bertioga. Foi imaginada e erigida por europeus, indígenas e africanos que já ultrapassaram barreiras dos sentidos físicos e vivem livres e senhores de si mesmos. É ao mesmo tempo um Céu, um Pindorama e um Kalunga. Eles pensam em conjunto e as coisas ficam prontas e luminosas, sem dificuldades, com as suas mentes limpas e cheias de virtudes. Alvorada Nova também tem uma parte escura, que reflete as mentes sujas e impuras, ainda dominadas instintos e pelas escolhas errôneas, vivendo ali os que têm os corações oprimidos pelos sentimentos ruins e sentem falta da privacidade e das ilusões da carne. Na luz vivem os nossos orientadores, pessoas boas e alegres, como o Padre Vicenzo, as educadoras Anália Franco, Escolástica Rosa e Irmã Dolores, o farmacêutico Cairbar Schutel, o médico e poeta Martins Fontes e muitas outras almas de ciência e empreendimento, conhecidas e desconhecidas de quem está na carne. Na escuridão de Alvorada Nova, nos umbrais, ainda vivem os perdidos na erraticidade, os criminosos, os orgulhosos e presunçosos, os preguiçosos e todos os egoístas e ressentidos, nossos irmãos, de todas as raças, que ainda não conseguem amadurecer o suficiente para voltar à luz depois dos erros e do desperdício do tempo da existência. Eu que o digo, por tudo que vi, tudo que passei e ainda estou passando. Tem também os que vivem nas paragens medianas, do lusco-fusco, gente sem maldade no coração, mas ainda escravos de costumes, crenças e ideias, que aos poucos vão se iluminando. Eu vivo nessa faixa, ora embriagado de luz, ora derrotado pelas paixões. Nos finais de tarde, quando trabalhava em uma escola no Solemar, apareciam por lá os Condutores de Almas vagantes. Eles não podiam ser vistos pelos seres perdidos e estes os conduziam pelo sopro nos ouvidos. Sopravam também nos meus, para que os socorressem.
“Aponte para aquelas nuvens que estão em próximas da montanha e ordene a eles que olhem naquela direção. Digam que eles devem ir para lá... Diga que obedeçam e que se dirijam para a montanha, que é a portão da volta para casa”.
Alguns iam rapidamente desaparecendo nas nuvens. Outros tinham dificuldades, mas depois conseguiam. Nesse portal do Solemar, perto da cidade da Criança e junto à serra, sempre se formam arcos-íris, anunciando a migração de almas dos umbrais para as esferas mais altas.
Tenho nome, mas não posso e não devo revelar porque, apesar da minha idade avançada, desta minha última jornada cronológica, no tempo da consciência, ainda sou criança, sem o domínio da Mente Maior, fruto que ainda não foi ao chão e não caiu em si. Minha bússola diz que ainda não chegou o momento da minha ruptura – para não voltar mais ao mundo fenomenal – e entrar definitivamente no outro lado da Vida, no mundo pleno. Por isso, como a maioria da humanidade, ainda existo, incompleto, oscilante; ora no astral - o mundo dos sentimentos e das emoções-; ora na carne, aprendendo a pensar e criar coisas puras quando habito o éter; e também quando nos corpos sanguíneos, desviando-me das ilusões, lutando para controlar os impulsos e os instintos. Sou Espírito comum e iniciante, mais inclinado aos erros do que nos acertos. Pertenço à uma grande família do ramo tupy, desde a longa caminhada que nos trouxe das terras frias da Ásia para esses lugares quentes do sul do continente americano. As linhas dos nossos destinos foram traçadas há muitos milênios e numa delas houve, em tempos muitos remotos, um cruzamento acidental com as tribos celtas que ocupariam a península ibérica.
Nesse período de contato, de luta entre a força e a harmonia, adquirimos compromissos mútuos que o tempo se encarregaria de ajustar. É nessa família que tenho as raízes e os vínculos mais antigos e na qual posso viver e reviver, sempre que necessário, no recôndito do ventre de mães generosas da nossa raça. Outras vezes, com a permissão e gentileza de outras famílias afins, encontro abrigo no seio de outras etnias que aceitam heroicamente a tarefa de iluminar o meu pobre espírito.
Assim, de tempos em tempos, mergulho na carne, existo por alguns anos, entre o gosto amargo das provas e o gozo dos prazeres. Mas guardo na memória todas as cenas e acontecimentos e conservo delas as experiências que têm valor para a alma. As demais eu esqueço ou então volto ao mundo físico para que se desfaçam em outras provas de dor e longe das tentações.
Poti e Tibiriba, almas amigas, sempre me acompanham nessas idas e vindas à carne, por necessidade e também por amor e vontade de me ajudar. Elas já se purificaram mais do que eu e nem precisam existir mais nessa minha frequência e, mesmo assim, gostam de rever-me nos mesmos cenários, em situações diferentes, só para ver como eu me saio em novas provas; e também para rirmos juntos das minhas trapalhadas.
Um dia não vou ser mais criança. Vou dormir Curumim e acordar no meio da longa noite transformado e maduro, revelando o meu nome verdadeiro, dado a mim quando fui criado por Tupã e que está guardado no coração de Yara. Aí então vou poder pronunciá-lo com a minha própria boca e dizer quem eu sou sem receio e aparências.
Hoje é sábado, 11 de janeiro de 2020 e são 8 horas da manhã.
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O MONSTRO
NESSE INSTANTE minha mente está cheia de recordações. Meus olhos estão olhando para o chão molhado pela chuva de verão e meus ouvidos ouvem os repetidos trovões que anunciam que vai chover o dia inteiro, espantando os turistas que caminham pelo calçadão da praia e os que aproveitavam os últimos minutos de sol deitados sobre a areia.
Os ritmos da natureza ainda são a suprema força que movimenta o planeta. A chuva, o vento e os trovões despertam em mim a vontade de ver o mar e a arrebentação das ondas. É irresistível e faço isso há séculos. Antes tinha muito medo dos raios. Hoje sei que eles ainda caem por perto, mas conto com abrigos dos quiosques ou das marquises dos prédios perto da orla.
Saio de casa e em poucos minutos estou lá olhando o mar. Mais alguns minutos e duas ou três trovoadas são suficientes para eu ver a praia com outros olhos. Não tem calçadão, quiosques, não tem avenida asfaltada e edifícios altos. Não estão lá também os moles de pedras construídos para conter as ressacas, quebrando a mureta e inundando a rua. Ao redor só areia e o jundú rasteiro sobre as ondulações de terra. É a Mahuá, a pequena praia entre o Morro da Biquinha e a Ilha do Mudo, na qual deságuam alguns riachos, cavando sulcos na areia. Do outro lado da baía vejo o Morro do Japuí e parte da floresta do Xixová.
Já fazem duas décadas que o novo século começou e São Vicente está praticamente a mesma desde quando fui morar em São Paulo em 1985. Vejo na internet fotografias antigas da cidade, em diferentes épocas, e percebo que houve poucas mudanças nos pontos mais importantes. Algumas delas são repetitivas e banais, como o os cartões postais. Outras me causam sensações mais profundas, talvez porque registraram momentos, lugares e pessoas que conheci. Essas são emotivas e despertas muitas lembranças. Tenho essa habilidade natural de ler fotografias com o terceiro olho e parece que entro naquela cena registrada e tudo passa a ter três dimensões. Achei que era um fenômeno sobrenatural, mas logo desfiz essa impressão ao ler o livrinho de Boris Cosoy, catedrático do assunto, teórico e prático. O jeito como ele analisa as fotografias são descobertas de diferentes dimensões da mesma imagem. Com ele parece ser fria e racional; comigo acontece de forma temperamental e perturbadora. O mesmo acontece quando passo em algum lugar no qual sou tomado por desequilíbrios, coisa incontrolável, como um transe psíquico ou sonambúlico.
Sigo caminhando e conforme me aproximo do Itararé a paisagem retoma sua aparência de cidade grande e ouço barulho de carros em alta velocidade em direção a Santos. No fim da calçada entro na Praia dos Milionários, que está vazia de banhistas e com apenas alguns trabalhadores ciclistas que cortam caminho para evitar o trânsito da rua 11 de junho. Ali fico um bom tempo apreciando a baía, onde reina uma certa paz, proporcionada pelo silêncio do mar. Tento me recompor desses transes de memória, dos quais já me acostumei e que me deixam até mais senhor de mim mesmo. Antes ficava assustado e com a impressão de que a loucura havia se instalado em minha mente. Mesmo assim fico apreensivo porque, quando isso acontece, algo em seguida surge algo inesperado e só passa quando o coração não fica mais apertado.
Alguns minutos depois ouço alguém chamando repetidamente pelo meu nome. Era Isabela, filha de uma amiga que sempre encontro nesses passeios pela orla. Raramente conversamos e somente trocamos uma rápida saudação de reconhecimento. Dessa vez ela se antecipou e se dirigiu a mim de forma bem diferente. Estava sorridente e eufórica, muito inquieta. Disse que precisava me contar uma coisa. Estranhei, pois ela nunca havia me contado nada. Achei que era alguma fofoca que haviam contado sobre mim e que ela soube através da mãe. Nada disso. Me pegou pelo braço e disse que tivera à noite um sonho muito estranho. Começou a falar e já não estava mais sorrindo. Sua mão segurou mais forte o meu pulso e foi apertando na medida em que a história se desenrolava. Disse que estava na praia e foi surpreendida por uma tempestade. O céu foi ficando escuro, todos foram sumindo das ruas e ela foi ficando perdida e sozinha. Apavorada lembrou que morava por perto e dirigiu-se para o meu apartamento, já em meio ao caos que tomava conta da cidade, com chuva de vento e redemoinhos gigantescos que percorriam as ruas arrancando telhados, revirando carros, quebrado e arrancando vidraças. Já dentro da minha casa percebeu que as coisas haviam piorado com a ventania tirando pedaços dos prédios vizinhos. Os redemoinhos eram tão fortes e densos que forçavam e quebravam as janelas dos apartamentos. Ela tentava falar comigo pelo celular, pois eu não estava em casa; tentou falar com a mãe e com alguns amigos e ninguém atendia. Convenceu-se de que já estavam todos mortos. Tentando enxergar o mar, quando se aproximava da janela da sala, era logo atacada pela rajada de vento e pelas vergastadas de chuva sobre a vidraça. Ouvia muitas vozes que vinham de longe dizendo que a cidade estava sendo totalmente destruída pelo ciclone. Outros gritavam enlouquecidos: “É o Hipupiara, é o Hipupiara”. Acordou com esses gritos de desespero. Ainda era madrugada. Não dormiu mais. Só ficou mais calma quando me viu andando pela praia e pensou que eu havia tido o mesmo sonho. Percebeu que, embora não aparecesse no sonho, eu estava perto dela o tempo todo testemunhando a sua angústia. Disse, espantada, que nunca havia sonhado daquela forma tão intensa e verdadeira, embora estivesse totalmente fraca e impotente diante do que acontecia. Queria explicações. Respondi que não sabia explicar e nem soube que havia chovido tanto naquela noite, pois havia tido um sono muito profundo. Só não contei pra ela que , enquanto falava e segurava o meu pulso, vi tudo o que se passava naquela sonho, exatamente da forma como contou e como percebeu a minha presença nele. Isabela não estava inventando nem mentindo. O Hipupiara havia voltado com toda a sua fúria, a mesma fúria com que tinha destruído o Tumiaru e todas moradias da vila de Martim Afonso em 1540. Daquela vez foram somente algumas casas e o sino da igreja. Agora seriam os edifícios, os monumentos, muitos automóveis e motocicletas que iriam ser tragados pela fúria do mar. Enquanto Isabel falava e se aliviava daquele pesadelo, meu coração era tomado pelo pavor e a certeza de que a qualquer momento o mundo todo iria acabar, pois tinha visto que não era somente a cidade que foi tomada pelas águas. O mar havia chegado até a Serra, como era há cinco mil anos, antes de recuar e formar as ilhas, as praias e os morros. Depois que soltou meu pulso Isabela parecia ter tido um delírio semelhante a um transe sonambúlico que a fez esquecer tudo que me contara. Despediu-se sorrindo e saiu correndo para fugir dos pingos da chuva que voltaram após uma breve estiagem.
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O JESUITA
DALI MESMO fui até a Pedra do Sol. Ninguém por perto. Encostei numa das pedras tentando entender o que aquela pequena ventania queria me dizer. Entendi que era preciso subir a rua da Ilha Porchat, caminhando pela calçada do lado direito. Passando algumas casas , quase já no topo, tem o matagal de onde é possível ver Paranapuã e Itaquitanduba, as duas praias milagrosamente desertas, quase tão selvagem quanto na época da chegada dos primeiros europeus.
Sentei-me na mureta e continuei olhando o movimento das ondas entre a ilha e o maciço Xixová-Itaipu. Em alguns momentos tive a impressão de ter visto enormes bancos de areia e nelas, tombadas de maneira irregular, algumas torres pontiagudas de pedras. Não é um lugar comum. É um santuário protegido por forças desconhecidas e que desestimulam qualquer tentativa de civilizar aquele local.
Já é fim de tarde e vejo que há um movimento suspeito em Paranapuã. De longe dá prá ver que são jovens que perambulam pelas areias numa agitação alegre. São somente meninos, a maioria negros e mulatos, todos usando calção de mescla azul. Subitamente me vejo na praia junto eles e não sei como fui parar lá, no meio daquela correria. Também estava de calção, mas um calção branco meio encardido. De longe alguns homens altos e fortes, de braços cruzados, nos observam enquanto corríamos pela areia, depois do banho de vento. Ficamos ali brincando até cansar, quando alguns sentaram no chão, outros deitaram até que a euforia da brincadeira fosse vencida pelo cansaço.
Ao sinal dos vigilantes fomos todos entrando em fila por uma trilha até chegar em uma grande construção de tijolos e concreto, que parecia ser uma escola, mas não era. Uma placa de metal segurada por caibros de madeira informava que naquele local funcionava uma unidade da Fundação do Bem Estar do Menor-FEBEM.
Interessante que ao entrar na fila da volta da praia ninguém percebeu minha presença, a não ser alguns meninos que, como eu, estavam de calção branco e tinham feições de mamelucos e não dos mulatos e negros. Enquanto alguns se dirigiam para tomar água nos bebedouros ou tirar a areia dos pés nas torneiras, muitos permaneciam sentados num pátio onde aguardariam o jantar. Entre eles percebi que muitos não eram crianças e quando alguns deles percebiam a minha presença passavam a me olhar de forma diferente.
Uns se envergonhavam, outros sorriam e outros me desafiavam com reprovação e ameaça. Reconheci todos eles, lembrando os nomes e de quem eram filhos. Alguns poucos eram os primeiros caçadores do Bacharel e outros eram de outras épocas e lugares próximos, mas todos capturadores e mercadores de escravos.
Nem todos porque entre eles também estava o Padre Vicenzo, magrinho e esperto, sempre sorridente, mostrando-me um crucifixo de madeira e querendo me dizer que ali estava para aprender um pouco mais e cuidar de algumas almas queridas que ainda tinham muitos pecados para espiar. Acenei pra ele dizendo que morria de saudades das suas aulas de teatro e canto. Só não gostava da missa. Conhecia todas as famílias brancas e indígenas da região e tinha um inventário de tudo o que acontecia com elas, desde as crianças até os mais velhos. Perguntei onde estavam algumas delas e ele, em pensamento, me contou que tiveram diferentes destinos, mas sempre voltavam a São Vicente, de alguma forma. Ele as reconhecia nas ruas e tocavam em seus corações ao aproximarem e elas nem percebiam. Apenas davam gargalhadas ou então sentiam algum tipo de saudade inexplicável, como a que senti ao vê-lo sorrindo entre os meninos presos na FEBEM. Quis chorar naquele instante, porém ele me advertiu que eu poderia ser descoberto por alguns mamelucos ainda muito teimosos e revoltados, causando algum tipo de inquietação naquele local.
Padre Vicenzo lembrou que o governo já estava pensado em desativar os reformatórios em todo o estado e encontrar outra forma de educar essas crianças. Esse formato era muito perigoso e atraia muitas almas inimigas e vingativas, como nas as prisões de adultos e hospitais psiquiátricos. Naquele momento recordava de todos os abusos e violências sofridas pelos nossos irmãos e que as mesmas coisas aconteceram com os africanos escravizados. “Até chegar a solução –disse o padre - já nos preparamos para enfrentar outras batalhas, pois os meninos já estarão adultos e poucos terão forças para se reajustarem com a lei. Daqui há algum tempo estaremos lá nas terras do Samaritá e em Mongaguá, reconduzindo as nossas almas perdidas”. Ele estava se referindo à construção dos presídios para adultos, na área Continental e no Litoral sul. Não entendi porque construir presídios ao invés de escolas. O padre sorriu e me fez entender que essas almas que acabam indo para os presídios são antigos mamelucos desviados para o crime e, por não aceitarem a educação, vão agravando seus débitos. Todas as cidades que foram fundadas a partir da corrupção e destruição de núcleos indígenas hoje abrigam esses criminosos em presídios e também nos educandários prisionais para jovens. Como é um sistema imperfeito e agravado pelo convívio pernicioso, a maioria não consegue se regenerar. Não há outra solução no momento senão a de curar pelas semelhanças.
Padre Vicenzo vem atuando nesse setor há muitas gerações. Quando o Paraná ainda fazia parte da Capitania de São Paulo, ele foi encarregado de reeducar um grupo de soldados rebelados que foram condenados ao isolamento na colônia de Catanduvas. Os soldados eram do regimento de Santos, a maioria com idade entre 18 e 24 anos, entre eles muitos vicentinos. Desolados pela condenação injusta, aqueles soldados só puderam avaliar a gravidade dos seus gestos quando receberam a sentença que destruiria suas esperanças pelo resto de suas vidas. Pensavam em fuga ou suicídio, o que era praticamente a mesma coisa viver para sempre numa região tão distante e selvagem. Vicenzo sabia que aqueles jovens não eram tão inocentes e injustiçados quanto eles pensavam. A memória do padre ia além daquela existência frustrada pela condenação. Todos eram mamelucos que participavam de incursões criminosas para expulsar os índios de suas terras, a serviço de fazendeiros ambiciosos. As incursões eram traiçoeiras, violentas e cruéis e não poupava nem as crianças, que tinham seus crânios esmagados pelo cabo das espingardas. Viam os índios como animais que atrapalhavam a criação de gado e o plantio das lavouras. Muitos desses grupos expulsos ou mortos por eles se reuniram nessa região do Paraná e continuaram sofrendo com a ambição dos fazendeiros. Perguntei o que aconteceu com os rapazes e ele me respondeu que havia feito um plano de regeneração para cada um deles. Obteriam anistia da pena de 20 anos se constituíssem família com as mulheres indígenas da Colônia, já educadas para esse fim. Aceitando a proposta, eles receberiam terras se estabelecerem como sitiantes. Nem todos conseguiram honrar o compromisso, entretanto os que se firmaram nessa promessa colheram bons frutos naqueles dias e também em outros tempos que viriam. “E os que desertaram”? perguntei. Padre Vicenzo respondeu que alguns deles estavam ali no reformatório de Paranapuã, aguardando dias melhores.
Acordei desse cochilo rápido e, ainda impressionado, voltei para a praia. Já estava escurecendo e meu estômago pedia um café com bolo. Na caminhada em direção ao centro, sempre com a imagem dos caçadores mamelucos e do Padre Vicenzo, vinha pensando onde iria encontrar um lugar que tivesse um bolo pronto para vender, de preferência bolo de fubá. Lá resolveria, dependo do calor, se tomaria café ou um guaraná bem gelado para acompanhar o bolo.
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CANANEUS
VENDI O CARRO e só ando de bicicleta. Também reaprendi a andar de ônibus. Uma delicia poder ver a paisagem pelas janelas grandes sem me preocupar com o trânsito e com os carros que estão na frente. Não preciso buzinar, nem pensar onde estacionar, livre dos impostos e do combustível. No começo sofri com as lotações, por causa da bagunça. Agora a cidade tem um novo sistema de transporte, ônibus grandes com ar condicionado e com linha e horários definidos. Nos ônibus intermunicipais que vão para Santos, seguindo as duas linhas mais antigas e herdadas dos bondes, é possível dar a volta pela ilha: pelo Matadouro ou pela Praia. Nos finais de semana, quando ônibus estão mais vazios, costumo fazer esses dois percursos e sempre desço na Ponta da Praia para apreciar o movimento dos navios entrando ou saindo do porto. A bicicleta me salvou do tédio e dos custos de deslocamento para alguns lugares distantes. Só não vou na área Continental e nas cidades vizinhas, com exceção de Santos, onde percorro toda a orla até o canal 7. Uma redescoberta fabulosa que me fez sentir livre e mais jovem. A ideia de ter uma bicicleta foi da Verônica, que também tem uma e anda com ela por todos os cantos da cidade. Sempre vamos pedalando até o Cine Posto 4, no Canal 3, e lá deixamos as bikes presas no estacionamento em frente à Concha Acústica.
Sexta-feira à noite recebi um e-mail de uma amiga que mora em Praia Grande me informando que o Porto das Naus estava ocupado com barracos. Ela passa todos os dias pela Ponte Pênsil e pôde ver que o local vinha sendo invadido, pois as cercas de proteção haviam sido derrubadas. Fazemos parte de um grupo que estuda e protege o patrimônio histórico da cidade. No sábado de manhã, após o café, combinei com a Verônica e fomos pedalando até o Japuí. Queria verificar e fotografar essa invasão. Atravessamos a ponte e logo chegamos ao local mais antigo da ilha. As ruínas de pedras onde foi a primeira alfândega do Brasil e depois onde funcionou o engenho de Jerônimo Leitão está cheio de roupas velhas espalhadas pelo gramado. Havia fios de nylon amarrados entre as árvores, servindo de varal. As cercas de arame e pilares finos de cimento estavam derrubadas. Vestígios de fogueiras e lixo urbano em abundância. Alguns moradores de rua dormiam sob às árvores e na entrada principal o Monumento da Cruz Real estava coberto pela vegetação. Fizemos algumas fotos com os nossos celulares e voltamos rapidamente para a Ilha com uma sensação de frustração e tristeza. Um lugar como aquele, de tão alta importância histórica, tombado pelos órgãos de defesa do patrimônio, abandonado e desprezado pela população. É a única prova de um dia tivemos aqui a presença de naus portuguesas e de outras nacionalidades mercantilistas do século XVI.
Quando o Brasil ainda era Pindorama e não havia tantos portugueses dando ordens e cobrando impostos, a nossa terra era realmente um paraíso dos trópicos. Um mar imenso, que nos dias ensolarados era verde claro, transparente e que nos dias nublados tinha a cor cinzenta de ardósia. A floresta era sempre verde e densa, refletindo sua escuridão nas águas do mar, protegendo a terra do calor e das chuvas torrenciais que aconteciam entre as estações. Quem caminhasse na praia, de dia ou de noite, olhando o azul infinito ou seduzido pelas luas, tinha a impressão de estar no paraíso, o Pindorama dos Sonhos. Mas não era impressão. Era o paraíso mesmo.
Nessa época já se viam muitos navios passando pra lá pra cá e, de vez em quando, um deles estacionava na grande ou na pequena enseada e ali ficava por algum tempo até que alguns tripulantes descessem uma embarcação menor , entrassem dentro dela e remassem em direção à praia. Ouvia-se nesse instante alguns gritos vindos da casa do alto do mastro da embarcação indicando a direção da terra, quebrando o silêncio, indicando o rumo que o pequeno bote deveria tomar. Alguém no bote sempre gritava de volta:
- Cala essa boca que já estamos quase na areia!!!
A língua estranha é essa que agora falo e escrevo com naturalidade, tão natural como o tupy que todos falávamos. Só não sabíamos escrever porque não era necessário. Tudo que era necessário estava guardado na memória e os mais velhos nos ensinavam a não esquecer essas coisas importantes que mais tarde seriam uteis. Entre nós já existia alguns homens iguais ao que desciam dos navios estacionados, homens que sobreviviam aos naufrágios e viam dar na praia, desesperados, famintos e cansados de nadar. Homens marcados pelo degredo e homens do naufrágio, cujas embarcações se despedaçavam nas pedras ou simplesmente afundavam durante as tempestades. O mais calmo deles era o náufrago Ramalho, que andava nu e percorria todos os lugares atrás de riquezas e novidades. Era muito curioso e queria saber de tudo o que existia e também o que acontecia em nosso e nos outros pindoramas. Era um homem de estatura média, cabelos encaracolados e, como todos daquela época, usava uma volumosa barba que lhe servia marca de honra e coragem. Sua aparência e comportamento revelava que tinha sido alguém importante em Vouzela, sua cidade natal, pequena vila distante três horas de Lisboa. Figura misteriosa que até hoje ninguém sabe como e por quê veio parar no Brasil, se por impulso aventureiro e ânsia de vencer na vida ou por causa de um grave erro cometido ou ainda vítima de perseguição religiosa. Nessa última hipótese ele poderia ser um cristão novo ou judeu convertido, tese pouco provável pois nunca levantaram tal suspeita durante seus embates políticos ou negociatas permitida somente aos cristãos de tradição.
Havia também o Bacharel, degredado que falava um pouco diferente do Ramalho e do Rodrigues, um sotaque mais duro e de som estridente e sibilado, que combinava muito bem com o seu jeito mandão e agressivo. Esse era o Fernandes, como o chamavam os outros brancos e depois todos nós. Cosme Fernandes era judeu-espanhol, muito ligado aos negócios do Porto de Lagos, principal porta de entrada de escravos na Europa. Fernandes olhava o tempo todo para o mar, procurando navios. Ramalho e Rodrigues olhavam o tempo inteiro para as montanhas. O Bacharel era habilidoso com as mãos e muito inteligente para fazer planos. Queria que o lugar fosse atraente e despertasse a atenção de outros navios com os quais pudesse fazer negócios de trocas. Andava sempre acompanhado de muitos de nós, que pensavam e agiam como eles, ávidos pelas novidades de ferro , panos para o corpo, armas mortais para caça e guerra. Era um pequeno exército pronto para o combate em defesa da terra e dos negócios. Junto com Fernandes eles construíram um pequeno porto atrás da Ilha do Sol, no pequeno mar, onde tinha outra saída para o Atlântico, próximo ao Piaçabuçu, o grande rio que vinha da montanha. Era um lugar seguro e protegido de tempestades e de malfeitores do mar. Junto ao morro do Japui fizeram um capão com algumas cabanas, uma grande casa de pedras e ao redor delas plantaram raízes, legumes, grãos, frutas e criavam animais que conseguiram dos navios que passaram a aportar ali com mais frequência. Ao lado do porto construíram também uma oficina de embarcações, onde faziam reparos e até outros navios, de encomenda.
Fernandes sabia recompensar os nossos irmãos que andavam com ele, dando-lhes coisas valiosas e ensinando outras que eram úteis no dia a dia. Eles o acompanhavam aos lugares próximos e distantes, para fazer negócios, como na Cananéia, quatro dias e noites para o sul, onde havia outros brancos iguais a eles. Esses cananeus eram mercadores de escravos, capturados nos pindoramas espalhados naquela região e também no Peabiru, enquanto caminhavam pela floresta. Nossos irmãos capturados, geralmente meninos e meninas, eram entregues nos navios e dali eram levados à Europa, onde eram revendidos. As meninas eram oferecidas nas casas ricas ou nos bordéis, que as transformavam em mercadorias sexuais exóticas. Os meninos ser tornavam serviçais até ficarem velhos, alcoólatras e moribundos, jogados pelas ruas das cidades portuárias da Espanha ou da França. No começo as capturas de escravos eram escondidas, para evitar o temor nos pindoramas mais próximos das praias. Com o tempo elas se tornaram mais frequentes, causando estranhamento e desconfiança em todos. Elas eram ensinadas aos nossos irmãos pelos velhos marinheiros que conheciam as artimanhas da captura. Esses marujos eram contratados nos portos do Mediterrâneo, sobretudo em Lagos. Os nossos irmãos antigos, que se misturaram com eles, foram se afastando e deixando de ser nossos irmãos, passando a nos tratar como estranhos e até inimigos. Já não falavam mais o tupy e acostumaram a usar roupas e botas. Passamos a chamá-los de mamelucos, gente traiçoeira e perigosa, doentes da cabeça e dominados pela ambição.
A Ilha do Sol foi ficando mais distante de Gohayó. Nem o Ramalho e o Rodrigues gostavam de ir lá porque o Fernandes e seus filhos mamelucos os estranhavam. De tempos em tempos o grande chefe Tibiriçá vinha de Piratininga, depois da montanha, onde morava, até a Gohayó. Fazia muitas perguntas para Ramalho e para Rodrigues sobre o Fernandes e os mamelucos dele. Ramalho ficava quieto e contrariado, com medo que Tibiriçá os atacasse com seus guerreiros. Não gostava de Fernandes, mas não queria afastá-lo por causa dos negócios. Tibiriçá não entendia muito bem o que Ramalho lhe explicava, porém ficava intrigado, embora confiasse no seu genro. Quando isso acontecia, Ramalho procurava distrair Tibiriçá convidando-o a caminhar e mostrar as coisas que tinha descoberto. Andavam o dia inteiro sem se cansarem. Voltavam já “à tardinha”, com diziam os brancos, quando o sol estava se pondo. Tibiriçá queria saber como o Fernandes tinha feito aquela oca de pedras. Queria fazer ocas iguais no Piratininga, para ele e para seus filhos. Ramalho prometeu descobrir e ensinar, explicando que teriam que encontrar e carregar muitas pedras.
Tibiriçá não ia a lugar nenhum sem Bartira, sua filha mais forte e atirada, que queria ser guerreira, mas por ser mulher não deveria lutar como os homens do pindorama. Foi por isso que Tibiriçá deu Bartira para Ramalho, dizendo a ela que o amigo precisava aprender a ser igual a eles e governar os pindoramas quando ele fosse morar em Alvorada Nova, lugar dos mortos que ficava dentro das águas das cachoeiras. Os brancos mortos diziam que ao morrerem iriam para o céu, lugar feliz; ou para o inferno, lugar triste e escuro, onde se reuniam os maus e os mamelucos. Nossos mortos de coração limpo caminhavam até as cachoeiras e ali encontravam uma porta que os levavam ao lugar onde as manhãs só acabavam quando as noites enluaradas ocupavam o lugar do dia, cheias de encantos e mistérios. As manhã eram sempre novas, depois das noites de lua, quando reencontravam seus entes queridos que já tinham partido e também todos os animais caçados, que haviam morrido para que se alimentassem. Nem Tibiriçá nem Ramalho acreditavam muito nessas histórias, geralmente contadas por Bartira a eles, aos seus filhos e netos. Mas todos ouviam em silêncio, com curiosidade, medo e respeito, até que ela terminasse. Bartira vivia tendo sonhos premonitórios nos quais chegavam muitos navios e que neles estavam guerreiros que lutavam furiosamente contra Fernandes e os mamelucos. Nos sonhos ela e Ramalho eram gigantes e estavam no mar quando os navios passavam entre as suas pernas, sem que fossem tocados ou molestados dirigindo-se à praia com tochas de fogo em busca dos mercadores de escravos. Bartira acordava assustada querendo conversar e compreender o que significava esses sonhos, porém Ramalho a distraia com histórias sobre o lugar distante onde havia deixado seis pais e seus irmãos, dizendo que um dia todos iriam para lá visitá-los. Bartira pegava no sono novamente enquanto Ramalho permanecia acordado pensando no sonho da esposa índia e nos seus sonhos de homem branco.
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CINEMATOGRÁFICA
DIAS DESSES fui visitar um amigo que conheci pela internet, vendo e compartilhando fotos de edifícios antigos da cidade. Ele conhece praticante todos os prédios e fez um guia no qual consta um inventário sobre as obras arquitetônicas de destaque. Paulistano, escolheu São Vicente para curtir a aposentadoria, mas depois de algum tempo enjoou e acabou voltando para a Capital, concluindo que lá, apesar da solidão, poderia desfrutar o cosmopolitismo e vida cultural de São Paulo . Na mudança se desfez de muita coisa, inclusive uns livros que me deu de presente, sobre a história vicentina. Morava no edifício Marahu, no Boa Vista, prédio ondulado com persianas amarelas, erguido bem na ponta que divide as praias do Itararé e Milionários. Sempre que subo a ilha, na volta sento na mureta em frente a esse prédio porque é um ponto onde se pode ver a Pedra do Sol e também a Praça das Bandeiras. Gosto de ficar ali em dias sem movimento, geralmente no final da tarde.
As persianas do Marahú já estão desbotadas. Quando vim morar no litoral, em 1974, elas ainda tinham um tom de amarelo bem forte, cor que combinava com verões quentes das temporadas dos anos 60 e 70 nas quais o Itararé e o Gonzaguinha eram os principais rivais do Guarujá e ainda frequentado pela alta burguesia paulistana. Foi então que duas cenas vieram à minha mente ao olhar demoradamente para a janelas do Marahu. Cenas cinematográficas. Na verdade foram três, mas cinematográficas foram só duas.
Estou no Itararé andando pela areia, num dia de semana à tarde. A cidade está silenciosa e quase não se ouve barulho de carros. Meus olhos percorrem lentamente todo aquele cenário paradisíaco. O Edifício Marahu ocupa boa parte do meu olhar, exatamente igual ao que estava fazendo há pouco. Avisto de longe um caminhão velho vindo em direção à ilha Porchat. Uma algazarra na carroceria quebra o silêncio. O caminhão estaciona e todos descem e correm em direção à areia do Itararé; logo depois voltam, atravessam a rua e vão para a praia dos Milionários. De longe se vê o Gonzaguinha, com alguns edifícios em construção e algumas mansões na orla, com suas árvores grandes e vistosas. Olho para o mesmo edifício que me distraiu há poucos minutos e o vejo bem diferente. Está novinho, em folha. As persianas amarelas estão novíssimas, tão novas que ofuscam os olhos com a claridade intensa do sol. A turma do caminhão retorna para o Itararé, onde trocam de roupa e vão divertir-se no mar. A Ilha Porchat está repleta de árvores e não se vê nenhum edifício nela. Dos que desceram do caminhão reconheço apenas um adulto. Já de meia idade. Ele anda de um lado para outro, gesticula fartamente, à moda italiana, e organiza uma roda de dança que reúne todos os visitantes. Na verdade trata-se de um elenco. O homem de meia idade é Amácio Mazaroppi dirigindo uma cena do filme “O Vendedor de Lingüiça”. Estamos em 1962. As novíssimas persianas do Marahu emitem uma claridade excepcional, mas não tem cor alguma. O filme é preto e branco.
Na sequência, como se fosse uma mudança de cena nos sonhos, vejo outras pessoas, em algazarra, no mesmo lugar. Agora é uma pequena multidão em alvoroço, dando a impressão de que alguém se afogou ou foi atropelado na rua que divide as duas praias. No meio dela surge um rapaz com toda pinta de galã de cinema. Com shorts curto e uma camiseta com listras grosas e mangas compridas. Ele procura uma garota, que logo encontra, dão as mãos e correm em direção ao mar, onde vão divertir-se. O galã é o ator Walmor Chagas. A garota é a atriz Ana Esmeralda. Tudo está em preto e branco. Ele de costas para o Ilha Porchat Club e ela de costas para os edifícios do bairro na direção de Santos. Continuo sentado vendo aquelas cenas do filme São Paulo Sociedade Anônima, gravado em 1965. São Vicente está no apogeu do “boom” imobiliário e suas praias são as mais cobiçadas do litoral, pela proximidade da Capital e fácil acesso pela rodovia Anchieta. O Itararé e o Gonzaguinha gozam de prestígio e esbanjam um charme comparado a qualquer praia elegante da Europa, do México e do Hawai. É de uma beleza simplesmente deslumbrante. Por isso são cenários de filmes, com atores de grande fama. Darlene Glória, Eva Vilma, Otelo Zeloni estrelam essa produção. Darlene aparece numa cena chegando de lancha. Antes ela tinha ido conhecer o Mar Pequeno e a Ponte dos Barreiros. Na volta a lancha passa por baixo da Ponte Pênsil , atravessa as águas tranquilas e limpas da baía e desembarca na areias da Praia do Milionários.
Olho novamente para o Marahu, desgastado pelo tempo e pela moda que passou, e fico imaginando se aquela cena que na qual Walmor abre a persiana para dizer a Ana que a vista era maravilhosa, foi gravada no apartamento do meu amigo arquiteto. Claro, não poderia ser outro. Lembro bem. O escritório desse meu amigo antes era um quarto. Ana morre no filme, naquele apartamento, cuja cena termina com alguém cobrindo seu rosto com um lençol. Lembro que Walmor também morreu, muitos anos depois, de cabelos muito brancos, em uma pousada na Serra da Mantiqueira, atormentado por alguma coisa horrível e insuportável que o fez atirar em si mesmo com um revólver.
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O VISITANTE
MAS AQUELA ESQUINA ainda guardaria uma outra surpresa. Passada a euforia cinematográfica, eis que a avenida e a praia se esvaziam para que outro cenário fosse montado ali como a mesma velocidade dos anteriores. Quando as coisas são governadas pelo pensamento, a imaginação não precisa de cores. A cena de destaque na ponta do Boa Vista agora tem uma dimensão política.
Estamos em 1961, em plena Guerra Fria. Ernesto Tchê Guevara e Fidel Castro ocupam todas as manchetes dos jornais e revistas, rádio e cinema. A Revolução Cubana segue seu curso e tenta influir de forma direta nos regimes latino-americanos. Nesse universo de segredos diplomáticos e militares a espionagem é uma arma essencial e letal na guerra entre as superpotências e também entre as indústrias e organizações financeiras. O espião e o alcaguete são peças vitais para obter informações. Eles estão espalhados e infiltrados em todos os lugares e segmentos. É preciso redobrar a vigilância. Fenômeno como este só havia acontecido nos tempos da Santa Inquisição e na Europa totalitária. Alguém escondido atrás de um jornal lendo em uma esquina ou no banco da praça pública pode ser um agente ligado a inúmeros serviços secretos que atuam no mundo inteiro defendendo interesses dos EUA, da União Soviética, dos árabes ou dos judeus. Todos vivem literalmente no mundo da Lua e querem chegar nela a qualquer preço, como forma de mostrar poder científico e tecnologia de controle do futuro. O Brasil está na moda. A Bossa Nova começa despontar no mundo da música, logo após o sucesso do Cinema Novo. JK tem um novo sucessor, que exibe um tremendo óculos com lentes do tamanho de uma tela de TV e, por trás deles, olhos atormentados pela mania de perseguição.
Continuo sentado na mureta, olhando as venezianas amarelas do Marahu. Alguém esqueceu ali um exemplar da revista O Cruzeiro, cuja capa em preto e branco está estampada a foto do novo presidente, com um sorriso irônico, revelando o imprevisível. Poucas pessoas na rua e na praia. Olho na direção da avenida Presidente Wilson e vejo uma movimentação estranha e suspeita. São homens de estatura alta, de paletó e gravata, olhando para todos os lados em busca de um possível atentado. Para disfarçar, temendo que haja alguma coisa grave, pego a revista e começo a folheá-la, fingindo estar atento às reportagens. O clima está ficando cada vez mais tenso, pois alguns carros estacionados estão ocupados por pessoas misteriosas, que ficam olhando pelos retrovisores. Meu sexto sentido diz que algo muito ruim vai acontecer: um assassinato, troca de tiros, uma explosão. Os homens de terno abotoam o paletó, talvez para esconder suas armas, e se movimentam na minha direção. A página da revista mostra uma garota de maiô com pernas e seios maravilhosos. Ela sorri maliciosamente, mas não consegue prender minha atenção nem tranquilizar-me. Penso em correr pela Praia dos Milionários, mas isso despertaria uma suspeita desastrosa e certamente seria baleado. Desisto da ideia e me concentro nas páginas da revista, por alguns segundos. Do outro lado da rua um ciclista pedala tranquilamente em direção ao Ilha Porchat Clube, como se nada de anormal estivesse acontecendo. Não o conheço, pois em fevereiro de 1961 ele deveria ser muito jovem. E eu nasceria somente em agosto. De repente, na esquina da rua Almirante Saldanha da Gama, surge andando um homem magro, de roupas simples, camisa de margas curtas, calças claras de tergal e sapatilhas brancas. Caminha lentamente com as mãos para trás. Os homens olham com mais frequência para o caminhante, fixando os olhos nele e esquecem de mim por alguns minutos. O homem magro continua andando, no ritmo de um passeio planejado. Olho para ele, olho para a revista em logo vem a explicação de toda aquela encenação. Era o Presidente. Digo para mim mesmo, espantado: ”Meu Deus, é o Jânio... E vão matá-lo aqui em São Vicente, bem perto de mim. E vão me acusar pelo crime. É isso, ele estavam apenas procurando alguém para colocar na cena do crime. Estou perdido”. Fechos os olhos para me convencer que aquilo tudo era um delírio, desses que tenho com frequência e geralmente me envolvo em grandes confusões. Pânico e sensação de morte bem próxima. Ouço passos e uma tosse rouca me faz abrir os olhos de curiosidade. Jânio passa por mim e para. Olha para revista, que agora está fechada sob as minhas pernas trêmulas. Sorri idêntico à foto da capa. E se dirige a mim, com a maior calma e naturalidade:
- Bom dia, meu rapaz, como vai?.
E respondo:
- Bom dia, Senhor Presidente. Vou bem, graças a Deus. Aproveite o descanso e a paisagem...
E ele comenta, com aquela conhecida voz rouca
- Por sinal muito bela, meu caro, realmente de uma beleza, digamos, estonteante.
E foi em direção à Ilha, enquanto os agentes de segurança corriam desesperados, prá lá e pra cá, tentando manter as coisas em ordem. Fecho os olhos novamente e por alguns segundos tento me convencer que esta cena não aconteceu e que foi tudo produto da minha imaginação. Penso: vou abrir os olhos e nada disso que se passou vai estar aqui. E ao abri-los vejo que o presidente continua caminhando e agora são os agentes que passam por mim sem notar a minha presença, tão distraídos e desatentos das coisas que não puderam planejar que, eu poderia, se tivesse comigo uma arma ou um punhal, atirado ou atacado fatalmente o presidente. “Que horror”, pensei. “Será que teria coragem”? Levantei, deixei a revista sobre a mureta acreditando que estava amaldiçoada e que nela ainda continha avisos de que as coisas não deveriam estar nada boas para o presidente nos próximos meses.
No dia 23 de agosto de 1961 eu nasceria, há 650 quilômetros de distância. Dois dias antes, Jânio renunciou ao mandato presidencial, alegando estar sendo perseguido por forças ocultas. Hoje entendo perfeitamente o que estava se passando em seu mundo íntimo e também nos bastidores do governo federal. Jânio desapareceu do cenário político por um quarto de século, quando voltou a ser candidato a governador, perdendo para Franco Montoro, e depois como prefeito de São Paulo, já bem idoso, derrotando o então senador Fernando Henrique Cardoso. Nunca mais voltou a São Vicente, suponho.
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O PARANORMAL
MEIA ESTAÇÃO. É como está o clima nesse período ano, entre o verão e outono, logo depois daquelas chuvas intensas de fevereiro e março. Eu e Isabela, no jardim que fica dentro do edifício, conversamos sobre diversos assuntos enquanto a mãe dela foi até ao supermercado fazer as compras da semana. Elas moram no Audax, na avenida Antônio Rodrigues. Dali dá para a ver a baía e quase todos os pontos mais conhecidos da orla. Isabela me conta que não acredita em Deus. Se esforça para compreender, mas não consegue. Acha que o mundo é muito preso à essas bobagens somente para disfarçar e compensar as coisas ruins que existem nele. É uma geração descrente, irônica, muito bem informada e questionadora. Assim como duvidam de todas as coisas prontas e organizadas pelos sistemas, também desconfiam da religião e das respostas padronizadas da teologia sobre os problemas humanos. Acho engraçado. A mãe não acha nada engraçado e se preocupa porque Isabela tem amigos que se cortam e alguns já se mataram. São como os terra-planistas que defendem sua cosmogonia provocando a irritação dos globalistas, que às vezes se confundem ao explicarem as teorias dominantes sobre esse tema. Isabela vê a religião e as igrejas como um sistema frágil e de fácil contestação. Isso lhe dá a sensação de autonomia e independência que muitas vezes não têm em casa. Dou muitas risadas porque eu mesmo, com as minhas crenças vejo-me acuado pelas suas perguntas e o seu prazer cruel em esmagar minha cabeça com os pés, depois de derrubar-me com alguns golpes verbais. Reajo, busco algumas vertentes e temas que ela desconhece e logo me recupero dessas pequenas surras racionais. Culpa do nosso misticismo incorrigível.
Logo em frente ao prédio onde estamos percebemos jovens realizando alguma atividade ou ação religiosa. São muitos, todos vestidos com camisetas pretas com uma estampa uniforme no peito. Estão muito alegres e festivos. Isabela me disse que conhece alguns deles que já os viram em outras ocasiões. É domingo, umas 19 ou 20 horas, e devem ter saído do culto há poucas horas. A calçada está praticamente vazia e nela passa, com longos intervalos, algum pedestre passeando ou retornado para casa. Eles correm em direção a esses raros transeuntes para oferecer abraços. São tantos jovens que alguns pensam se tratar de um arrastão. É uma cena cômica e surpreendente.
Pergunto para Isabela se ela faria parte do grupo, caso a convidassem. Ela responde que não, pois teria vergonha. Acha meio piegas. Digo pra ela que também fiz parte de grupos de jovens religiosos, não de igreja e sim de um centro espírita da Vila Melo, em meados dos anos 70. Eu também não embarcava na deles- disse-lhe. Assistia às aulas teóricas e depois caía fora, na hora da confraternização.
Enquanto os jovens procuravam novas vítimas para dar abraços percebi que havia homem de meia idade, usando terno e chapéu, observando o grupo. Estranhei que não tivessem visto ele, pois estava sentado no banco, bem próximo.
A mãe de Isabela chegou e nos despedimos. Atravessei a avenida e fui em direção aos jovens, talvez porque estivesse precisando de um abraço. Parei sob a árvore e fiquei esperando a reação deles.
- Eles não vão perceber que você está aí, como a mim, disse o homem.
Então olhei par trás e vi eu mesmo ainda sentado no jardim do Audax e ao mesmo tempo conversando com aquele homem. O reconheci imediatamente, mas o cenário era outro. Não havia prédios nem carros. A noite estava escura e fria. O homem continuava sentado, agora demonstrando cansaço e mal estar, causados por dores no corpo. Ele havia sido espancado por um grupo de rapazes que, depois da agressão, já caminhavam um pouco longe. Não eram muitos, mas percebi que alguns deles faziam parte do mesmo grupo de jovens que tinha visto anteriormente, incluindo duas ou três meninas. O homem estava com o rosto machucado. Perguntei o motivo da agressão e ele me respondeu que todos estavam em uma quermesse na praça Bernardino de Campos, no centro da cidade. Na medida em começou a falar, já estávamos, eu e ele, na esquina da praça olhando o acontecido.
Haviam feito uma grande fogueira e a certa altura alguns deles ameaçavam pular uns pedaços de madeira em brasa que haviam se soltado da amarração feita com pregos. Subitamente teve a ideia de também fazer o mesmo gesto dos rapazes, por brincadeira, e de repente se viu dentro da fogueia, em altas chamas, onde permaneceu por alguns minutos, sem nenhum movimento ou reação defensiva. Saiu da fogueira conferindo as roupas, o chapéu, as mãos e percebeu que estava tudo intacto. Nem sentira o calor. O público que ali estava, e não era pouco, ficou perturbado e logo se viu um alvoroço, do qual surgiam comentários jocosos e xingamentos. Alguns conhecidos quiseram retirá-lo dali pois perceberam que corria risco de ofensas e agressão, entre eles o amigo Mikulash, que conhecia bem essa sua particularidade inexplicável. Ele recusou e saiu caminhando em direção à Biquinha, ouvindo gritos de espanto e também de acusações de bruxaria. Da Biquinha ele seguiu em direção à casa de um amigo, na Vila Betânia, próximo ao empório Boa Vista. Não conseguiu chegar, pois, naquele mesmo local onde iniciamos nossa conversa, foi abordado por um grupo de fanáticos que o espancaram.
O homem percebeu o meu desconforto e decidiu dar-me uma explicação do que ocorrera. “Estou bem. Foi um reencontro”, disse ele. “Fui trazido aqui para curar uma dor que ainda incomodava meu coração. Vim porque alguns desses jovens ainda trazem consigo um grande remorso pelo que fizeram comigo. Ontem eram violentos e espancadores; hoje distribuem abraços e sorrisos. A vida é assim. Minha ferida também não cicatrizou”.
Eu estava conversando com Carmine Mirabelli. Perguntei onde era o endereço do Centro Espírita São Luiz, fundado por ele em São Vicente em 1917. Mirabelli respondeu que era na rua Marquês de São Vicente, num imóvel que foi demolido anos mais tarde. Quis saber porque colocava o nome de São Luiz nos centros que fundava. Confirmou o meu palpite sobre essa escolha. São Luiz, o bom rei de França, era da plêiade do Espírito Verdade e presidia e supervisionava, até aquele período, ações de médiuns que poderiam causar grande impacto na sociedade materialista. Os riscos da tarefa ele já conhecia. Tinha vivido em São Vicente em outras épocas e aqui reconheceu vários amigos daqueles tempos da vila afonsina. Mikulash era um deles. Muitos judeus daquela época do Porto dos Escravos ainda estavam por aqui. Mirabelli tinha potencialidades psíquicas espetaculares e isso causava um misto de espanto e ódio entre os que não conseguiam reconhecer e compreender esses fenômenos. Sofria muito com isso. Dormia com as luzes acessas pois não conseguia controlar seus transes e efeitos físicos ao redor. Tinha medo de causar incêndios e tumultos, pois as coisas aconteciam de forma espontânea e surpreendente. Na juventude passou por muitas tribulações, não parava em empregos e teve que abrir seus próprios negócios para sobreviver. Certa vez teve que deixar a loja onde trabalha no centro de São Paulo porque os sapatos saiam das caixas e chegavam sozinhos nas mãos dos clientes e estes saiam correndo apavorados pelas ruas. Contei isso para Isabela e ela riu dizendo que eu tinha lido Harry Potter. Na verdade Mirabelli era muito parecido com aqueles magos da Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts, mas não havia estudado a magia da qual carregava em si e não sabia controlar. Recusava ser um aprendiz de feiticeiro, como o Mickey no filme Fantasia.
A inauguração do Centro Espírita São Luiz não foi diferente. A cerimônia estava marcada em horário definido e poucos minutos antes ele ainda estava em São Paulo conversando tranquilamente na estação de trem que deveria trazê-lo ao litoral. Já havia perdido o trem e, mesmo assim, não interrompeu a conversa agradável com os amigos. Pediu licença, afastou-se e logo em seguida, para o espanto deles, desapareceu completamente daquele círculo de conversas. Minutos depois ele entra no recinto do centro, há mais de 150 quilômetros de distância, para o alívio dos organizadores que o aguardavam, dando inicio à cerimônia inaugural.
Outro aspecto constrangedor na vida desses médiuns de fenômenos físicos é o efeito colateral dos fluidos magnéticos primitivos desencadeados espontaneamente por eles – que mexem com o psiquismo e a libido, causando forte desequilíbrio sexual. Nas escolas sacerdotais e iniciáticas tradicionais, esses sensitivos aprendem a controlar o chamado “fogo serpentino” por meio da sublimação e técnicas defensivas. Essa serpente em forma de energia vital percorre a coluna vertebral e nos mantém literal e verticalmente eretos. O fogo rítmico é originário do magma geológico e movimenta as forças e desejos instintivos. Os iniciados o controlam através da manipulação do chacras ou centros de força. Nos médiuns sem preparo e educação moral não é raro os conflitos afetivos e o desequilíbrio mental. Mas esta é uma marca de responsabilidade pessoal.
Fiquei imaginando como eu me comportaria no lugar dele. Me senti fraco e incapaz de levar comigo uma tarefa como essa, cheia de provas e ciladas, pois certamente sucumbiria às tentações da carne e do caráter. Lembrei da médium Ana Diogo, filha de uma união proibida de uma padre com uma freira e que aceitou a tarefa de servir de cobaia para experimentos, muitas vezes apenas mascarados de ciência, com a intenção de desmoralizá-la. Assim foi com Zé Arigó, que acabou preso por exercício ilegal da medicina; e também com Chico Xavier e Peixotinho que, diferente desses outros, souberam disciplinar sua forças. Peixotinho era sargento do Exército e chegou e servir na região. Atuava num centro espírita em Santos, doando energia para materialização de espíritos e objetos.
Mirabelli produzia fenômenos semelhantes com alto grau de perfeição. Percebendo minhas inquietações e pensamentos, confiou-me que seus débitos eram muito maiores dos que seus feitos. Partiu desse mundo ainda muito endividado e que deveria retornar, agora em nova condições e melhor aparelhado para novas tarefas. Morreu em 1961, atropelado por um caminhão em São Paulo.
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FALA, RAIMUNDÃO
NA SEMANA PASSADA desencarnou o amigo Raimundo, de 73 anos de idade (23 a mais do que eu), mulato baiano, alto, magro e de cabelos brancos. Muito falante e cheio de ideias, Raimundão me considerava seu amigo e eu, desconfiado das suas conversas de vendedor (aposentou-se como representante comercial), ficava ouvindo atento as suas longas histórias pensando no por quê ele queria ser meu amigo, já que, segundo o meu preconceito, pessoas experientes não fazem questão de se aproximar dos outros para fazer amizade. Mas ele sempre dava um jeito de se aproximar e principalmente me segurar numa conversa, dizendo “Senta aí, relaxa, me conta as novidades...” Mas quem sempre contava as novidades era ele. Gostava muito de demonstrar conhecimento e lamentava não ter podido estudar e até confessou que a sua cabeça nunca foi boa para essas coisas. Mal sabia que eu também nunca fui muito amigo dos estudos. Me chamava de "Professor" e nunca pelo meu nome. Nunca falamos sobre espiritismo ou coisas do outro mundo. Ele gostava mesmo era de falar das coisas desse mundo, das “coisas boas”, pescarias, caçadas, mulheres, um pouco de futebol. E também da vida outros. Isso me preocupava porque eram coisas curiosas e atraentes, difíceis de resistir, e também porque ficava intrigado me perguntando se também não falava da minha vida para os outros. Daí a minha desconfiança. As vezes fugia dele, alegando pressa de ir para o trabalho, e apenas saudava de longe: “Fala, Raimundão!”
De resto era tudo muito legal e gostoso aqueles papos quase unilaterais sobre as mil coisas que se passavam pela cabeça dele. Quando a conversa ia afinando, comentava: “Ficar velho não é fácil, dá um trabalhão manter as coisas em ordem!” Gostava de política e vivia se metendo nos assuntos do condomínio. Queria que eu fosse o próximo síndico. Minha desconfiança aumentou e pensei: “O Raimundão tá querendo me ferrar!”. Era corintiano. Passou umas contrariedades na última eleição, da qual fiquei bem longe (alegando que já havia dado minha contribuição no Conselho), mas não creio que esse tenha sido o motivo do aneurisma que provocou sua passagem. Eu já estava aguardando esse desencarne porque percebia que ele andava muito inquieto e ansioso. Um dia antes me cobrou uma conversa mais longa. Atendi o pedido e tivemos a oportunidade de colocar algumas coisas nos devidos lugares. Nessa conversa, algum tempo depois de iniciada, tivemos a presença de outras pessoas que foram se aproximando de nós, sentindo o clima amistoso e alegre, juntando-se para também se despedir do amigo que ia partir. E se foi o Raimundão, em meio aquela agitação natural dos gritos dos vizinhos, do barulho do resgate, dos parentes chegando desorientados, enfim, a hora dos mortos enterrarem seus mortos. Uma semana depois me perguntaram se tinha ido ao velório, enterro e missa. Fiquei constrangido pela minha indelicadeza. Mas lembrei de uns detalhes curiosos: minha esposa me disse que na noite logo após o desencarne, perambulei pela casa, fora do corpo. Foi uma noite perturbadora, de agonia. Sete dias depois, a noite foi bem diferente. Conversei com o Raimundo. Ele queria falar, mas não conseguia. Dessa vez foi a minha vez de falar... Ele estava bem, mas ainda meio perdido, como eu naquele lugar de triagem e espera. Eu olhava no relógio e também queria dizer ao Raimundão que esse ano vou fazer 50 anos. Ele sorria e, sem dizer uma palavra, informava que me achava bobo, mas que gostava de mim. Acordei diferente e logo pensei: “Não fui no velório, no enterro nem na missa, mas fui num lugar muito melhor. E o Raimundão está vivinho da Silva!”
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O MELHOR AMIGO
CONHEÇO UM CARA que é o melhor amigo de Jesus. Isso mesmo, de Jesus. É , Jesus mesmo, esse que todo mundo conhece e sabe que é a pessoa mais importante depois de Deus. Se bem que Deus não é propriamente uma pessoa. Mesmo assim, depois de Deus vem sempre Jesus na escala de importância das pessoas mais importantes dessa região do Universo. Então, esse meu conhecido é amigo de Jesus, amigo íntimo, de sair para fazer caminhadas, conversar, dar risadas, falar dos outros e de muitas outras coisas. Enfim, amizade mesmo. Quando falo ninguém acredita que é verdade e sempre questionam por quê alguém como Jesus poderia ter amizade ou perder tempo com alguém tão comum e que certamente não poderia acrescentar nada na experiência do Mestre. Duvidam e dão essas explicações: Jesus talvez ajude ele quando está muito necessitado, mas é só isso. Esse negócio de amizade é lenda.
Digo que não é lenda , nem fantasia . É real. Jesus vem direto procurar ele e ficam horas conversando. Teve um dia que viram os dois jogando vôlei na praia. Outro dia se divertiram à beça com um cachorrinho salchicha (dachshund). O cachorrinho corria, corria pela praia e eles dois dando gargalhadas ao ver o animalzinho fazendo curvas a toda velocidade na areia.
Uns perguntam: mas eles conversam sobre o quê?
“Também não sei”, respondo, dizendo que talvez seja sobre coisas pessoais, confidências, sentimentos incômodos , sonhos secretos, idéias, projetos, preocupações.
Teve um dia que Jesus estava meio triste e até chorou, pois de longe deu pra ver que Ele estava enxugando as lágrimas passando os punhos nos olhos. Naquele instante vi esse colega colocando a mão no ombro D’Ele e comentando alguma coisa que não deu para saber o que era, mas que deveria ser algo como “Deixa pra lá, não fica assim não...” Em outros momentos esse meu amigo também já foi visto lendo algumas coisas para Jesus ouvir. Eram umas coisas escritas em folhas de caderno e que Jesus ouvia atentamente e dava opiniões sobre o conteúdo, sugerindo mudanças ou elogiando os trechos que mais gostou. Ele (Jesus) também toca violão e canta muito bem. Umas canções incríveis. A preferida dele é aquela do Bob Marley, No woman, no cry. Também gosta de uma bem antiga do Herivelto Martins, Ave Maria no Morro.
O mais curioso é que depois dessas conversas Jesus anda alguns passos e sempre some. Isso intriga muito as pessoas que tem a sorte de vê-los. Uma vez o amigo me contou que os dois estavam numa lotação e, de repente, Jesus levantou para dar lugar para uma jovem grávida. A jovem se acomodou e Jesus sumiu. A maioria das pessoas que estava ali nem percebeu o ocorrido. Uma velhinha ficou olhando meio assustada, mas logo voltou ao seu mundo, com medo que pensassem que estava ficando louca.
Também já perguntei a ele o por quê dessa amizade tão próxima com Jesus. Ele me disse que a amizade surgiu espontaneamente, do nada. Estava andando pela rua e Jesus surgiu ao seu lado dizendo umas coisas meio sem sentido, como por exemplo:
“Todo mundo é tão importante quanto você”. “Olha esse monte de pessoas caminhando em busca de alguma coisa. Você não acha que elas também têm o direito de serem felizes?”. “O rapaz que esbarrou em você há cinco minutos vai morrer nos próximos dias. Está correndo atrás de uma papelada que vai deixar a esposa e o filho seguros, até que o garoto cresça e possa trabalhar”. "A menina que você viu enfiar mão na bolsa da senhora em frente ao banco não pode voltar para casa porque a mãe dela quer que ela se prostitua. Ela prefere roubar do que vender o próprio corpo. Todo dia ela fala comigo e pede para que Eu dê um novo rumo para a vida dela, mas tá difícil encontrar ajuda”.
Daquele dia em diante, disse o amigo, sempre que acordo com um aperto no coração e um medo inexplicável, sei que Ele vai aparecer para falar algo que o deixa inquieto ou conversar sobre as coisas da vida. Tem dia que ele está alegre, tem dia que está triste. Nunca o vi zangado ou nervoso. Quando percebo que Ele está quase para explodir ou perder a paciência, então Ele olha diretamente para os meus olhos, como se fosse uma criança, e me faz um monte de perguntas sobre o que penso, o que sinto e o que eu faria nessa ou naquela situação.
Ele te pede conselhos? - perguntei espantado.
O amigo respondeu positivamente e disse que sempre ajuda o Mestre quando Ele está com os sentimentos confusos, mostrando quais são esses sentimentos e como reage quando isso acontece com ele.
Então é uma amizade profunda e sincera mesmo... Mas qual a origem da amizade? Porque você? O amigo me disse: “Já perguntei isso a Ele e me respondeu que eu era o único que estava disponível para ouví-lo num dia de muita angústia no coração. Sentiu-se tão bem com a minha atenção e o silêncio que vinha dos meus olhos que decidiu que eu seria o seu melhor amigo. Perguntou-me se eu permitiria essa escolha e eu apenas sorri. Ele entendeu e desde então somos bons amigos.
Mas é Jesus mesmo?
“Deve ser porque, sempre que tenho essa dúvida, olho para mim mesmo e vejo que sou eu quem está perguntando”.
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TARTARUGAS
ERA UMA VEZ uma indiazinha chamada Poty. Ela tinha quatro anos de idade morava na aldeia Tumiaru, perto do Itararé, uma linda praia com água límpida e borbulhante. A distância entre o mar e a mata era muito longa e possuía uma areia fina, quase branca.
A indiazinha gostava muito de andar pela praia a procura de conchinhas, com as quais fazia brinquedos e enfeites. Quando o mar estava calmo, Potyzinha corria com os pés dentro d’água e, de braços abertos, imitava as gaivotas que voavam em busca de peixes para comer. Quase sempre Poty estava acompanhada do seu amiguinho Curumim, um indiozinho dois anos mais velho que ela.
Curumim e Potyzinha eram considerados as duas crianças mais inteligentes da aldeia e também as mais danadas, pois estavam sempre procurando novidades e aventuras.
Certa vez a indiazinha estava em sua oca e, quase na hora de dormir, percebeu que a claridade do luar que iluminava a sua rede foi ficando cada vez mais forte. Ela pulou da rede e logo foi olhar o que estava acontecendo lá fora. Vendo a Lua no céu, muito brilhante, sentiu uma enorme vontade de caminhar pela praia. Não tinha medo, pois as crianças indígenas são muito cuidadosas e sabem se proteger dos perigos da natureza.
De repente, enquanto caminhava tranqüilamente ouvindo o barulho das ondas, alguém disse com uma voz bem suave:
- Olá menininha, que noite linda não é mesmo?
- Sim, uma linda noite! respondeu Poty, percebendo que se tratava de uma tartaruga muito grande e que por isso deveria ser pacata e experiente.
Dona Tartaruga parecia estar muito preocupada. Ela pede ajuda a Poty para ajudá-la a pôr seus ovos e protegê-los do perigo dos pássaros famintos.
- O que devo fazer? perguntou Poty.
- Faça um buraco na praia, não muito perto da mata, para não atrair as cobras. É preciso ser rápido. Já não tenho a mesma agilidade de antigamente. Tenho que enterrar os ovos antes de amanhecer.
No começo a indiazinha ficou um pouco confusa, mas logo entendeu que também precisava de ajuda, pois não conseguiria fazer sozinha esse buraco. Foi correndo até a aldeia e, sem acordar os adultos, começou a chamar o seu amiguinho de um jeito que parecia ser um canto de um pássaro noturno:
- Curumim, mim, mim, mim.... Curumim, mim, mim... Curumim, mim, mim...
E logo alguém respondeu, do mesmo jeito:
- Poty, poty, potyyyyyy. Poty, poty, potyyyy. Poty, poty, potyyyy….
Curumim já sabia que se tratava de alguma tarefa importante a ser feita. Sempre que acontecia alguma coisa diferente, a Potyzinha vinha chamá-lo para resolver algum problema. Voltaram os dois para a praia e começaram a cavar o buraco com as mãos. Dona Tartaruga ficou bastante emocionada com a ajuda dos indiozinhos e logo foi se arrumando para pôr os ovos. Quando terminou já era madrugada. Pediu então para Poty e Curumim cobrirem os ovos com areia e com muito cuidado. E disse:
- Agora devo voltar para o mar. Tenho que me alimentar e aguardar que o ovos choquem. Dona Lua me garantiu que vocês são crianças muito boas e que irão cuidar dos meus ovos enquanto eu estiver longe.
Curumim e Poty olharam para o céu e viram que, enquanto Dona Tartaruga falava a Lua ia ficando mais viva e toda a praia ficou iluminada pelo luar. Poty entendeu também que deveria vigiar os ovos todos os dias. Combinou com o amigo Curumim para que se revezassem na vigília: ela de dia e ele de noite. Dona Lua prometeu avisar caso ocorresse algum perigo.
E assim aconteceu. Numa dessas noites de vigília, Curumim chamou Poty para ver o que eles já esperavam ansiosos: a areia da praia começou a se mexer e dela foi saindo muitas tartaruguinhas que, muito agitadas e com muita pressa, corriam em direção ao mar.
Poty percebeu que naquele instante surgiram pássaros negros no céu e começaram a perseguir as tartaruguinhas. Os dois começaram a gritar e bater pedras para espantar os pássaros. Dona Tartaruga observa tudo bem de longe. Não podia fazer nada, pois os filhotes tinham que aprender a viver sozinhos e defender-se contra os perigos do mar e da terra. Só pediu ajuda para os dois indiozinhos porque já estava bem velha e tinha medo de perder muitos filhotes.
Dona Tartaruga estava muito contente com a vitória de Poty e Curumim sobre os pássaros e prometeu que, daquele dia em diante iriam fazer de tudo para que os dois amiguinhos tivessem uma grande alegria, como a que ela estava sentindo naquele momento. Despediu-se de todos e voltou para o mar. Tudo ficou calmo novamente na praia do Itararé.
Poty e Curumim sentaram na areia e ficaram olhando as estrelas do céu e que também iam sumindo lá no infinito do mar. Um vento frio lembrou os dois amiguinhos que estava na hora de dormir e foram para aldeia enquanto, já longe da praia as tartaruguinhas começavam a viver suas vidas.
Tempos depois Dona Tartaruga voltou ao Itararé e não era para pôr ovos. Queria ver e fazer um convite para os dois indiozinhos. Dona Lua já sabia do que se tratava e primeiro chamou Poty com a sua claridade. Logo os dois surgiram assustados na praia pensando que havia acontecido algo de ruim quando vira Dona Tartaruga. Ela tinha vindo para levá-los em uma viagem pelo mar e perguntou se estavam dispostos a ajudar uma baleia que estava encalhada há centenas de quilômetros dali. Viajariam a quase a metade da noite e , se tudo desse certo, voltariam bem antes de Dona Lua se esconder do Sol. Poty e Curumim tinham os corações apertados naquele instante. Subiram no casco da amiga e foram cortando as ondas e o vento pensando o tempo todo na agonia da baleia. Dormiram durante a viagem e, quando acordaram, já estavam em outra praia vendo a enorme baleia rodeada de golfinhos e muitas crianças índias como eles. Todos gritavam em uníssono FORÇA, FORÇA, FORÇA. E logo os dois indiozinhos estavam gritando também , mergulhando e cavando com as mãos a areia que impedia que a baleia nadasse de volta ao mar. Eram tantas crianças que não dava mais para saber onde estavam Poty e Curumim no meio de tanta gente. Então todos pararam de gritar e Dona Lua se encheu de luz despertando a força dos ventos e das ondas. Todas as crianças correram para a praia com medo de se afogarem. Em poucos instantes a baleia estava livre e jogando enormes jatos de água para o alto. As crianças viram aquilo e começar a gritar de novo, agora gritos de alegria enquanto a baleia desaparecia no mar. Dona Tartaruga não estava sozinha. Muitas outras como ela carregavam um ou dois ou três indiozinhos no casco e foram desaparecendo no mar para levar suas crianças para suas aldeias. Poty e Curumim não dormiram na viagem de volta. Já em suas ocas , ainda ouviam o barulho das crianças vendo a baleia se soltar do chão da praia. Dormiram rindo e depois sonharam com isso até o amanhecer.
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DISCOS VOADORES
COM EXCEÇÃO dos curiosos, fascinados e especialistas no assunto, pouca gente sabe que o litoral paulista é um dos lugares do Brasil onde mais se registra a presença de objetos voadores não identificados, OVNI. No litoral norte, entre Bertioga e São Sebastião, os registros de aparições são antigos e frequentes , com relatos insistentes de naves percorrendo o céu durante as belas noites estreladas e também durante os dias ensolarados. No litoral sul os relatos são mais radicais e assustadores, pois as naves pousam e deixam marcas visíveis no chão, sempre e propositalmente em locais onde há muitas testemunhas. Em Mongaguá, Itanhaém e Peruíbe ninguém mais se impressiona com essas histórias, tanto que os aficionados no assunto, pesquisadores e editores de revistas especializadas passaram a se encontrar anualmente nessa região para discutir e avaliar esses fenômenos. Peruíbe é cidade escolhida para os congressos e instituiu oficialmente o evento que atrai interessados de vários lugares do Brasil e até do exterior.
Em Santos as aparições durante as queimas de fogos de Reveillon são fartamente filmadas e publicadas nas redes sociais. Já faz parte da expectativa dos turistas durante as passagens de ano.
Nos morros do Voturuá e Itararé, em São Vicente, os praticantes de voo livre registram e relatam a presença de grandes bolas metálicas, alinhadas horizontalmente sobre o mar, em plena luz do dia. Foram dois avistamentos na área insular:, o primeiro no dia 6 de agosto de 2006, às 15:30h, com esferas brancas formando um triângulo; e o segundo em 2008, quando foi vista uma verdadeira frota de esferas brancas, passando de 500 o número delas, formando uma ordem de três grupos. Nessa última aparição, ao aterrissarem seus equipamentos no gramado da orla vicentina comunicando a visão, logo se espalhou a notícia, pois alguns os banhistas também correram ao encontro dos esportistas para confirmar suas visões fantásticas.
Mas de todos os relatos durante esses longos anos de aparições, o caso ocorrido no Mar Pequeno, próximo à foz do rio Piaçabuçú, é considerado na escala de importância fenomênica dos OVNI o mais impressionante de todos os tempos. Foi um Contato Imediato de Segundo Grau, com efeitos mecânicos, eletromagnéticos e psicológicos. Mesmo sendo uma história relatada por pescadores, a aparição ocorrida em 01 de outubro de 1995 não deixou entre os investigadores nenhuma dúvida sobre veracidade e autenticidade do ocorrido, por causa do impacto sofrido pelas pessoas que tiveram contato com o objeto, considerado de grau altamente significativo, com provas materiais irrefutáveis.
A nave de intensa luz surgiu por volta das 23 horas sobre uma embarcação de pesca estacionada próxima no rio e ali permaneceu alguns minutos, tempo suficiente para impactar os pescadores, causar pane elétrica na embarcação e deixar marcas e efeitos duradouros nas testemunhas. O caso foi registrado por reportagens locais e por isso atraiu muitos curiosos e especialistas, exatamente porque os vestígios eram inegáveis, embora dentro dos padrões já conhecidos.
O caso Piaçabuçu-Mar Pequeno, ocorrido na área continental, está registrado até hoje na memória dos sobreviventes e familiares, cujos depoimentos fazem parte do acervo de documentários sérios sobre esse tema. Os pescadores Fernando Bezerra da Costa e Wilson da Silva Oliveira lançavam redes no rio quando foram surpreendidos pela luz. Percebendo o perigo de algo desconhecido e imprevisível, Wilson se escondeu dentro do barco. Fernando permaneceu do lado fora, tentando saber do que se tratava aquele estranho objeto voador, pois não havia barulho de motores nem fumaça. Sua curiosidade expôs seu corpo à uma radiação muito forte, causando-lhe posteriormente graves mudanças no seu metabolismo. Na época ele pesava mais de 100 quilos e depois do incidente teve uma perda da metade do peso e sua saúde permaneceu instável por muitos anos. Wilson, apesar de escondido, teve graves alterações cardíacas, tendo que usar uma válvula artificial no coração por dez anos.
As provas desse avistamento em São Vicente causou grande repercussão porque as provas materiais eram marcas de pouso do mesmo objeto luminoso sobre a ilha próxima, causando a desidratação na vegetação num raio cinco metros, sem nenhum vestígio de fogo. Além disso, foram encontradas marcas de sapatas de padrão desconhecido na mecânica de aeronaves e com grande profundidade no solo.
Não há explicações científicas conclusivas para esses fenômenos vistos e fartamente relatados, apesar da repetição de registro dos mesmos. A ufologia tenta há anos estabelecer uma síntese e uma teoria de classificação fenomenológica, mas, ainda assim, enfrenta forte resistência entre os céticos, que não sabem explicar as evidências deixadas nos avistamentos.
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AVISTAMENTO NO ITAIPU
Final de década de 1950. O Forte de Praia Grande é um antigo sítio colonial localizado na encosta de Itaipus, morros que formam um maciço e uma península na barra sul da Baia de Santos. A vizinhança é composta por alguns sítios e chácaras antigas e algumas casas de veraneio na direção da praia do Boqueirão. É um lugar isolado e ainda tomado pela mata atlântica, com poucos pontos de ocupação. A pequena praia que fica do outro lado do maciço é completamente isolada e fechada para os banhistas civis, assim como as dependências da base militar, construída para proteger o porto e a ilha de São Vicente. No período noturno a sensação de isolamento e solidão é mais intensa, predominando um silêncio florestal, um forte cheiro de mato, misturado com a maresia. Não se escuta nenhum barulho dentro ou fora da área quartel e raramente acontece alguma movimentação de veículos particulares ou de serviço.
As sentinelas do Forte, distribuídas em vários pontos da propriedade, funcionam como os únicos meios e elos de comunicação entre os ocupantes da antiga gleba e os moradores dos arredores. Tudo que acontece dentro ou fora do Forte, passa primeiro pela guarda, que filtra as informações por meio dos oficiais que verificam rotineiramente as ocorrências percebidas e registradas pela vigilância.
O Forte é também um lugar de segredos. Segredos militares, controlados pela ordem hierárquica e regulatória; e também segredos comuns e cotidianos, sem nenhum controle hierárquico e burocrático. Essas últimas são ocorrências geralmente curiosas, fora do padrão disciplinar, e correm numa velocidade espantosa, extrapolando os muros, cancelas e tomando rumos e destinos incertos, sempre levadas pelos que entram e saem diariamente.
A ocorrência ali registrada na noite de 4 de novembro de 1957 foi uma dessas que alteraram completamente a rotina e o clima de convívio na Fortaleza. Duas sentinelas, de forma totalmente inesperada, foram surpreendidas por um evento sobrenatural, certamente indescritível pelas meios normais dos testemunhos humanos. São relatos que destoam da percepção e senso comuns. Além das sentinelas, o próprio oficial comandante da Fortaleza, presenciou a ocorrência e testemunhou visualmente o fenômeno manifestado à céu aberto. O Tenente Coronel Adston Pompeu Piza não teve dúvidas de que estava registrando uma ocorrência completamente fora do normal e dos padrões reconhecidos pela ciência e tecnologias conhecidas naquela época. O mundo de então já realizava experiências avançadas, porém, o que foi visto naquela noite na Fortaleza ainda poderia ser considerado raro e espantoso diante daquelas testemunhas. Os testes nucleares já estavam acontecendo em varias regiões do planeta , sob a vigilância das duas superpotências em franca competição de poderes. O céu do ocidente já era povoado por satélites espaciais e naves tripuladas por bichos domésticos, como a cadela russa Laika, que naquele ano havia sido enviada ao espaço pelos pesquisadores soviéticos. O General George Marshal já tinha sido visto na Fortaleza de Itaipu, cumprindo uma rotina de visita a bases militares brasileiras alinhadas com o bloco da OTAN. Naquele mesmo ano, no Brasil, dois acidentes aéreos causaram a morte de todos os tripulantes e passageiros, mais de 80 pessoas. As aparições de objetos voadores se tornaram frequentes naquele período, em vários lugares do Brasil e os relatos se sucediam de forma também espantosa. Em Praia Grande as sentinelas foram atingidas pela luz intensa de uma esfera vermelha, a mesma vista pelo Comandante Adston e também pelos soldados de plantão. Mesmo mantendo segredo militar sobre alguns detalhes considerados inconvenientes para o conhecimento público, o oficial compartilhava repetida e cansativamente sua experiência para familiares e amigos, para não deixar nenhuma dúvida sobre a veracidade do acontecimento e a credibilidade dos soldados-sentinelas ou de qualquer morador dos arredores que testemunharam o fato. O relato oficial foi feito e inclusive retransmitido para outras organizações militares, no caso dos EUA, especializadas e interessadas em fenômenos semelhantes.
Este foi mais um segredo que extrapolou os muros do Forte. Não havia como contê-lo. Nem o comandante se conteve. Era questão de vida e morte e também de razão e sanidade mental. Ver e relatar um fenômeno raro e impressionante não ficava apenas na no aspecto da informação casual e suas repercussões triviais. Surgem muitas dúvidas sobre o significado do acontecimento, coisas que fogem do senso comum. As pessoas sempre questionam se esses fatos são produtos do acaso ou se elas estavam predestinadas a passarem por essas experiências, já que tais acontecimentos causam impactos significativos nas vidas delas. O Tenente Coronel Adston Pompeu Piza, por exemplo, depois de cumprir sua missão de comando no Forte, fixou residência no Boqueirão, onde só frequentava como veranista. Dez anos depois do seu contato com um OVNI no Forte, o oficial se viu envolvido na tarefa de conduzir os novos destinos políticos da cidade, no momento em que Praia Grande rompia seu vínculo político com São Vicente, passando a cumprir um destino totalmente diferente após a emancipação. Adston não era um oficial comum. Lutou na Itália como capitão da FEB e tinha formação específica na matéria Estado Maior das Forças Armadas. Foi encarregado de elaborar um plano estratégico que colocasse Praia Grande como um elemento novo e integrado no contexto da geopolítica regional e nacional. Durante várias semanas ele se debruçou no estudo da geografia física do litoral e frequentava diariamente as instalações da Capitania dos Portos em Santos com a missão de desenhar e estabelecer os pontos divisórios do novo município, respeitando os limites e possibilidades naturais e contemplando as necessidades e tendências da política territorial vigente. Muitas dessas definições escolhas são visíveis e transparentes nos mapas, com razões e explicações óbvias. Entretanto, muitas outras foram por razões impublicáveis, consideradas razões e segredos de Estado. Quais foram elas? Pelos mesmos motivos, o Tenente Coronel Adston Piza também deve ter se perguntado no dia seguinte ao 4 de novembro de 1957: Por que essa esfera de imensa luz vermelha se manifestou exatamente nas sentinelas do Forte? Por que somente eu e os soldados de guarda naquela noite testemunhamos esse fato? O que tinha por trás desse fenômeno? Era algo de natureza espiritual? Era de natureza geopolítica e proposital? Havia dentro do Forte algum tipo de segredo militar guardado – que era muito comum no contexto da Guerra Fria - que interessava aos seres extraterrestres? Por que fizeram questão de aparecer, quando poderiam ter se mantido ocultos? Por que Praia Grande nasceu nesse momento e qual seria o seu papel como nova cidade da região e do estado? Seria coisa do destino ou foi tudo uma mera coincidência?
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BEM-AVENTURANÇA
A chuva forte do fim de tarde apressa a nossa entrada ônibus.
Um dos passageiros entra pela porta de trás. Permanece em pé.
No rápido percurso da vila até o centro-praia, ele observa cada um dos que estão sentados, que saíram ou estão voltando para casa.
Está inquieto e angustiado.
Alguns pontos à frente explode em choro convulsivo.
Inconformado, relata que foi forçado a deixar sua casa como medida protetiva. O oficial de justiça foi categórico.
Saiu com a roupa do corpo, shorts, camiseta e chinelos e um saco-mochila com alguns pertences. Já se prepara para ser um novo morador em situação de rua e teme ser maltratado. Já é idoso.
Alguns passageiros dizem algumas palavras de consolo e encorajamento.
Será sua primeira noite na rua. Está lúcido, mas muito abalado. Diz que vai até a delegacia reclamar.
Alguém lembra que ali perto tem um abrigo público e que ele não precisa dormir na rua. Ele reage com um brilho nos olhos e um pouco de sorriso.
Desce e caminha solitário.
Já está bem escuro e lá fora a chuva aperta.
Uma senhora ao meu lado, que ficou o tempo todo de cabeça baixa, só abriu os olhos para ver que rumo o nosso irmão havia tomado. Sorriu timidamente, levantou-se e também despediu-se de nós.
SOBRE O AUTOR
Dalmo Duque já escreveu duas ficções: “Estação Amizade- Dez jovens lutando contra o suicídio” e “2036, uma jornada além da Data Limite”. Como historiador, escreveu “Como Vai Você – CVV, 50 Anos ouvindo pessoas” (Editora Aliança), sobre a ONG mais importante de prevenção do suicídio nas Américas. É autor da Nova História do Espiritismo- Dos Precursores de Allan Kardec a Chico Xavier (Editora do Conhecimento)