08/07/2019

VULTOS E FANTASMAS. Dalmo Duque



PARTE I : VULTOS E FANTASMAS

PARTE II: MORADAS 

PARTE III -ESPÍRITOS NAS ESCOLAS (VIVÊNCIAS)

SÃO VICENTE 

2020-2024 




SONHOS E LEMBRANÇAS


Na minha adolescência sonhei diversas vezes com uma antiga paisagem vicentina. Sonho vivo, no qual perambulava por esses lugares, com o coração apertado, porém bastante familiarizado com tudo que via ao meu redor. Era uma cidade silenciosa, muito verde, sem barulho de automóveis ou de multidões. Nem os bondes eram barulhentos e também não havia muitos cavalos circulando. Tudo era muito perto e tranquilo, assim como registraram os pincéis de Benedito Calixto nas telas ou em diversas fotografias onde aparecem o Morro dos Barbosas, a rua do Colégio e alguns velhos edifícios da Vila Afonsina (hoje todos desaparecidos), o campo onde seria criada a Praça 22 de Janeiro e finalmente a Biquinha de Anchieta. Interessante que nesse primeiro período no qual morei em São Vicente, de 1974 a 1985,  não frequentava esses lugares. Fui conhecer a Biquinha quase meio século depois, mesmo morando há apenas algumas quadras dali. Via as fotos e cartões postais, mas não me interessava. As telas do Calixto só conheci em 2020, há poucos meses, quando escrevia essas histórias. Isso me fez lembrar outra curiosidade. No início dos anos 1980, quando recebemos a visita de amigos argentinos e uruguaios, andando pelas ruas próximas à orla, uma das visitantes nos disse que minha mãe já havia vivido em São Vicente em outra época e que andava nesses mesmos lugares os quais estavam visitando. Minha mãe não se lembra de nada. Talvez tenha sonhado muitas vezes, como eu, mas achava que era apenas sonho.



SUMÁRIO 

1. ALVORADA 
2. O MONSTRO 
3. O PADRE 
4. CANANEUS 
5. CINEMATOGRÁFICA 
6. O VISITANTE 
7. O PARANORMAL 
8. A ESCULTORA 
9. SERTANISTAS 
10. A PONTE 
12. O REMADOR 
13. O APÓSTOLO  
14. INOCENTES 
15. POSTO DE ESCUTA 
16. MOLHES 
17. SINAGOGA ESPÍRITA 
18. LEGIÃO NEGRA 
19. CALUNGA 
20. O GRÁFICO 
21. RAIMUNDÃO 
22. AMIGO 
23. TARTARUGAS 
24. CAMINHOS 
25. O PIANISTA 
26. DISCOS VOADORES 
27. O MÉDICO 
28. PERTO DA SERRA, LONGE DO MAR. 
29. FICAR EM PÉ 
30. CAFÉ DE SOLDADO
31. BUQUÊ DE FLORES
32. O CENTRO CÍVICO E O GENERAL
33. OS LIVROS E CADERNOS DA MENINA FILOMENA
34. QUEM É O MIGUEL DE VOCÊS DOIS?
35. ROSE MAURA
36. AVISTAMENTO NO ITAIPU
37. SITUAÇÃO DE RUA




ALVORADA 


SOU DO TEMPO em que São Vicente era Pindorama e só havia índios carijós habitando essa região. Eu e Poty conhecíamos cada pedaço da ilha e também as terras da Serra, onde mora Tibiriba, a nossa amiga de caminhadas e aventuras da imaginação. Entre os índios, como acontece em toda a raça humana, imaginar é construir o que vai acontecer. O que passou fica na lembrança e deve servir sempre de alerta para o que está acontecendo. Mas o que vai acontecer é pura imaginação. Lembro de tudo o que vivi em São Vicente, desde quando não existia uma só casa de pedras e tijolos. Vi muitas chegadas e partidas e tenho lembrança de todas as pessoas que, como eu, aqui viveram e reviveram suas fantasias na infância, as ilusões na juventude, as desilusões adultas e a resignação da velhice.
Quem vive em São Vicente, por mínimo que seja o tempo da existência, tem seu destino traçado por orientadores de Alvorada Nova, um mundo paralelo, das causas, que guarda todas as nossas memórias e define o tipo de experiência teremos que realizar no mundo fenomenal dos efeitos. Alvorada Nova tem portais de acesso e retorno em vários pontos da região, desde Peruíbe até a Bertioga. Foi imaginada e erigida por europeus, indígenas e africanos que já ultrapassaram barreiras dos sentidos físicos e vivem livres e senhores de si mesmos. É ao mesmo tempo um Céu, um Pindorama e um Kalunga. Eles pensam em conjunto e as coisas ficam prontas e luminosas, sem dificuldades, com as suas mentes limpas e cheias de virtudes. Alvorada Nova também tem uma parte escura, que reflete as mentes sujas e impuras, ainda dominadas instintos e pelas escolhas errôneas, vivendo ali os que têm os corações oprimidos pelos sentimentos ruins e sentem falta da privacidade e das ilusões da carne. Na luz vivem os nossos orientadores, pessoas boas e alegres, como o Padre Vicenzo, as educadoras Anália Franco, Escolástica Rosa e Irmã Dolores, o farmacêutico Cairbar Schutel, o médico e poeta Martins Fontes e muitas outras almas de ciência e empreendimento, conhecidas e desconhecidas de quem está na carne. Na escuridão de Alvorada Nova, nos umbrais, ainda vivem os perdidos na erraticidade, os criminosos, os orgulhosos e presunçosos, os preguiçosos e todos os egoístas e ressentidos, nossos irmãos, de todas as raças, que ainda não conseguem amadurecer o suficiente para voltar à luz depois dos erros e do desperdício do tempo da existência. Eu que o digo, por tudo que vi, tudo que passei e ainda estou passando. Tem também os que vivem nas paragens medianas, do lusco-fusco, gente sem maldade no coração, mas ainda escravos de costumes, crenças e ideias, que aos poucos vão se iluminando. Eu vivo nessa faixa, ora embriagado de luz, ora derrotado pelas paixões. Nos finais de tarde, quando trabalhava em uma escola no Solemar, apareciam por lá os Condutores de Almas vagantes. Eles não podiam ser vistos pelos seres perdidos e estes os conduziam pelo sopro nos ouvidos. Sopravam também nos meus, para que os socorressem. 
“Aponte para aquelas nuvens que estão em próximas da montanha e ordene a eles que olhem naquela direção. Digam que eles devem ir para lá... Diga que obedeçam e que se dirijam para a montanha, que é a portão da volta para casa”. 
Alguns iam rapidamente desaparecendo nas nuvens. Outros tinham dificuldades, mas depois conseguiam. Nesse portal do Solemar, perto da cidade da Criança e junto à serra, sempre se formam  arcos-íris, anunciando a migração de almas dos umbrais para as esferas mais altas. 
Tenho nome, mas não posso e não devo revelar porque, apesar da minha idade avançada, desta minha última jornada cronológica, no tempo da consciência, ainda sou criança, sem o domínio da Mente Maior, fruto que ainda não foi ao chão e não caiu em si. Minha bússola diz que ainda não chegou o momento da minha ruptura – para não voltar mais ao mundo fenomenal – e entrar definitivamente no outro lado da Vida, no mundo pleno. Por isso, como a maioria da humanidade, ainda existo, incompleto, oscilante; ora no astral - o mundo dos sentimentos e das emoções-; ora na carne, aprendendo a pensar e criar coisas puras quando habito o éter; e também quando nos corpos sanguíneos, desviando-me das ilusões, lutando para controlar os impulsos e os instintos. Sou Espírito comum e iniciante, mais inclinado aos erros do que nos acertos. Pertenço à uma grande família do ramo tupy, desde a longa caminhada que nos trouxe das terras frias da Ásia para esses lugares quentes do sul do continente americano. As linhas dos nossos destinos foram traçadas há muitos milênios e numa delas houve, em tempos muitos remotos, um cruzamento acidental com as tribos celtas que ocupariam a península ibérica. 
Nesse período de contato, de luta entre a força e a harmonia, adquirimos compromissos mútuos que o tempo se encarregaria de ajustar. É nessa família que tenho as raízes e os vínculos mais antigos e na qual posso viver e reviver, sempre que necessário, no recôndito do ventre de mães generosas da nossa raça. Outras vezes, com a permissão e gentileza de outras famílias afins, encontro abrigo no seio de outras etnias que aceitam heroicamente a tarefa de iluminar o meu pobre espírito. 
Assim, de tempos em tempos, mergulho na carne, existo por alguns anos, entre o gosto amargo das provas e o gozo dos prazeres. Mas guardo na memória todas as cenas e acontecimentos e conservo delas as experiências que têm valor para a alma. As demais eu esqueço ou então volto ao mundo físico para que se desfaçam em outras provas de dor e longe das tentações. 
Poti e Tibiriba, almas amigas, sempre me acompanham nessas idas e vindas à carne, por necessidade e também por amor e vontade de me ajudar. Elas já se purificaram mais do que eu e nem precisam existir mais nessa minha frequência e, mesmo assim, gostam de rever-me nos mesmos cenários, em situações diferentes, só para ver como eu me saio em novas provas; e também para rirmos juntos das minhas trapalhadas. 
Um dia não vou ser mais criança. Vou dormir Curumim e acordar no meio da longa noite transformado e maduro, revelando o meu nome verdadeiro, dado a mim quando fui criado por Tupã e que está guardado no coração de Yara. Aí então vou poder pronunciá-lo com a minha própria boca e dizer quem eu sou sem receio e aparências. 
Hoje é sábado, 11 de janeiro de 2020 e são 8 horas da manhã. 



O MONSTRO 

NESSE INSTANTE minha mente está cheia de recordações. Meus olhos estão olhando para o chão molhado pela chuva de verão e meus ouvidos ouvem os repetidos trovões que anunciam que vai chover o dia inteiro, espantando os turistas que caminham pelo calçadão da praia e os que aproveitavam os últimos minutos de sol deitados sobre a areia.
Os ritmos da natureza ainda são a suprema força que movimenta o planeta. A chuva, o vento e os trovões despertam em mim a vontade de ver o mar e a arrebentação das ondas. É irresistível e faço isso há séculos. Antes tinha muito medo dos raios. Hoje sei que eles ainda caem por perto, mas conto com abrigos dos quiosques ou das marquises dos prédios perto da orla.
Saio de casa e em poucos minutos estou lá olhando o mar. Mais alguns minutos e duas ou três trovoadas são suficientes para eu ver a praia com outros olhos. Não tem calçadão, quiosques, não tem avenida asfaltada e edifícios altos. Não estão lá também os moles de pedras construídos para conter as ressacas, quebrando a mureta e inundando a rua. Ao redor só areia e o jundú rasteiro sobre as ondulações de terra. É a Mahuá, a pequena praia entre o Morro da Biquinha e a Ilha do Mudo, na qual deságuam alguns riachos, cavando sulcos na areia. Do outro lado da baía vejo o Morro do Japuí e parte da floresta do Xixová.
Já fazem duas décadas que o novo século começou e São Vicente está praticamente a mesma desde quando fui morar em São Paulo em 1985. Vejo na internet fotografias antigas da cidade, em diferentes épocas, e percebo que houve poucas mudanças nos pontos mais importantes. Algumas delas são repetitivas e banais, como o os cartões postais. Outras me causam sensações mais profundas, talvez porque registraram momentos, lugares e pessoas que conheci. Essas são emotivas e despertas muitas lembranças. Tenho essa habilidade natural de ler fotografias com o terceiro olho e parece que entro naquela cena registrada e tudo passa a ter três dimensões. Achei que era um fenômeno sobrenatural, mas logo desfiz essa impressão ao ler o livrinho de Boris Cosoy, catedrático do assunto, teórico e prático. O jeito como ele analisa as fotografias são descobertas de diferentes dimensões da mesma imagem. Com ele parece ser fria e racional; comigo acontece de forma temperamental e perturbadora. O mesmo acontece quando passo em algum lugar no qual sou tomado por desequilíbrios, coisa incontrolável, como um transe psíquico ou sonambúlico.
Sigo caminhando e conforme me aproximo do Itararé a paisagem retoma sua aparência de cidade grande e ouço barulho de carros em alta velocidade em direção a Santos. No fim da calçada entro na Praia dos Milionários, que está vazia de banhistas e com apenas alguns trabalhadores ciclistas que cortam caminho para evitar o trânsito da rua 11 de junho. Ali fico um bom tempo apreciando a baía, onde reina uma certa paz, proporcionada pelo silêncio do mar. Tento me recompor desses transes de memória, dos quais já me acostumei e que me deixam até mais senhor de mim mesmo. Antes ficava assustado e com a impressão de que a loucura havia se instalado em minha mente. Mesmo assim fico apreensivo porque, quando isso acontece, algo em seguida surge algo inesperado e só passa quando o coração não fica mais apertado.
Alguns minutos depois ouço alguém chamando repetidamente pelo meu nome. Era Isabela, filha de uma amiga que sempre encontro nesses passeios pela orla. Raramente conversamos e somente trocamos uma rápida saudação de reconhecimento. Dessa vez ela se antecipou e se dirigiu a mim de forma bem diferente. Estava sorridente e eufórica, muito inquieta. Disse que precisava me contar uma coisa. Estranhei, pois ela nunca havia me contado nada. Achei que era alguma fofoca que haviam contado sobre mim e que ela soube através da mãe. Nada disso. Me pegou pelo braço e disse que tivera à noite um sonho muito estranho. Começou a falar e já não estava mais sorrindo. Sua mão segurou mais forte o meu pulso e foi apertando na medida em que a história se desenrolava. Disse que estava na praia e foi surpreendida por uma tempestade. O céu foi ficando escuro, todos foram sumindo das ruas e ela foi ficando perdida e sozinha. Apavorada lembrou que morava por perto e dirigiu-se para o meu apartamento, já em meio ao caos que tomava conta da cidade, com chuva de vento e redemoinhos gigantescos que percorriam as ruas arrancando telhados, revirando carros, quebrado e arrancando vidraças. Já dentro da minha casa percebeu que as coisas haviam piorado com a ventania tirando pedaços dos prédios vizinhos. Os redemoinhos eram tão fortes e densos que forçavam e quebravam as janelas dos apartamentos. Ela tentava falar comigo pelo celular, pois eu não estava em casa; tentou falar com a mãe e com alguns amigos e ninguém atendia. Convenceu-se de que já estavam todos mortos. Tentando enxergar o mar, quando se aproximava da janela da sala, era logo atacada pela rajada de vento e pelas vergastadas de chuva sobre a vidraça. Ouvia muitas vozes que vinham de longe dizendo que a cidade estava sendo totalmente destruída pelo ciclone. Outros gritavam enlouquecidos: “É o Hipupiara, é o Hipupiara”. Acordou com esses gritos de desespero. Ainda era madrugada. Não dormiu mais. Só ficou mais calma quando me viu andando pela praia e pensou que eu havia tido o mesmo sonho. Percebeu que, embora não aparecesse no sonho, eu estava perto dela o tempo todo testemunhando a sua angústia. Disse, espantada, que nunca havia sonhado daquela forma tão intensa e verdadeira, embora estivesse totalmente fraca e impotente diante do que acontecia. Queria explicações. Respondi que não sabia explicar e nem soube que havia chovido tanto naquela noite, pois havia tido um sono muito profundo. Só não contei pra ela que , enquanto falava e segurava o meu pulso, vi tudo o que se passava naquela sonho, exatamente da forma como contou e como percebeu a minha presença nele. Isabela não estava inventando nem mentindo. O Hipupiara havia voltado com toda a sua fúria, a mesma fúria com que tinha destruído o Tumiaru e todas moradias da vila de Martim Afonso em 1540. Daquela vez foram somente algumas casas e o sino da igreja. Agora seriam os edifícios, os monumentos, muitos automóveis e motocicletas que iriam ser tragados pela fúria do mar. Enquanto Isabel falava e se aliviava daquele pesadelo, meu coração era tomado pelo pavor e a certeza de que a qualquer momento o mundo todo iria acabar, pois tinha visto que não era somente a cidade que foi tomada pelas águas. O mar havia chegado até a Serra, como era há cinco mil anos, antes de recuar e formar as ilhas, as praias e os morros. Depois que soltou meu pulso Isabela parecia ter tido um delírio semelhante a um transe sonambúlico que a fez esquecer tudo que me contara. Despediu-se sorrindo e saiu correndo para fugir dos pingos da chuva que voltaram após uma breve estiagem.


O JESUITA 


DALI MESMO fui até a Pedra do Sol. Ninguém por perto. Encostei numa das pedras tentando entender o que aquela pequena ventania queria me dizer. Entendi que era preciso subir a rua da Ilha Porchat, caminhando pela calçada do lado direito. Passando algumas casas , quase já no topo, tem o matagal de onde é possível ver Paranapuã e Itaquitanduba, as duas praias milagrosamente desertas, quase tão selvagem quanto na época da chegada dos primeiros europeus.
Sentei-me na mureta e continuei olhando o movimento das ondas entre a ilha e o maciço Xixová-Itaipu. Em alguns momentos tive a impressão de ter visto enormes bancos de areia e nelas, tombadas de maneira irregular, algumas torres pontiagudas de pedras. Não é um lugar comum. É um santuário protegido por forças desconhecidas e que desestimulam qualquer tentativa de civilizar aquele local. 
Já é fim de tarde e vejo que há um movimento suspeito em Paranapuã. De longe dá prá ver que são jovens que perambulam pelas areias numa agitação alegre. São somente meninos, a maioria negros e mulatos, todos usando calção de mescla azul. Subitamente me vejo na praia junto eles e não sei como fui parar lá, no meio daquela correria. Também estava de calção, mas um calção branco meio encardido. De longe alguns homens altos e fortes, de braços cruzados, nos observam enquanto corríamos pela areia, depois do banho de vento. Ficamos ali brincando até cansar, quando alguns sentaram no chão, outros deitaram até que a euforia da brincadeira fosse vencida pelo cansaço. 
Ao sinal dos vigilantes fomos todos entrando em fila por uma trilha até chegar em uma grande construção de tijolos e concreto, que parecia ser uma escola, mas não era. Uma placa de metal segurada por caibros de madeira informava que naquele local funcionava uma unidade da Fundação do Bem Estar do Menor-FEBEM. 
Interessante que ao entrar na fila da volta da praia ninguém percebeu minha presença, a não ser alguns meninos que, como eu, estavam de calção branco e tinham feições de mamelucos e não dos mulatos e negros. Enquanto alguns se dirigiam para tomar água nos bebedouros ou tirar a areia dos pés nas torneiras, muitos permaneciam sentados num pátio onde aguardariam o jantar. Entre eles percebi que muitos não eram crianças e quando alguns deles percebiam a minha presença passavam a me olhar de forma diferente. 
Uns se envergonhavam, outros sorriam e outros me desafiavam com reprovação e ameaça. Reconheci todos eles, lembrando os nomes e de quem eram filhos. Alguns poucos eram os primeiros caçadores do Bacharel e outros eram de outras épocas e lugares próximos, mas todos capturadores e mercadores de escravos. 
Nem todos porque entre eles também estava o Padre Vicenzo, magrinho e esperto, sempre sorridente, mostrando-me um crucifixo de madeira e querendo me dizer que ali estava para aprender um pouco mais e cuidar de algumas almas queridas que ainda tinham muitos pecados para espiar. Acenei pra ele dizendo que morria de saudades das suas aulas de teatro e canto. Só não gostava da missa. Conhecia todas as famílias brancas e indígenas da região e tinha um inventário de tudo o que acontecia com elas, desde as crianças até os mais velhos. Perguntei onde estavam algumas delas e ele, em pensamento, me contou que tiveram diferentes destinos, mas sempre voltavam a São Vicente, de alguma forma. Ele as reconhecia nas ruas e tocavam em seus corações ao aproximarem e elas nem percebiam. Apenas davam gargalhadas ou então sentiam algum tipo de saudade inexplicável, como a que senti ao vê-lo sorrindo entre os meninos presos na FEBEM. Quis chorar naquele instante, porém ele me advertiu que eu poderia ser descoberto por alguns mamelucos ainda muito teimosos e revoltados, causando algum tipo de inquietação naquele local. 
Padre Vicenzo lembrou que o governo já estava pensado em desativar os reformatórios em todo o estado e encontrar outra forma de educar essas crianças. Esse formato era muito perigoso e atraia muitas almas inimigas e vingativas, como nas as prisões de adultos e hospitais psiquiátricos. Naquele momento recordava de todos os abusos e violências sofridas pelos nossos irmãos e que as mesmas coisas aconteceram com os africanos escravizados. “Até chegar a solução –disse o padre - já nos preparamos para enfrentar outras batalhas, pois os meninos já estarão adultos e poucos terão forças para se reajustarem com a lei. Daqui há algum tempo estaremos lá nas terras do Samaritá e em Mongaguá, reconduzindo as nossas almas perdidas”. Ele estava se referindo à construção dos presídios para adultos, na área Continental e no Litoral sul. Não entendi porque construir presídios ao invés de escolas. O padre sorriu e me fez entender que essas almas que acabam indo para os presídios são antigos mamelucos desviados para o crime e, por não aceitarem a educação, vão agravando seus débitos. Todas as cidades que foram fundadas a partir da corrupção e destruição de núcleos indígenas hoje abrigam esses criminosos em presídios e também nos educandários prisionais para jovens. Como é um sistema imperfeito e agravado pelo convívio pernicioso, a maioria não consegue se regenerar. Não há outra solução no momento senão a de curar pelas semelhanças. 
Padre Vicenzo vem atuando nesse setor há muitas gerações. Quando o Paraná ainda fazia parte da Capitania de São Paulo, ele foi encarregado de reeducar um grupo de soldados rebelados que foram condenados ao isolamento na colônia de Catanduvas. Os soldados eram do regimento de Santos, a maioria com idade entre 18 e 24 anos, entre eles muitos vicentinos. Desolados pela condenação injusta, aqueles soldados só puderam avaliar a gravidade dos seus gestos quando receberam a sentença que destruiria suas esperanças pelo resto de suas vidas. Pensavam em fuga ou suicídio, o que era praticamente a mesma coisa viver para sempre numa região tão distante e selvagem. Vicenzo sabia que aqueles jovens não eram tão inocentes e injustiçados quanto eles pensavam. A memória do padre ia além daquela existência frustrada pela condenação. Todos eram mamelucos que participavam de incursões criminosas para expulsar os índios de suas terras, a serviço de fazendeiros ambiciosos. As incursões eram traiçoeiras, violentas e cruéis e não poupava nem as crianças, que tinham seus crânios esmagados pelo cabo das espingardas. Viam os índios como animais que atrapalhavam a criação de gado e o plantio das lavouras. Muitos desses grupos expulsos ou mortos por eles se reuniram nessa região do Paraná e continuaram sofrendo com a ambição dos fazendeiros. Perguntei o que aconteceu com os rapazes e ele me respondeu que havia feito um plano de regeneração para cada um deles. Obteriam anistia da pena de 20 anos se constituíssem família com as mulheres indígenas da Colônia, já educadas para esse fim. Aceitando a proposta, eles receberiam terras se estabelecerem como sitiantes. Nem todos conseguiram honrar o compromisso, entretanto os que se firmaram nessa promessa colheram bons frutos naqueles dias e também em outros tempos que viriam. “E os que desertaram”? perguntei. Padre Vicenzo respondeu que alguns deles estavam ali no reformatório de Paranapuã, aguardando dias melhores. 
Acordei desse cochilo rápido e, ainda impressionado, voltei para a praia. Já estava escurecendo e meu estômago pedia um café com bolo. Na caminhada em direção ao centro, sempre com a imagem dos caçadores mamelucos e do Padre Vicenzo, vinha pensando onde iria encontrar um lugar que tivesse um bolo pronto para vender, de preferência bolo de fubá. Lá resolveria, dependo do calor, se tomaria café ou um guaraná bem gelado para acompanhar o bolo. 

CANANEUS 


VENDI O CARRO e só ando de bicicleta. Também reaprendi a andar de ônibus. Uma delicia poder ver a paisagem pelas janelas grandes sem me preocupar com o trânsito e com os carros que estão na frente. Não preciso buzinar, nem pensar onde estacionar, livre dos impostos e do combustível. No começo sofri com as lotações, por causa da bagunça. Agora a cidade tem um novo sistema de transporte, ônibus grandes com ar condicionado e com linha e horários definidos. Nos ônibus intermunicipais que vão para Santos, seguindo as duas linhas mais antigas e herdadas dos bondes, é possível dar a volta pela ilha: pelo Matadouro ou pela Praia. Nos finais de semana, quando ônibus estão mais vazios, costumo fazer esses dois percursos e sempre desço na Ponta da Praia para apreciar o movimento dos navios entrando ou saindo do porto. A bicicleta me salvou do tédio e dos custos de deslocamento para alguns lugares distantes. Só não vou na área Continental e nas cidades vizinhas, com exceção de Santos, onde percorro toda a orla até  o canal 7. Uma redescoberta fabulosa que me fez sentir livre e mais jovem. A ideia de ter uma bicicleta foi da Verônica, que também tem uma e anda com ela por todos os cantos da cidade. Sempre vamos pedalando até o Cine Posto 4, no Canal 3, e lá deixamos as bikes presas no estacionamento em frente à Concha Acústica. 
Sexta-feira à noite recebi um e-mail de uma amiga que mora em Praia Grande me informando que o Porto das Naus estava ocupado com barracos. Ela passa todos os dias pela Ponte Pênsil e pôde ver que o local vinha sendo invadido, pois as cercas de proteção haviam sido derrubadas. Fazemos parte de um grupo que estuda e protege o patrimônio histórico da cidade. No sábado de manhã, após o café, combinei com a Verônica e fomos pedalando até o Japuí. Queria verificar e fotografar essa invasão. Atravessamos a ponte e logo chegamos ao local mais antigo da ilha. As ruínas de pedras onde foi a primeira alfândega do Brasil e depois onde funcionou o engenho de Jerônimo Leitão está cheio de roupas velhas espalhadas pelo gramado. Havia fios de nylon amarrados entre as árvores, servindo de varal. As cercas de arame e pilares finos de cimento estavam derrubadas. Vestígios de fogueiras e lixo urbano em abundância. Alguns moradores de rua dormiam sob às árvores e na entrada principal o Monumento da Cruz Real estava coberto pela vegetação. Fizemos algumas fotos com os nossos celulares e voltamos rapidamente para a Ilha com uma sensação de frustração e tristeza. Um lugar como aquele, de tão alta importância histórica, tombado pelos órgãos de defesa do patrimônio, abandonado e desprezado pela população. É a única prova de um dia tivemos aqui a presença de naus portuguesas e de outras nacionalidades mercantilistas do século XVI. 
Quando o Brasil ainda era Pindorama e não havia tantos portugueses dando ordens e cobrando impostos, a nossa terra era realmente um paraíso dos trópicos. Um mar imenso, que nos dias ensolarados era verde claro, transparente e que nos dias nublados tinha a cor cinzenta de ardósia. A floresta era sempre verde e densa, refletindo sua escuridão nas águas do mar, protegendo a terra do calor e das chuvas torrenciais que aconteciam entre as estações. Quem caminhasse na praia, de dia ou de noite, olhando o azul infinito ou seduzido pelas luas, tinha a impressão de estar no paraíso, o Pindorama dos Sonhos. Mas não era impressão. Era o paraíso mesmo. 
Nessa época já se viam muitos navios passando pra lá pra cá e, de vez em quando, um deles estacionava na grande ou na pequena enseada e ali ficava por algum tempo até que alguns tripulantes descessem uma embarcação menor , entrassem dentro dela e remassem em direção à praia. Ouvia-se nesse instante alguns gritos vindos da casa do alto do mastro da embarcação indicando a direção da terra, quebrando o silêncio, indicando o rumo que o pequeno bote deveria tomar. Alguém no bote sempre gritava de volta: 
- Cala essa boca que já estamos quase na areia!!! 
A língua estranha é essa que agora falo e escrevo com naturalidade, tão natural como o tupy que todos falávamos. Só não sabíamos escrever porque não era necessário. Tudo que era necessário estava guardado na memória e os mais velhos nos ensinavam a não esquecer essas coisas importantes que mais tarde seriam uteis. Entre nós já existia alguns homens iguais ao que desciam dos navios estacionados, homens que sobreviviam aos naufrágios e viam dar na praia, desesperados, famintos e cansados de nadar. Homens marcados pelo degredo e homens do naufrágio, cujas embarcações se despedaçavam nas pedras ou simplesmente afundavam durante as tempestades. O mais calmo deles era o náufrago Ramalho, que andava nu e percorria todos os lugares atrás de riquezas e novidades. Era muito curioso e queria saber de tudo o que existia e também o que acontecia em nosso e nos outros pindoramas. Era um homem de estatura média, cabelos encaracolados e, como todos daquela época, usava uma volumosa barba que lhe servia marca de honra e coragem. Sua aparência e comportamento revelava que tinha sido alguém importante em Vouzela, sua cidade natal, pequena vila distante três horas de Lisboa. Figura misteriosa que até hoje ninguém sabe como e por quê veio parar no Brasil, se por impulso aventureiro e ânsia de vencer na vida ou por causa de um grave erro cometido ou ainda vítima de perseguição religiosa. Nessa última hipótese ele poderia ser um cristão novo ou judeu convertido, tese pouco provável pois nunca levantaram tal suspeita durante seus embates políticos ou negociatas permitida somente aos cristãos de tradição. 
Havia também o Bacharel, degredado que falava um pouco diferente do Ramalho e do Rodrigues, um sotaque mais duro e de som estridente e sibilado, que combinava muito bem com o seu jeito mandão e agressivo. Esse era o Fernandes, como o chamavam os outros brancos e depois todos nós. Cosme Fernandes era judeu-espanhol, muito ligado aos negócios do Porto de Lagos, principal porta de entrada de escravos na Europa. Fernandes olhava o tempo todo para o mar, procurando navios. Ramalho e Rodrigues olhavam o tempo inteiro para as montanhas. O Bacharel era habilidoso com as mãos e muito inteligente para fazer planos. Queria que o lugar fosse atraente e despertasse a atenção de outros navios com os quais pudesse fazer negócios de trocas. Andava sempre acompanhado de muitos de nós, que pensavam e agiam como eles, ávidos pelas novidades de ferro , panos para o corpo, armas mortais para caça e guerra. Era um pequeno exército pronto para o combate em defesa da terra e dos negócios. Junto com Fernandes eles construíram um pequeno porto atrás da Ilha do Sol, no pequeno mar, onde tinha outra saída para o Atlântico, próximo ao Piaçabuçu, o grande rio que vinha da montanha. Era um lugar seguro e protegido de tempestades e de malfeitores do mar. Junto ao morro do Japui fizeram um capão com algumas cabanas, uma grande casa de pedras e ao redor delas plantaram raízes, legumes, grãos, frutas e criavam animais que conseguiram dos navios que passaram a aportar ali com mais frequência. Ao lado do porto construíram também uma oficina de embarcações, onde faziam reparos e até outros navios, de encomenda. 
Fernandes sabia recompensar os nossos irmãos que andavam com ele, dando-lhes coisas valiosas e ensinando outras que eram úteis no dia a dia. Eles o acompanhavam aos lugares próximos e distantes, para fazer negócios, como na Cananéia, quatro dias e noites para o sul, onde havia outros brancos iguais a eles. Esses cananeus eram mercadores de escravos, capturados nos pindoramas espalhados naquela região e também no Peabiru, enquanto caminhavam pela floresta. Nossos irmãos capturados, geralmente meninos e meninas, eram entregues nos navios e dali eram levados à Europa, onde eram revendidos. As meninas eram oferecidas nas casas ricas ou nos bordéis, que as transformavam em mercadorias sexuais exóticas. Os meninos ser tornavam serviçais até ficarem velhos, alcoólatras e moribundos, jogados pelas ruas das cidades portuárias da Espanha ou da França. No começo as capturas de escravos eram escondidas, para evitar o temor nos pindoramas mais próximos das praias. Com o tempo elas se tornaram mais frequentes, causando estranhamento e desconfiança em todos. Elas eram ensinadas aos nossos irmãos pelos velhos marinheiros que conheciam as artimanhas da captura. Esses marujos eram contratados nos portos do Mediterrâneo, sobretudo em Lagos. Os nossos irmãos antigos, que se misturaram com eles, foram se afastando e deixando de ser nossos irmãos, passando a nos tratar como estranhos e até inimigos. Já não falavam mais o tupy e acostumaram a usar roupas e botas. Passamos a chamá-los de mamelucos, gente traiçoeira e perigosa, doentes da cabeça e dominados pela ambição. 
A Ilha do Sol foi ficando mais distante de Gohayó. Nem o Ramalho e o Rodrigues gostavam de ir lá porque o Fernandes e seus filhos mamelucos os estranhavam. De tempos em tempos o grande chefe Tibiriçá vinha de Piratininga, depois da montanha, onde morava, até a Gohayó. Fazia muitas perguntas para Ramalho e para Rodrigues sobre o Fernandes e os mamelucos dele. Ramalho ficava quieto e contrariado, com medo que Tibiriçá os atacasse com seus guerreiros. Não gostava de Fernandes, mas não queria afastá-lo por causa dos negócios. Tibiriçá não entendia muito bem o que Ramalho lhe explicava, porém ficava intrigado, embora confiasse no seu genro. Quando isso acontecia, Ramalho procurava distrair Tibiriçá convidando-o a caminhar e mostrar as coisas que tinha descoberto. Andavam o dia inteiro sem se cansarem. Voltavam já “à tardinha”, com diziam os brancos, quando o sol estava se pondo. Tibiriçá queria saber como o Fernandes tinha feito aquela oca de pedras. Queria fazer ocas iguais no Piratininga, para ele e para seus filhos. Ramalho prometeu descobrir e ensinar, explicando que teriam que encontrar e carregar muitas pedras. 
Tibiriçá não ia a lugar nenhum sem Bartira, sua filha mais forte e atirada, que queria ser guerreira, mas por ser mulher não deveria lutar como os homens do pindorama. Foi por isso que Tibiriçá deu Bartira para Ramalho, dizendo a ela que o amigo precisava aprender a ser igual a eles e governar os pindoramas quando ele fosse morar em Alvorada Nova, lugar dos mortos que ficava dentro das águas das cachoeiras. Os brancos mortos diziam que ao morrerem iriam para o céu, lugar feliz; ou para o inferno, lugar triste e escuro, onde se reuniam os maus e os mamelucos. Nossos mortos de coração limpo caminhavam até as cachoeiras e ali encontravam uma porta que os levavam ao lugar onde as manhãs só acabavam quando as noites enluaradas ocupavam o lugar do dia, cheias de encantos e mistérios. As manhã eram sempre novas, depois das noites de lua, quando reencontravam seus entes queridos que já tinham partido e também todos os animais caçados, que haviam morrido para que se alimentassem. Nem Tibiriçá nem Ramalho acreditavam muito nessas histórias, geralmente contadas por Bartira a eles, aos seus filhos e netos. Mas todos ouviam em silêncio, com curiosidade, medo e respeito, até que ela terminasse. Bartira vivia tendo sonhos premonitórios nos quais chegavam muitos navios e que neles estavam guerreiros que lutavam furiosamente contra Fernandes e os mamelucos. Nos sonhos ela e Ramalho eram gigantes e estavam no mar quando os navios passavam entre as suas pernas, sem que fossem tocados ou molestados dirigindo-se à praia com tochas de fogo em busca dos mercadores de escravos. Bartira acordava assustada querendo conversar e compreender o que significava esses sonhos, porém Ramalho a distraia com histórias sobre o lugar distante onde havia deixado seis pais e seus irmãos, dizendo que um dia todos iriam para lá visitá-los. Bartira pegava no sono novamente enquanto Ramalho permanecia acordado pensando no sonho da esposa índia e nos seus sonhos de homem branco. 

CINEMATOGRÁFICA 


DIAS DESSES fui visitar um amigo que conheci pela internet, vendo e compartilhando fotos de edifícios antigos da cidade. Ele conhece praticante todos os prédios e fez um guia no qual consta um inventário sobre as obras arquitetônicas de destaque. Paulistano, escolheu São Vicente para curtir a aposentadoria, mas depois de algum tempo enjoou e acabou voltando para a Capital, concluindo que lá, apesar da solidão, poderia desfrutar o cosmopolitismo e vida cultural de São Paulo . Na mudança se desfez de muita coisa, inclusive uns livros que me deu de presente, sobre a história vicentina. Morava no edifício Marahu, no Boa Vista, prédio ondulado com persianas amarelas, erguido bem na ponta que divide as praias do Itararé e Milionários. Sempre que subo a ilha, na volta sento na mureta em frente a esse prédio porque é um ponto onde se pode ver a Pedra do Sol e também a Praça das Bandeiras. Gosto de ficar ali em dias sem movimento, geralmente no final da tarde. 

As persianas do Marahú já estão desbotadas. Quando vim morar no litoral, em 1974, elas ainda tinham um tom de amarelo bem forte, cor que combinava com verões quentes das temporadas dos anos 60 e 70 nas quais o Itararé e o Gonzaguinha eram os principais rivais do Guarujá e ainda frequentado pela alta burguesia paulistana. Foi então que duas cenas vieram à minha mente ao olhar demoradamente para a janelas do Marahu. Cenas cinematográficas. Na verdade foram três, mas cinematográficas foram só duas. 
Estou no Itararé andando pela areia, num dia de semana à tarde. A cidade está silenciosa e quase não se ouve barulho de carros. Meus olhos percorrem lentamente todo aquele cenário paradisíaco. O Edifício Marahu ocupa boa parte do meu olhar, exatamente igual ao que estava fazendo há pouco. Avisto de longe um caminhão velho vindo em direção à ilha Porchat. Uma algazarra na carroceria quebra o silêncio. O caminhão estaciona e todos descem e correm em direção à areia do Itararé; logo depois voltam, atravessam a rua e vão para a praia dos Milionários. De longe se vê o Gonzaguinha, com alguns edifícios em construção e algumas mansões na orla, com suas árvores grandes e vistosas. Olho para o mesmo edifício que me distraiu há poucos minutos e o vejo bem diferente. Está novinho, em folha. As persianas amarelas estão novíssimas, tão novas que ofuscam os olhos com a claridade intensa do sol. A turma do caminhão retorna para o Itararé, onde trocam de roupa e vão divertir-se no mar. A Ilha Porchat está repleta de árvores e não se vê nenhum edifício nela. Dos que desceram do caminhão reconheço apenas um adulto. Já de meia idade. Ele anda de um lado para outro, gesticula fartamente, à moda italiana, e organiza uma roda de dança que reúne todos os visitantes. Na verdade trata-se de um elenco. O homem de meia idade é Amácio Mazaroppi dirigindo uma cena do filme “O Vendedor de Lingüiça”. Estamos em 1962. As novíssimas persianas do Marahu emitem uma claridade excepcional, mas não tem cor alguma. O filme é preto e branco. 
Na sequência, como se fosse uma mudança de cena nos sonhos, vejo outras pessoas, em algazarra, no mesmo lugar. Agora é uma pequena multidão em alvoroço, dando a impressão de que alguém se afogou ou foi atropelado na rua que divide as duas praias. No meio dela surge um rapaz com toda pinta de galã de cinema. Com shorts curto e uma camiseta com listras grosas e mangas compridas. Ele procura uma garota, que logo encontra, dão as mãos e correm em direção ao mar, onde vão divertir-se. O galã é o ator Walmor Chagas. A garota é a atriz Ana Esmeralda. Tudo está em preto e branco. Ele de costas para o Ilha Porchat Club e ela de costas para os edifícios do bairro na direção de Santos. Continuo sentado vendo aquelas cenas do filme São Paulo Sociedade Anônima, gravado em 1965. São Vicente está no apogeu do “boom” imobiliário e suas praias são as mais cobiçadas do litoral, pela proximidade da Capital e fácil acesso pela rodovia Anchieta. O Itararé e o Gonzaguinha gozam de prestígio e esbanjam um charme comparado a qualquer praia elegante da Europa, do México e do Hawai. É de uma beleza simplesmente deslumbrante. Por isso são cenários de filmes, com atores de grande fama. Darlene Glória, Eva Vilma, Otelo Zeloni estrelam essa produção. Darlene aparece numa cena chegando de lancha. Antes ela tinha ido conhecer o Mar Pequeno e a Ponte dos Barreiros. Na volta a lancha passa por baixo da Ponte Pênsil , atravessa as águas tranquilas e limpas da baía e desembarca na areias da Praia do Milionários. 
Olho novamente para o Marahu, desgastado pelo tempo e pela moda que passou, e fico imaginando se aquela cena que na qual Walmor abre a persiana para dizer a Ana que a vista era maravilhosa, foi gravada no apartamento do meu amigo arquiteto. Claro, não poderia ser outro. Lembro bem. O escritório desse meu amigo antes era um quarto. Ana morre no filme, naquele apartamento, cuja cena termina com alguém cobrindo seu rosto com um lençol. Lembro que Walmor também morreu, muitos anos depois, de cabelos muito brancos, em uma pousada na Serra da Mantiqueira, atormentado por alguma coisa horrível e insuportável que o fez atirar em si mesmo com um revólver. 

O VISITANTE 




MAS AQUELA ESQUINA ainda guardaria uma outra surpresa. Passada a euforia cinematográfica, eis que a avenida e a praia se esvaziam para que outro cenário fosse montado ali como a mesma velocidade dos anteriores. Quando as coisas são governadas pelo pensamento, a imaginação não precisa de cores. A cena de destaque na ponta do Boa Vista agora tem uma dimensão política. 
Estamos em 1961, em plena Guerra Fria. Ernesto Tchê Guevara e Fidel Castro ocupam todas as manchetes dos jornais e revistas, rádio e cinema. A Revolução Cubana segue seu curso e tenta influir de forma direta nos regimes latino-americanos. Nesse universo de segredos diplomáticos e militares a espionagem é uma arma essencial e letal na guerra entre as superpotências e também entre as indústrias e organizações financeiras. O espião e o alcaguete são peças vitais para obter informações. Eles estão espalhados e infiltrados em todos os lugares e segmentos. É preciso redobrar a vigilância. Fenômeno como este só havia acontecido nos tempos da Santa Inquisição e na Europa totalitária. Alguém escondido atrás de um jornal lendo em uma esquina ou no banco da praça pública pode ser um agente ligado a inúmeros serviços secretos que atuam no mundo inteiro defendendo interesses dos EUA, da União Soviética, dos árabes ou dos judeus. Todos vivem literalmente no mundo da Lua e querem chegar nela a qualquer preço, como forma de mostrar poder científico e tecnologia de controle do futuro. O Brasil está na moda. A Bossa Nova começa despontar no mundo da música, logo após o sucesso do Cinema Novo. JK tem um novo sucessor, que exibe um tremendo óculos com lentes do tamanho de uma tela de TV e, por trás deles, olhos atormentados pela mania de perseguição. 
Continuo sentado na mureta, olhando as venezianas amarelas do Marahu. Alguém esqueceu ali um exemplar da revista O Cruzeiro, cuja capa em preto e branco está estampada a foto do novo presidente, com um sorriso irônico, revelando o imprevisível. Poucas pessoas na rua e na praia. Olho na direção da avenida Presidente Wilson e vejo uma movimentação estranha e suspeita. São homens de estatura alta, de paletó e gravata, olhando para todos os lados em busca de um possível atentado. Para disfarçar, temendo que haja alguma coisa grave, pego a revista e começo a folheá-la, fingindo estar atento às reportagens. O clima está ficando cada vez mais tenso, pois alguns carros estacionados estão ocupados por pessoas misteriosas, que ficam olhando pelos retrovisores. Meu sexto sentido diz que algo muito ruim vai acontecer: um assassinato, troca de tiros, uma explosão. Os homens de terno abotoam o paletó, talvez para esconder suas armas, e se movimentam na minha direção. A página da revista mostra uma garota de maiô com pernas e seios maravilhosos. Ela sorri maliciosamente, mas não consegue prender minha atenção nem tranquilizar-me. Penso em correr pela Praia dos Milionários, mas isso despertaria uma suspeita desastrosa e certamente seria baleado. Desisto da ideia e me concentro nas páginas da revista, por alguns segundos. Do outro lado da rua um ciclista pedala tranquilamente em direção ao Ilha Porchat Clube, como se nada de anormal estivesse acontecendo. Não o conheço, pois em fevereiro de 1961 ele deveria ser muito jovem. E eu nasceria somente em agosto. De repente, na esquina da rua Almirante Saldanha da Gama, surge andando um homem magro, de roupas simples, camisa de margas curtas, calças claras de tergal e sapatilhas brancas. Caminha lentamente com as mãos para trás. Os homens olham com mais frequência para o caminhante, fixando os olhos nele e esquecem de mim por alguns minutos. O homem magro continua andando, no ritmo de um passeio planejado. Olho para ele, olho para a revista em logo vem a explicação de toda aquela encenação. Era o Presidente. Digo para mim mesmo, espantado: ”Meu Deus, é o Jânio... E vão matá-lo aqui em São Vicente, bem perto de mim. E vão me acusar pelo crime. É isso, ele estavam apenas procurando alguém para colocar na cena do crime. Estou perdido”. Fechos os olhos para me convencer que aquilo tudo era um delírio, desses que tenho com frequência e geralmente me envolvo em grandes confusões. Pânico e sensação de morte bem próxima. Ouço passos e uma tosse rouca me faz abrir os olhos de curiosidade. Jânio passa por mim e para. Olha para revista, que agora está fechada sob as minhas pernas trêmulas. Sorri idêntico à foto da capa. E se dirige a mim, com a maior calma e naturalidade: 
- Bom dia, meu rapaz, como vai?. 
E respondo: 
- Bom dia, Senhor Presidente. Vou bem, graças a Deus. Aproveite o descanso e a paisagem... 
E ele comenta, com aquela conhecida voz rouca 
- Por sinal muito bela, meu caro, realmente de uma beleza, digamos, estonteante. 
E foi em direção à Ilha, enquanto os agentes de segurança corriam desesperados, prá lá e pra cá, tentando manter as coisas em ordem. Fecho os olhos novamente e por alguns segundos tento me convencer que esta cena não aconteceu e que foi tudo produto da minha imaginação. Penso: vou abrir os olhos e nada disso que se passou vai estar aqui. E ao abri-los vejo que o presidente continua caminhando e agora são os agentes que passam por mim sem notar a minha presença, tão distraídos e desatentos das coisas que não puderam planejar que, eu poderia, se tivesse comigo uma arma ou um punhal, atirado ou atacado fatalmente o presidente. “Que horror”, pensei. “Será que teria coragem”? Levantei, deixei a revista sobre a mureta acreditando que estava amaldiçoada e que nela ainda continha avisos de que as coisas não deveriam estar nada boas para o presidente nos próximos meses. 

No dia 23 de agosto de 1961 eu nasceria, há 650 quilômetros de distância. Dois dias antes, Jânio renunciou ao mandato presidencial, alegando estar sendo perseguido por forças ocultas. Hoje entendo perfeitamente o que estava se passando em seu mundo íntimo e também nos bastidores do governo federal. Jânio desapareceu do cenário político por um quarto de século, quando voltou a ser candidato a governador, perdendo para Franco Montoro, e depois como prefeito de São Paulo, já bem idoso, derrotando o então senador Fernando Henrique Cardoso. Nunca mais voltou a São Vicente, suponho. 


O PARANORMAL 


MEIA ESTAÇÃO. É como está o clima nesse período ano, entre o verão e outono, logo depois daquelas chuvas intensas de fevereiro e março. Eu e Isabela, no jardim que fica dentro do edifício, conversamos sobre diversos assuntos enquanto a mãe dela foi até ao supermercado fazer as compras da semana. Elas moram no Audax, na avenida Antônio Rodrigues. Dali dá para a ver a baía e quase todos os pontos mais conhecidos da orla. Isabela me conta que não acredita em Deus. Se esforça para compreender, mas não consegue. Acha que o mundo é muito preso à essas bobagens somente para disfarçar e compensar as coisas ruins que existem nele. É uma geração descrente, irônica, muito bem informada e questionadora. Assim como duvidam de todas as coisas prontas e organizadas pelos sistemas, também desconfiam da religião e das respostas padronizadas da teologia sobre os problemas humanos. Acho engraçado. A mãe não acha nada engraçado e se preocupa porque Isabela tem amigos que se cortam e alguns já se mataram. São como os terra-planistas que defendem sua cosmogonia provocando a irritação dos globalistas, que às vezes se confundem ao explicarem as teorias dominantes sobre esse tema. Isabela vê a religião e as igrejas como um sistema frágil e de fácil contestação. Isso lhe dá a sensação de autonomia e independência que muitas vezes não têm em casa. Dou muitas risadas porque eu mesmo, com as minhas crenças vejo-me acuado pelas suas perguntas e o seu prazer cruel em esmagar minha cabeça com os pés, depois de derrubar-me com alguns golpes verbais. Reajo, busco algumas vertentes e temas que ela desconhece e logo me recupero dessas pequenas surras racionais. Culpa do nosso misticismo incorrigível.
Logo em frente ao prédio onde estamos percebemos jovens realizando alguma atividade ou ação religiosa. São muitos, todos vestidos com camisetas pretas com uma estampa uniforme no peito. Estão muito alegres e festivos. Isabela me disse que conhece alguns deles que já os viram em outras ocasiões. É domingo, umas 19 ou 20 horas, e devem ter saído do culto há poucas horas. A calçada está praticamente vazia e nela passa, com longos intervalos, algum pedestre passeando ou retornado para casa. Eles correm em direção a esses raros transeuntes para oferecer abraços. São tantos jovens que alguns pensam se tratar de um arrastão. É uma cena cômica e surpreendente. 
Pergunto para Isabela se ela faria parte do grupo, caso a convidassem. Ela responde que não, pois teria vergonha. Acha meio piegas. Digo pra ela que também fiz parte de grupos de jovens religiosos, não de igreja e sim de um centro espírita da Vila Melo, em meados dos anos 70. Eu também não embarcava na deles- disse-lhe. Assistia às aulas teóricas e depois caía fora, na hora da confraternização. 
Enquanto os jovens procuravam novas vítimas para dar abraços percebi que havia homem de meia idade, usando terno e chapéu, observando o grupo. Estranhei que não tivessem visto ele, pois estava sentado no banco, bem próximo. 
A mãe de Isabela chegou e nos despedimos. Atravessei a avenida e fui em direção aos jovens, talvez porque estivesse precisando de um abraço. Parei sob a árvore e fiquei esperando a reação deles. 
- Eles não vão perceber que você está aí, como a mim, disse o homem. 
Então olhei par trás e vi eu mesmo ainda sentado no jardim do Audax e ao mesmo tempo conversando com aquele homem. O reconheci imediatamente, mas o cenário era outro. Não havia prédios nem carros. A noite estava escura e fria. O homem continuava sentado, agora demonstrando cansaço e mal estar, causados por dores no corpo. Ele havia sido espancado por um grupo de rapazes que, depois da agressão, já caminhavam um pouco longe. Não eram muitos, mas percebi que alguns deles faziam parte do mesmo grupo de jovens que tinha visto anteriormente, incluindo duas ou três meninas. O homem estava com o rosto machucado. Perguntei o motivo da agressão e ele me respondeu que todos estavam em uma quermesse na praça Bernardino de Campos, no centro da cidade. Na medida em começou a falar, já estávamos, eu e ele, na esquina da praça olhando o acontecido. 
Haviam feito uma grande fogueira e a certa altura alguns deles ameaçavam pular uns pedaços de madeira em brasa que haviam se soltado da amarração feita com pregos. Subitamente teve a ideia de também fazer o mesmo gesto dos rapazes, por brincadeira, e de repente se viu dentro da fogueia, em altas chamas, onde permaneceu por alguns minutos, sem nenhum movimento ou reação defensiva. Saiu da fogueira conferindo as roupas, o chapéu, as mãos e percebeu que estava tudo intacto. Nem sentira o calor. O público que ali estava, e não era pouco, ficou perturbado e logo se viu um alvoroço, do qual surgiam comentários jocosos e xingamentos. Alguns conhecidos quiseram retirá-lo dali pois perceberam que corria risco de ofensas e agressão, entre eles o amigo Mikulash, que conhecia bem essa sua particularidade inexplicável. Ele recusou e saiu caminhando em direção à Biquinha, ouvindo gritos de espanto e também de acusações de bruxaria. Da Biquinha ele seguiu em direção à casa de um amigo, na Vila Betânia, próximo ao empório Boa Vista. Não conseguiu chegar, pois, naquele mesmo local onde iniciamos nossa conversa, foi abordado por um grupo de fanáticos que o espancaram. 
O homem percebeu o meu desconforto e decidiu dar-me uma explicação do que ocorrera. “Estou bem. Foi um reencontro”, disse ele. “Fui trazido aqui para curar uma dor que ainda incomodava meu coração. Vim porque alguns desses jovens ainda trazem consigo um grande remorso pelo que fizeram comigo. Ontem eram violentos e espancadores; hoje distribuem abraços e sorrisos. A vida é assim. Minha ferida também não cicatrizou”. 
Eu estava conversando com Carmine Mirabelli. Perguntei onde era o endereço do Centro Espírita São Luiz, fundado por ele em São Vicente em 1917. Mirabelli respondeu que era na rua Marquês de São Vicente, num imóvel que foi demolido anos mais tarde. Quis saber porque colocava o nome de São Luiz nos centros que fundava. Confirmou o meu palpite sobre essa escolha. São Luiz, o bom rei de França, era da plêiade do Espírito Verdade e presidia e supervisionava, até aquele período, ações de médiuns que poderiam causar grande impacto na sociedade materialista. Os riscos da tarefa ele já conhecia. Tinha vivido em São Vicente em outras épocas e aqui reconheceu vários amigos daqueles tempos da vila afonsina. Mikulash era um deles. Muitos judeus daquela época do Porto dos Escravos ainda estavam por aqui. Mirabelli tinha potencialidades psíquicas espetaculares e isso causava um misto de espanto e ódio entre os que não conseguiam reconhecer e compreender esses fenômenos. Sofria muito com isso. Dormia com as luzes acessas pois não conseguia controlar seus transes e efeitos físicos ao redor. Tinha medo de causar incêndios e tumultos, pois as coisas aconteciam de forma espontânea e surpreendente. Na juventude passou por muitas tribulações, não parava em empregos e teve que abrir seus próprios negócios para sobreviver. Certa vez teve que deixar a loja onde trabalha no centro de São Paulo porque os sapatos saiam das caixas e chegavam sozinhos nas mãos dos clientes e estes saiam correndo apavorados pelas ruas. Contei isso para Isabela e ela riu dizendo que eu tinha lido Harry Potter. Na verdade Mirabelli era muito parecido com aqueles magos da Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts, mas não havia estudado a magia da qual carregava em si e não sabia controlar. Recusava ser um aprendiz de feiticeiro, como o Mickey no filme Fantasia. 
A inauguração do Centro Espírita São Luiz não foi diferente. A cerimônia estava marcada em horário definido e poucos minutos antes ele ainda estava em São Paulo conversando tranquilamente na estação de trem que deveria trazê-lo ao litoral. Já havia perdido o trem e, mesmo assim, não interrompeu a conversa agradável com os amigos. Pediu licença, afastou-se e logo em seguida, para o espanto deles, desapareceu completamente daquele círculo de conversas. Minutos depois ele entra no recinto do centro, há mais de 150 quilômetros de distância, para o alívio dos organizadores que o aguardavam, dando inicio à cerimônia inaugural. 

Outro aspecto constrangedor na vida desses médiuns de fenômenos físicos é o efeito colateral dos fluidos magnéticos primitivos desencadeados espontaneamente por eles – que mexem com o psiquismo e a libido, causando forte desequilíbrio sexual. Nas escolas sacerdotais e iniciáticas tradicionais, esses sensitivos aprendem a controlar o chamado “fogo serpentino” por meio da sublimação e técnicas defensivas. Essa serpente em forma de energia vital percorre a coluna vertebral e nos mantém literal e verticalmente eretos. O fogo rítmico é originário do magma geológico e movimenta as forças e desejos instintivos. Os iniciados o controlam através da manipulação do chacras ou centros de força. Nos médiuns sem preparo e educação moral não é raro os conflitos afetivos e o desequilíbrio mental. Mas esta é uma marca de responsabilidade pessoal. 
Fiquei imaginando como eu me comportaria no lugar dele. Me senti fraco e incapaz de levar comigo uma tarefa como essa, cheia de provas e ciladas, pois certamente sucumbiria às tentações da carne e do caráter. Lembrei da médium Ana Diogo, filha de uma união proibida de uma padre com uma freira e que aceitou a tarefa de servir de cobaia para experimentos, muitas vezes apenas mascarados de ciência, com a intenção de desmoralizá-la. Assim foi com Zé Arigó, que acabou preso por exercício ilegal da medicina; e também com Chico Xavier e Peixotinho que, diferente desses outros, souberam disciplinar sua forças. Peixotinho era sargento do Exército e chegou e servir na região. Atuava num centro espírita em Santos, doando energia para materialização de espíritos e objetos. 
Mirabelli produzia fenômenos semelhantes com alto grau de perfeição. Percebendo minhas inquietações e pensamentos, confiou-me que seus débitos eram muito maiores dos que seus feitos. Partiu desse mundo ainda muito endividado e que deveria retornar, agora em nova condições e melhor aparelhado para novas tarefas. Morreu em 1961, atropelado por um caminhão em São Paulo. 

A ESCULTORA 




OLHANDO UM ANTIGO cartão postal vicentino, foto tirada de cima do Morro do Itararé, dá para contar nos dedos as casas que ocupavam os amplos terrenos da Vila Betânia, logo após a linha do trem do lado aposto da Vila Valença. As casas ainda estão espalhadas entre os lotes vazios e chamam a atenção por causa do estilo de construção que marcaria uma época da presença de imigrantes europeus na cidade. A vila também ficaria conhecida como Vila dos Estrangeiros: italianos, franceses, ingleses, suíços e alemães, muito mais raros do que os portugueses e espanhóis que praticamente são fundadores e moradores mais antigos da cidade. Essas da Vila Betânia são famílias que aqui se instalaram para trabalhar nos negócios portuários em Santos, nas ferrovias e empresas de bondes e eletricidade. Eram fluentes nos idiomas mais falados nos portos mais importantes do mundo ocidental. Santos já era uma cidade grande e também insalubre, já famosa pelas epidemias. Isso assustava os imigrantes mais abastados que, por esse motivo, preferiam residir em São Vicente, então pequena e sem os riscos de aglomeração e doenças urbanas. Nessa época a Câmara Municipal, no intuito de povoar a cidade que havia recuperado recentemente a sua antiga autonomia, resolveu incrementar atividades econômicas, realizando doações de terrenos para as famílias que se responsabilizavam em construir aqui casas de residência fixa. Não era hábito dos vicentinos morar na orla ou frequentar praias para banhos. Esse era um costume de estrangeiros, por isso a escolha dos lotes a beira mar, distantes umas das outras. Eram engenheiros, médicos, comerciantes, técnicos, artesãos, educadores e, não raro, artistas plásticos e músicos. Muitos dos seus filhos já nasceram vicentinos e aprenderam as primeiras lições do nosso alfabeto, bem como da língua-mãe dos seus pais e avós. Eram leitores de berço e autodidatas, frequentando as pouquíssimas salas de aula apenas com o intuito de fazer amizades e demonstrar respeito pelas autoridades. Quando chegava a idade de avançar os graus escolares eram, quase sempre enviados para Santos, São Paulo ou mesmo para os seus países de origem, pois geralmente tinham recursos para custear as viagens e estadias. Foi o caso da jovem Olga Elisabeth Magda Henriette Nobiling que, nascida em São Vicente em 1909, foi estudar na Alemanha. Elisabeth, como gostava de ser chamada , era fascinada pela cerâmica primitiva que seus pais adquiriam dos poucos indígenas que ainda habitava a região. Eram frequentadores da Chácara dos Alemães, instalada em frente a avenida Antônio Emmerich , no antigo Sítio do Bugre e hoje quartel do Exército, nas vizinhanças do Cascatinha e do mangue do Catiapoã. Ali, antes da chegada dos trilhos da ferrovia e dos bondes, ainda existiam algumas malocas indígenas que permaneceram heroicamente intactas, vivendo da pesca, caça e da venda de utensílios de barro e artesanato. Como todos os cultuadores da arte, Elisabeth admirava as cores, tons , formas e traços da pintura indígena americana, com suas marcas e linhas geométricas perfeitas. Era a arte que estava mais próxima das origens e dos segredos ainda não revelados da humanidade. Não foi preciso que os primeiros professores dissessem isso a ela, mas Elisabeth partiu para a Europa sabendo que precisava revelar e afirmar isso ao mundo. Nascera numa cultura clássica germânica, porém vivia bem próxima e mergulhada no universo mágico tupy-guarani. 
No final da década de 1920 Elisabeth já havia passado pela universidades de Müenster e Colônia e nos anos 30 transita nos melhores cursos de arte de Munich e Berlin. Na sua volta ao Brasil em 1934 conhece o já famoso Victor Brecheret, de quem se torna assistente. Elisabeth e Victor, além da arte, tinham em comum o fato de terem vivido em São Vicente. Brecheret tinha uma casa na rua José Bonifácio, no centro da cidade, próximo a rua Padre Anchieta. Mas São Vicente continuava sendo apenas uma pequena e bucólica estância litorânea e que quisesse ampliar horizontes teria que explorar a vida cosmopolita que começava a tomar forma em São Paulo. É assim que já no seu retorno ao Brasil vemos uma foto de Elisabeth, ao lado de suas obras, estampada nas páginas de um grande jornal paulistano. Era a sua primeira exposição após ter voltado da Alemanha e para onde voltaria mais algumas vezes para refazer suas experiências artísticas. Em 1936 ela passou a fazer parte do mais famoso e mais influente coletivo de artistas da cidade: o Grupo dos Sete. 
Fiquei muito curioso para conhecer Elisabeth, sua família e sua história, além dessas notas biográficas que todos têm acesso. Uma pessoa tão famosa e reconhecida no meio artístico certamente casou-se, deveria ter filhos, netos, sobrinhos, endereços, lugares preferidos, etc. Nada, nada foi encontrado a seu respeito e sobre sua família. A principal curiosidade era conhecer sua imagem, que também frustrei-me nas buscas direcionadas do Google e nenhuma delas revelava a imagem da escultora. Não desisti. Continuei a procura por algumas semanas e tive uma grata surpresa quando localizei-a num fotografia de um jornal paulistano seguida de uma pequena nota sobre a exposição que faria na Capital, dizendo que a artista era recém chega de uma longa temporada na Europa, no início dos anos 1930. Na foto Elisabeth me parece muito tímida ou excessivamente discreta, pois a imagem registrou apenas um lado dos seus rosto, com olhos sobre algumas peças do seu acervo. Na verdade não sei onde ela realmente nasceu, se em casa ou algum hospital, nem o seu antigo endereço vicentino. É provável que nos arquivos cartoriais exista algum registro de imóvel em nome dos seus pais ou avós. Sempre que vou a São Paulo tenho vontade de visitar a Cidade Universitária, que fica entre o Jaguaré e o Butantã. É talvez o lugar mais importante e significativo dessa enorme cidade fundada pelos Jesuítas, a partir da obra dos ancestrais de Tibiriçá. O Cacique é o avô de todos os autênticos paulistas, pai de Bartira e sogro de João Ramalho, sementes dos mamelucos que povoaram São Vicente e o Planalto de Piratininga. Assim como o Ibirapuera tem no Obelisco a marca da civilização paulistana, a Cidade Universitária tem a Torre do Relógio da USP, duas lâminas de concreto que simbolizam a busca do conhecimento e a reunião dos saberes de alunos e catedráticos da Universidade de São Paulo. Nelas estão esculpidas, em baixo relevo, as alegorias de fantasia e realidade, das ciência humanas e das ciências naturais, obra idealizada pelo arquiteto Rino Levi e criada por uma talentosa escultora e também acadêmica da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo. O monumento tornou-se um ícone do qual se orgulham milhares de paulistanos que sabem das suas origens e o que significa e também de outros milhões que ignoram que João Ramalho e Elisabeth Nobling vieram de São Vicente. 

SERTANISTAS 




AFONSO SCHIMIDT, o célebre jornalista e escritor cubatense, conhecia muitas famílias vicentinas no início do século passado e dizia que na cidade todos se conheciam porque São Vicente era uma cidade pobre e quieta, onde as casas já tinha nascidas velhas, do tempo dos capitães-mores. É um retrato autêntico de como a vila afonsina, que nunca teve ares de metrópole. Sobrevivia nos anos iniciais do mundo de grandes guerras, bombas atômicas, fábricas, automóveis e aviões, cinema, rádio, televisão, corrida espacial e finalmente a internet. Ele descreve com certa tristeza que era só a Biquinha, o Cine Anchieta, a estação de passageiros dos bondes da City, as festa no estande do Bugre, em dias de feriados, e os jogos de futebol na Praça 22 de Janeiro. Tudo isso, ou melhor, só isso, para dizer que, entre as famílias calungas existia uma que era a mais simpática, formada por um pai italiano e uma mãe austríaca. O príncipe herdeiro da Áustria-Hungria já tinha sido assassinado pela organização sérvia Mão Negra e as nações, entupidas de armas, se destruíam nas trincheiras e mares do grande combate de 1914. 

A essa altura do impasse bélico Itália e Áustria estavam em alianças opostas, mas o casal mais simpático da cidade vivia em São Vicente, cidadezinha pacata e alheia a guerras desde quando foi atacada por piratas e também pelo seu fundador, Cosme Fernandes. São Vicente já era repleta de estrangeiros, que para ali se dirigiam buscando paz e tranquilidade e misturar-se ao sossego dos velhos calungas, cujo estilo de vida contaminou quase todos os moradores. Nem todos. 
Os filhos da simpática família Aurelli, que se chamavam Aurélio e William não queriam saber de sossego e tranquilidade e logo que se desprenderam da vigilância dos pais saíram em busca de aventuras. Moravam em uma casa cujos fundos davam para um enorme charco que ia até os trilhos da Souther São Paulo Railways e de onde organizaram as primeiras expedições “pelas praias silentes em busca de aventuras”. Nessa época já lideravam grupos de crianças que perambulavam pelos mangues e matagais até a Ponte Barreiros e também pelos andaimes da Ponte Pênsil em direção à Praia Grande. Esse dois pequenos aventureiros se tornariam os primeiros sertanistas dos tempos modernos, muitos anos antes que aparecessem outros também famosos em suas épocas. Aurélio era mais introspectivo, pragmático e engenhoso, confeccionando jangadas, barcos, armas e provimentos. William era cheio de imaginação e confeccionava planos e rotas de aventuras. Uma dupla perfeita unida pelo sangue e vontade de fugir da rotina e treinar espontaneamente para a vida futura. Os dois encarnaram o espírito dos ancestrais europeus e vicentinos e não é difícil imaginar os dois na pele dos irmãos Adorno ou dos netos de João Ramalho e Bartira, subindo a Serra do Mar para explorar o planalto e o interior paulista. Foram mais longe, como foram os bandeirantes que se espalharam pelo sertão. Agora, na década de 1930, quando o Oeste do Brasil ainda era pura selva e desconhecido da maioria dos geógrafos, Aurélio e William Aureli organizaram as famosas Expedições Piratininga em direção a Mato Grosso e Goiás. Era o que existia de mais selvagem e exótico naquele contexto. Os rios eram os principais alvos dos turistas estrangeiros que desembarcavam no Rio de Janeiro e em Santos, bem como em Belém e Manaus, para ter acesso ao mundo florestal amazônico, que para nós do Sul ficava na região centro-oeste, no Araguaia e no alto Xingú. Aurélio e William desvendaram ao público esse cenário que só via em livros e filmes. Para dar mais emoção aos roteiros, as expedições eram financiadas pelo diário de anotações de William, transformados em livros de aventuras relatando todos os detalhes e lances curiosos das andanças pela selva. O sucesso dos livros foi quase que imediato e funcionava como reportagens que interessa não somente ao público que gostava de aventura, mas também cientista e políticos que só conheciam essas regiões distantes e inóspitas através de mapas e lendas. Os irmãos vicentinos foram realmente os primeiros sertanistas modernos, desses que faziam contato e se torvam amigos inesquecíveis dos índios e conhecidos por inúmeras tribos amazônicas. Tudo foi documentado, não pelos relatórios oficiais e órgãos públicos burocráticos e sim pelos livros-reportagens de Willy Aurelli, aguardados ansiosamente pelo público leitor. 
Andar pelo sertão ainda hoje é perigoso, por causa das distâncias e isolamento físico, mesmo com os recursos de comunicação digital. Naquela época tinha um inimigo mais feroz do as anca e cobras das matas: eram as doenças tropicais que derrubavam também os mais fortes e preparados exploradores, entre eles Aurélio Aurelli, que sucumbiu a uma delas, picado por mosquito, e teve que ser sepultado em pleno sertão, próximo ao Araguaia. Willian voltar ao seu antigo trabalho de jornalista, iniciado no jornal A Tribuna, de Santos, e depois estendo ao grandes jornais e revistas da Capital. Morreu em 1968, aos 70 anos, vitimado por infarto. 


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O REMADOR 



O MAR sempre despertou no homem o medo e o impulso de desafio e superação. Mesmo se fosse dotada de guelras, a espécie humana não perderia o desejo nem a vontade de ir além das ondas e conquistar a imensidão de água salgada dos mares e oceanos. É por isso que à vezes ficamos por horas olhando o horizonte, tantos nos dias de calmaria como com nos de tormentas e tempestades, imaginando uma viagem de ida sem volta. 
Já são oito horas da noite e uma leve brisa de outono lembra os visitantes do Quebra-Mar, em Santos, que é preciso ir para suas casas. As luzes fortes dos postes da orla santista ofuscam a vista e tentam, à força da eletricidade, espantar a escuridão do mar que invade as praias e que só recua no amanhecer. Há poucos navios aguardando a ordem de entrada na barra e, ainda assim, estão bem distantes. 
Nem desci da bicicleta e vejo duas embarcações brancas deslizando rapidamente pelas águas escuras do José Menino e logo desaparecem por trás da Ilha Urubuqueçaba. Pedalo no sentido oposto e volto os olhos para o Itararé e tento enxergar os remadores indo na direção de São Vicente, mas é inútil. Eles desapareceram. Será que vão contornar a ilha Porchat e de lá irão até a sede náutica do Japui, passando por baixo da Ponte Pênsil? Pode ser que não, mas seria uma boa forma de ensinar aos novatos que esse percurso era uma rotina tranquila para o solitário e destemido Antônio Rocha. Mesmo acompanhado algumas vezes, o remador santista do Tumiaru exibia nas fotos um olhar triste de quem está sozinho no mundo, mesmo rodeado de pessoas. Na verdade, conheço uma única fotografia de Antônio, a que está ao lado José Ferreira de Andrade, segurando uma bandeirinha da Argentina, cruzada com a do Brasil. Seu companheiro de viagem segura a bandeira paulista. É um imagem colorida de 1934 estampada na capa da revista El Gráfico, quando da chegada deles a Buenos Aires, após percorrerem 1.134 milhas. Era a época do atletismo heroico e dos famosos raides náuticos de longa distância e que demoravam meses para serem concluídos. 
Mas essa história começou bem antes. Nas comemorações dos 4º Centenário da Fundação de São Vicente, em 1932, três conhecidos remadores do Clube de Regatas Flamengo resolveram prestar homenagem à primeira Vila do Brasil, remando do Rio até São Vicente. Os autores dessa façanha eram Ângelo Gamaro (Angelú), Antonio Rebelo (Engole Garfo) e Alfredo Corrêa (Boca Larga). Talvez nem soubessem disso mas estavam, na verdade, sob a inspiração dos deuses marítimos de Portugal ( e de Estácio de Sá), recordando os vicentinos que partiram do Forte São João da Bertioga, em 1665, para fundar a maravilhosa cidade a qual nasceram e viviam sob a proteção de São Sebastião. Recordando esse grande feito, um grupo de remadores calungas e caiçaras pensaram em retribuir a generosidade dos cariocas. Escolheram e enviaram ao Rio ninguém menos do que Antônio Rocha , que se prontificou a conduzir o barco Itararé, em nome do Clube de Regatas Tumiaru. 

O cronista que fez esse longo relato nas páginas de A Tribuna descreveu assim a cena histórica: 

“Enfim, a 25 de fevereiro de 1933, às 18,30 horas, compareciam à sede do Clube de Regatas Tumiaru, no Japuí, em São Vicente, os diretores srs. José Vicente de Barros, cap. Luiz Antonio Pimenta, cel. José Rites, Jorge Elbel, Leopoldo Caiafa, Leopoldo Dietrich e o redator da A Tribuna, Antônio Guenaga, para apresentarem as despedidas ao intrépido remador”. 
A partir daí, Jorge Elbel relata, quadro a quadro, em sua crônica os detalhes da jornada que terminaria na rampa do Flamengo, às 11:30 horas do dia 13 de março de 1933. O feito foi seguido de festejos, discursos, passeatas e grande alarde na imprensa esportiva do Rio e São Paulo, rapidamente replicadas nos noticiários regionais. 
Mas os entusiastas do remo não pararam por aí. Convenceram Rocha e José Ferreira de Andrade a venceram os obstáculos que os levaria à glória em Bueno Aires. O ritual heroico foi quase o mesmo. Saíram do Clube de Regatas Santista, foram até a sede náutica do Tumiaru, no Japui, e de lá partiram para a Argentina, sendo finalmente consagrados na capa da mais famosa revista portenha. 
Voltaram do Sul e Antônio Rocha continuava com o mesmo olhar de compleição melancólica e vazio no peito, o quais só poderia ser defeitos quando conseguisse realizar a viagem mais importante da sua carreira. E definitiva de toda a sua vida. Rocha queria ir e chegar sozinho a Belém do Pará. Os convites e desafios não paravam de chegar e não saía mais da sua cabeça inquieta e temerosa do tédio e da inatividade que certamente chegaria na velhice. Não seria nada fácil e isso ficou muito claro nas duas tentativas, abortadas por intempéries e pequenos acidentes de percurso. Dessa vez seria diferente. 
Partiu em direção ao Rio, trecho que conhecia como a palma da mão. Do Rio, onde já não pôde contar com toda aquela ventania de elogios e incentivos de outras épocas, se lança na direção norte em busca do seu sonho de vencer a costa brasileira e desembarcar próximo ao Mercado Ver o Peso, sendo festivamente saudado pelos botos em águas amazônicas. Mas não foi assim. Em dessas noites de ventos cortantes e chuvas raivosas, Antonio Rocha foi surpreendido por uma tempestade. Já contava com seus quase 61 anos de idade. Perdeu o controle e seu barco espatifou-se nas pedras, em Saquarema. Morreu como queria, em luta contra a lei da gravidade. Era o fim do olhar melancólico e do vazio no peito. Seus despojos foram trazidos para Santos somente em 1975 onde repousam no Mausoléu do Esportista Amador, no Cemitério Municipal do Saboó. 
Depois de tanto tempo é possível que Antonio Rocha já tenha voltado a viver na cidade onde seus pais portugueses vieram tentar uma nova vida e lhe deram o corpo e a coragem; ou então na velha cidade que o acolheu como filho e sempre o tratou como herói, agora tentando a sorte na pele de um dos meninos ou meninas pobres, como Tripulante do Futuro. 

Salve, Antônio!!! Salve Rocha!!! 



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O APÓSTOLO 

ENTRE OS ESPIRITUALISTAS cristãos existe um nome que todas as pessoas cultas desse segmento religioso conhece e reverencia. Trata-se de Pietro Ubaldi, um médium e escritor italiano que nasceu em 1886 em Foligno, na região da Umbria. Ali, aos cinco anos, teve o seu primeiro despertamento quando, ao mudar de estabelecimento escolar, ouviu o novo professor pronunciar a palavra “evolução”, momento que provocou um indescritível impacto no seu espírito. Com tenra idade foi buscar respostas na obra de Darwin. A mãe pertencia à nobreza e a família tinha terras e rendas que lhes proporcionavam tradição e riqueza. Por isso teve boa formação, fez muitas e viagens e sempre pôde contar com o apoio e incentivo dos pais. Par quem se sentia atraído desde pequeno para vida espiritual a riqueza e o conforto significa mais uma prova do que uma dádiva, já que as tentações são mais próximas e acessíveis. Mas por respeito aos pais e a disciplina dos professores, nunca deixou de cumprir as regras e protocolos sociais da sua classe. Casou-se aos 25 anos, com uma noiva escolhida pelos pais e com ela teve três filhos. Um deles viveu e faleceu em São Vicente. Ubaldi era poliglota e conheciam bem diversos idiomas, incluindo o português, cujo interesse e desenvolvimento se daria anos mais tarde por causa da sua tese acadêmica. Sua ligação com o nosso país teve início durante os cursos de pós-graduação (era formado em Direito pela Universidade de Roma e nunca exerceu a profissão), quando escreveu uma tese sobre a colonização comercial italiana no Brasil. Apesar da boa formação e da origem de classe média, Ubaldi acabou se inclinando para um estilo de vida franciscano, discreto e bem afastado dos hábitos e ambições burguesas. Trabalhou durante 20 anos lecionando em escolas públicas e muitas vezes morando em simples quarto de pensão quando lecionava longe de casa. Em 1927 renunciou à herança do pai, por voto de pobreza.
Sua segunda experiência fenomenal, que também poderia ter sido descrita de maneira mística e religiosa, aconteceu em 1931, porém deu a ela um tratamento racional, não menos impressionante com a que tivera na infância. Num determinado trecho da sua caminhada matinal teve a visão de duas formas paralelas identificando nelas depois de alguns instantes de observação e análise as figuras do Cristo, à direita; e de Francisco de Assis, à esquerda. Ele não descreve como chegou a essa conclusão e apenas relata que não teve dúvidas a identidade daquelas duas figuras que lhe pareciam muito familiares. Pietro estava presenciando uma autêntica revivescência da inesquecível cena Tabor em pleno século XX. No seu relato Ubaldi afirma que, diferente do desequilíbrio psíquico do Pescador de Almas, não se entregou ao governo das emoções, nem propôs algo sem sentido naquele grave momento como armar ali uma tenda para que as figuras luminosas se abrigassem. Pelo contrário, permaneceu firme, quase cético, como Tomé de Tolemaida. E analisou tranquilamente tudo em estava acontecendo naquele curtíssimo período de vinte minutos. Não teve dúvida, a revelação era íntima e autêntica, como havia acontecido com o choque anímico causado pela pronúncia da palavra “evolução”, saída com força e verdade da boca do seu antigo professor. Estava na presença dos seus dois queridos mestres, como em outros tempos estivera na presença de Jesus, acompanhado de Elias e Moisés. 
“A visão, no entanto, ficou indelével, gravada a fogo naquela alma, como uma queimadura de luz, uma ferida de amor que jamais o tempo poderá cancelar, feita de saudade, de uma contínua e angustiante espera para reencontrar-se.” 
Ubaldi não sabia ou não disse nada sobre o paradeiro de Moisés e de Elias, mas confessou em uma palestra em 1951, em São Paulo que, num fase muito difícil de buscas e dúvidas, o Mestre e o próprio discípulo Tomé haviam feito chegar em suas mãos o Livro dos Espíritos, de Allan Kardec, o qual lhe soou como uma solução providencial que lhe fez gritar por dentro: “Eureka!!! “Encontrei o que tanto procurei por toda a vida”. 
Foi assim que, de mensagem em mensagem, chegou o momento decisivo de Pietro escrever a Grande Síntese, ditado por “Sua Voz”, entre 1932 e 1935, concluída no dia 23 de agosto. É a base de todos os seus escritos, que se desdobraram em diversos ensaios, lida e elogiada por grandes personalidades do universo da religião e da ciência. Esses ensaios, que é a considerada a segunda parte da sua missão reveladora, foi toda escrita no Brasil, país que escolheu para viver, a convite de amigos. Acreditava que as terras brasileiras seria a célula-mãe da civilização do Terceiro Milênio e que qualquer experiência de transformação significativa certamente ocorreria no solo para a onde seria transplantada a árvore do Evangelho. São Vicente já existia nos seus sonhos de infância como o lugar que, antes da chegada dos portugueses, foi mostrada ao Cristo pelo seu servo Helil durante uma das suas raras visitas à Terra. Jesus se referia a futura capitania vicentina, em seus mais recuados primórdios quando perguntou ao seu proposto encarregado da genealogia e interação dos povos: 

- Helil — pergunta ele — onde fica, nestas terras novas, o recanto planetário do qual se enxerga, no infinito, o símbolo da redenção humana? 
— Esse lugar de doces encantos, Mestre, de onde se vêem, no mundo, as homenagens dos céus aos vossos martírios na Terra, fica mais para o sul. 

E, quando no seio da paisagem repleta de aromas e de melodias, contemplavam as almas santificadas dos orbes felizes, na presença do Cordeiro, as maravilhas daquela terra nova, que seria mais tarde o Brasil, desenhou-se no firmamento, formado de estrelas rutilantes, no jardim das constelações de Deus, o mais imponente de todos os símbolos. 
A São Vicente dos seus sonhos, que foi a célula-mãe do Brasil seria o cenário da sua missão, que seria marcada de oportunidades de reconhecimento e também provações. Foi um período doloroso para ele e a família, que havia perdido todos os bens e recursos financeiros, não só pela renúncia da herança, mas pela desonestidade de um sobrinho a quem confiou e que dilapidou o pouco que ainda restava da herança deixada pelo pai. Mas suportou tudo humildade e paciência, frutos da mesma obediência e disciplina da infância, confiando que jamais estaria desamparado, como as aves do céu e os lírio do campo. 
Veio viver em São Vicente, o Tumiaru, terras dos silvícolas, dos judeus banidos, dos degradados e depois refúgio dos velhos calungas cansados do cativeiro. Primeiro morou num apartamento cedido por um admirador que se comoveu com sua precária situação financeira. Era o no Itararé no Edifício Iguassu, o primeiro a ser construído naquela orla. Depois residiu na Praça 22 de Janeiro, no Edifício Nova Era, sempre amparado por amigos muito próximos, inspirados pelos seus mentores espirituais. Corria contra o tempo e precisava concluir a obra antes que se debilitasse com a velhice. Nesse tempo, escrevia, fazia conferências e recebia visitas de muitos amigos, entre eles, Clóvis Tavares. Sempre que se encontravam, em déjà-vu, suas memórias os remetiam a um tempo remoto das vilas de São Vicente e de Santos, época de Bartolomeu de Gusmão. O Prof. Clóvis Tavares era membro do grupo mediúnico de Chico Xavier e fundador da Escola Jesus Cristo, em Campos, Rio de Janeiro. Ubaldi faleceu em 1972, no Hospital São José e seu corpo está sepultado no Cemitério Municipal de São Vicente. Clóvis Tavares faleceu em 1984. Conta-se que no seu enterro aviões-caça da FAB cruzavam o céu em sua homenagem. Muitos anos antes, Chico Xavier teria lhe revelado que Carlinhos, um de seus filhos, um menino tetraplégico e falecido precocemente, era Santos Dumond, expiando o suicídio cometido em 1932 no Guarujá. 


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INOCENTES 



ATÉ BEM POUCO TEMPO existia nos fundos do Hospital São José, na rua João Ramalho, um grande e velho barracão de madeira com vidraças. Todas as edificações antigas ali foram demolidas para melhor aproveitamento do terreno, incluindo as duas antigas capelas funerárias. As velhas árvores continuam firmes e frondosas, protegendo os carros do calor do sol, por enquanto. Todo aquele quarteirão da área central da cidade traz intensas lembranças ao povo, pois ali também funcionava, em um pequena casa, a antiga Maternidade onde vieram ao mundo muitos vicentinos. 
Mas pouquíssimas pessoas se recordam, ou quase mais ninguém, que no início do século passado toda aquela quadra, antes muito arborizada, era conhecida com a Chácara dos Inocentes. O barracão de madeira e vidraças era parte da propriedade que havia sido doada para uma instituição muito conhecida na região e no estado, dirigida pela educadora Anália Emília Franco. Para ali eram encaminhadas jovens carentes, para que aprendessem todas as coisas necessárias à conquista de uma vida digna e segura. Tinham lições de costura, culinária, cuidados pessoais, moral e postura, artesanato, pintura e música. Era um modelo comum de educação feminina, mas que não era acessível à maioria das moças pobres daquela época. Dona Anália achava que era possível e necessário ter em todas as cidades um núcleo capaz de oferecer o mínimo de ensino e educação para os necessitados. E não contava como apoio dos governos, nem do Estado. Suas obras eram todas mantidas por donativos dos mais abastados e das pessoas de boa vontade. Em Santos, fundou o conhecido orfanato, instalado na avenida Ana Costa, que leva seu nome e funciona até hoje. Esse modelo de amparo aos órfãos surgiu quando Dona Ana acolheu, ainda no século XIX, os primeiros meninos e meninas abandonados nas estradas rurais e ruas da cidade. Eles eram despejados pelos capazes de fazendas que ainda mantinham escravos, mas que foram obrigadas a se livrarem dessas crianças por causa da lei do Ventre Livre. Elas perambulavam pelas ruas causando medo e escândalo nos transeuntes, quando a nossa benfeitora tomou a iniciativa de alugar uma casa para abrigá-los e, ainda por cima escreveu e publicou no jornal um provocante artigo denunciando aquela situação de desumanidade. A partir de então, os pequenos protegidos passaram a ser chamados em algumas publicações reacionárias de “Os negrinhos da Dona Anália”. 
Mas a luta era árdua e não podia se importar com críticas e reações previsíveis dos escravagistas e monarquistas ressentidos. Era preciso mostrar civilidade e atitude cristã, senão haveria recuo e fracasso. As crianças cresciam rapidamente e precisavam ser preparadas para enfrentar novas etapas da vida, em um país recém liberto da escravidão e nada industrializado. A servidão miserável continuava sendo a única opção da multidão de negros livres, agora agravadas pelas massas de retirantes, quase todos analfabetos e sem nenhuma qualificação. 
Em São Paulo, Dona Ana e seu marido conseguiram uma grande área na periferia onde realizaram suas primeiras experiências educativas com crianças e jovens abandonados. E foi dali que o trabalho se expandiu para outras regiões. As moças eram as mais operosas nas atividades de promoção da entidade. Elas formavam disciplinadamente as bandas musicais que se apresentavam para angariar fundos, em eventos locais e também em varias cidades do interior e do litoral. Era o carro-chefe da propaganda. Em Ribeirão Preto, o influente Padre Euclides, soube que um grupo de católicos fazia campanha de boicote da Banda Feminina, acusando Dona Ana por ser admiradora do Espiritismo. O padre pediu desculpas pessoalmente e foi o primeiro a levar um donativo para as meninas. Muitas delas não haviam crescido na distante Chácara do Tatuapé (hoje o valorizadíssimo Jardim Anália Franco). Dona Ana as encontrou nas ruas como pedintes e prostitutas. Depois de reeducadas, muitas vezes Dona Ana arrumava para elas casamentos com operários sem família que moravam nos cortiços, orientando e exortando os casais a lutarem por um vida digna. 
Depois de muitos anos de funcionamento, a Chácara das Inocentes foi sendo desativada e suas atividades transferidas para Santos. Foi nesse período de transição que, por iniciativa de um pequeno grupo, formou-se a Irmandade da Santa Casa e o Hospital e Maternidade São José, cuja parte frontal está na rua Frei Gaspar há mais de 100 anos. A região estava sendo assolada pela gripe espanhola e a Santa de Casa de Santos não dava conta das internações necessárias, que também não havia nas cidades vizinhas. A chácara foi então negociada para que ali fosse erigida a nova instituição, usando praticamente o mesmo prédio primitivo, com algumas adaptações. Isso aconteceu já no final da década de 1910 e início de 1920. O novo empreendimento foi uma iniciativa do então vereador e presidente da Câmara, José Meireles e sua esposa Ofélia Chaves Meireles. O casal logo teve o pequeno grupo de fundadores ampliado por conhecidas famílias beneméritas vicentinas: os Bensdorp, Mirabelli, Reippert, Rittes, Queirós, Lobo Viana, Pimenta, Emmerich, Azevedo, Mendes, Moreira e muitos outros que não aparecem nos livros de registros, mas que muito serviram, anonimamente, nas barracas de quermesses realizadas na sede do Tumiaru. 


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POSTO DE ESCUTA 





EM UMA DESSAS NOITES quentes de verão, no qual sono é frágil e quase sempre interrompido pelo calor ou barulho de insetos, acontece algo diferente em uma das casas da pequena vila. A luz da sala está acesa e algumas pessoas entram e saem rapidamente. Alguns vizinhos se aproximam para saber o que aconteceu e oferecem ajuda. Um menino de quatro anos se aproxima da mãe que está chorando num canto da varanda, olhando para o fundo do quintal, naquela hora mais escuro por causa das árvores e da extensão do terreno. Ela não consegue falar, apenas puxa o menino para perto de si e ele entende que não pode fazer perguntas, pois as pessoas não querem falar sobre o que aconteceu. O menino ouve alguém dizer que um revólver tinha sido encontrado no chão da casa dos avós e que um dos tios havia dado um tiro no ouvido. Essas cenas de desespero, tristeza e segredos nunca mais saíram das lembranças dos que ali estavam naquela noite na casa do menino, nem dos que estavam na casa onde aconteceu o grave incidente. Os vizinhos também guardam essa lembrança do sono interrompido e dos comentários que se multiplacaram por toda a semana. O revólver desapareceu da casa e levado para o sítio do avô, onde permaneceu escondido por vários até que a vós do menino conseguiu dar um fim, jogando o mesmo em poço desativado. Era o que ela dizia. Na casa do menino também havia um revólver, que também desapareceu após os pais descobrirem que esse menino havia pego a arma para ameaçar os irmãos em uma brincadeira de farwest e bangue-bangue. 
O menino agora está em outra cidade, a 640 quilômetros daquela vila onde morava na infância. Tenha agora 17 anos e está sentado na varanda coberta, aguardando a visita de alguns amigos da família. Um deles chega um pouco mais cedo do horário combinado. É Eugênio Lopes Correia, mecânico, eletricista e piloto do ferry-boate que faz a travessia entre Santos e o Guarujá. Ele trás nas mãos uma apostila com capa branca e vermelha e assim que entra na varanda percebe a curiosidade do jovem e lhe entrega o material convidando-o a examiná-lo. O jovem satisfaz a sua curiosidade folheando rapidamente as páginas da apostila tentando entender do que se trata, mas percebe que, no seu íntimo aquilo lhe parece algo já conhecido e que está apenas revendo. Era uma revelação já aguardada e que seria a cura de todas as lembranças daquela noite de sono perdido na infância. Logo depois estaciona um carro em frente da casa e soa a buzina. Era Wilson Cavalcante, funcionário de um laboratório de exames em Santos. Está apressado e nem desce do veículo. Todos moram no mesmo bairro de São Vicente, nas ruas Niterói, Espírito Santo e Rio de Janeiro. O rapaz, a mãe e Eugênio Lopes entram no carro e partem para uma reunião em Santos, que será realizada na rua Evaristo da Veiga, no bairro Campo Grande, bem próximo do Canal 1. Todos estão eufóricos para conhecer essa novidade trazida de São Paulo por um amigo que Eugênio havia conhecido durante a travessia da balsa. A rapaz entendeu que naquela noite seria formado um comitê para que daria início ao trabalho. Na reunião estavam presentes 12 ou 13 pessoas, incluindo o jovem casal que residia em Santo André e que já participavam dessa atividade há algum tempo. Entre os convidados também estavam pessoas que havia sido voluntários do trabalho em São Paulo, agora residindo em Santos, e mais três casais que também moravam em São Vicente, também convidados por Eugênio e Wilson. A reunião, feita em círculo, foi rápida e conclusiva. A anfitriã era uma senhora que presidia a instituição religiosa que se propôs ajudar nessa iniciativa. Dona Lola ofereceu não somente o auditório para que fosse realizado um curso de formação de voluntários, mas também uma sala exclusiva, com acesso privativo e uma linha telefônica provisória para os primeiros atendimentos. Tudo preparado, incluindo a divulgação com uma nota no jornal A Tribuna convidando a população para comparecer ao curso. Naquele inesquecível inverno de 1979, compareceram ao Lar Espiritual Seara de José mais de 80 pessoas para conhecer o programa CVV-Samaritanos, de apoio emocional e prevenção do suicídio. Seriam oito semanas de aulas e o consequente ingresso no selecionado quadro de plantonistas. 
Desde então, o CVV de Santos passou a funcionar 24 horas ininterruptamente. Ali não pode haver falha presencial dos atendimentos. Para cobrir as eventuais faltas dos colaboradores, os voluntários se revezam diuturnamente preenchendo todos os horários, divididos em plantões semanais de quatro horas e meia. Como estava escrito em alguns modelos de anúncios contidos na apostila, os tristes, solitários e angustiados agora teriam com quem falar sobre as suas angústias. Já devidamente instalado, o primeiro número do CVV de Santos – 34-4111 – atingiu já nos primeiros meses de funcionamento a marca de 1.200 chamadas por mês, sem contar as visitas discretas, realizadas pelos que preferiam conversar e desabafar pessoalmente. Posteriormente o posto funcionaria alguns anos nas dependências do Teatro Municipal Brás Cubas, na rua Francisco Manoel; depois instalou-se na Gota de Leite, na avenida Conselheiro Nébias; e finalmente na rua Campos Melo, agora com sede própria adquirida pelo Centro Fraterno de Amizade-CEFA, mantenedora do posto desde a sua fundação. Hoje o CVV atende em todo o Brasil pelo número 188, com ligação gratuita. 


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MOLHES DE PEDRAS





A BAÍA DE SÃO VICENTE é conhecida pela sua magnífica beleza, pelo gracioso relevo entre morros e A pequena planície litorânea, mas também pelas memoráveis ressacas que frequentemente causam destruição e transtornas aos moradores e transeuntes da orla. No final século XIX e início do século passado as ressacas eram mais fortes e provocavam grandes sulcos de erosão na praia. Nessa época a vila vicentina era distante da orla e separada por uma longa faixa de areia e jundú, vegetação rasteira típica dessas planícies onduladas. Porém, com o decorrer dos anos, a fama de lugar belo e bucólico fez aumentar a construção das casas de veraneio aproximando cada vez mais as edificações da praia. O efeito das ressacas sobre elas era devastador, destruindo também as primeiras ruas traçadas dos loteamentos. Algumas delas desapareciam totalmente quando a maré mudava o seu regime de águas calmas e partia para cima delas com a ferocidade das tempestades. Naquela época não se dava importância ao poder da natureza com se dá hoje. A ideia de progresso e supremacia da técnica era dominante e nada resistia ao poder da engenharia humana. Foi assim que, de arranjo em arranjo, as faixas de areia e jundú cederam ligar às ruas, avenidas casas e depois altos edifícios, cada vez mais próximo das ondas. Mesmo assim as ressacas não davam trégua e destruía tudo que se erigia na orla. Os gastos com obras de manutenção se multiplicaram mas nada continha a força do mar. 
Em meados de 1950 surgiria uma nova esperança para harmonizar o convívio entre a cidade expandida sobre a praia do Gonzaguinha e a fúria cíclica das ressacas. A ideia era diminuir as altas despesas de reconstrução de ruas e muros. A orla estava totalmente tomada e não teria como reverter essa ocupação. No final da avenida Antônio Rodrigues e inicia da rua 11 de junho foi levantado um enorme edifício de apartamentos, verdadeira ousadia e imponência da engenharia da época. Era o Edifício Grajahu, cravado nas areias da praia dos Milionários e do Gonzaguinha. Era o quarto empreendimento após longos anos de reinado do Tumiarú, Gáudio e Icaraí. O novo prédio era divulgado em caríssimos anúncios nas edições diárias dos jornais de Santos e São Vicente. Além do desenho em perspectiva que dava a impressão de uma grande torre novaiorquina, a peça publicitária publica uma lista de personalidades conhecidas e influentes na região e na Capital, que já haviam adquirido apartamento na fase de obras, dando a certeza de ótimo e valorizado investimento. Eram nomes conhecidos nos meio aristocrático e político. O futuro governador Mário Covas, por exemplo, aparecia com proprietário de dois apartamentos, seguido de mais 38 nomes, entre eles Rinaldo Rondino, conhecido engenheiro paulistano que, após a sua aposentadoria fincou residência nesse magnífico exemplar da arquitetura moderna com o seu “grande pórtico com frente para o mar”. Não se sabe de qual andar, mas devia ser um dos mais altos, que o engenheiro apreciava o espetáculo da baía formada entre a Ilha Porchat e o complexo dos morros do Japuí, Xixová e Itaipu. Foi exatamente nessa época que os funcionários do departamento de obras prefeitura de São Vicente buscavam uma alternativa tecnológica que pudesse solucionar o grave e ameaçador problema das ressacas, cujas ondas invadiam a avenida e as garagens dos edifícios e mansões ainda restantes na orla. Eles andavam pra lá e pra pelo calçadão tentando inventar algo que pudesse conter as ondas e ao mesmo tempo mantivesse a beleza e acesso à praia, que nessa altura já vinha perdendo cada vez mais espaço para o mar. Da sua janela o engenheiro, que tinha tempo de sobra, observava tudo e fazia anotações em em cadernos cujos dados transpunha para desenhos em grandes folhas de papel, tentando entender e formar uma síntese daquele problema. Ele descobriu que, por trás do vai e vem das ondas, havia um outro movimento maior, cujo ritmo funcionava como regulador do fenômeno que destruía as barreiras e muretas, repetidamente reconstruídas pela prefeitura. Rondino percebeu com se comportavam as correntes marítimas dentro da baía e constatou que o aquele ritmo, aparentemente caótico e sem ordem, tinha regularidade matemática e acontecia sempre em determinados pontos, Foi um trabalho longo e paciente, muita vezes realizado entre à meia noite e as primeiras horas do sol nascente. Procurou o prefeito, mostrou suas anotações e desenhos e acordou com ele que passaria a orientar a construção de molhes de perdas nos pontos mais fortes da invasão das ressacas. A solução não era tão complicada como parecia, pois havia material de sobra nas pedreiras vicentinas, junto aos morros do Itararé e Voturuá. Dali as grandes pedras eram extraídas e colocadas no mar em formato de penínsulas, algumas pequenas na praia dos Milionários e duas maiores no Gonzaguinha, em frente da sub-estação de esgoto projetada por Saturnino de Brito, e outra do Edifício Marrocos, onde hoje estão os píeres turísticos. As ressacas não desapareceram nem os molhes de pedras. As águas nunca foram totalmente contidas e, volta e meia se projetam com força sobre o calçadão e sobre as pistas da avenida. Tornaram-se atração turística e imagem de destaque do noticiário meteorológico da região. 


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SINAGOGA 




O NOVO MUNDO não era uma atração e utopia somente para os fidalgos ibéricos que pretendiam conquistar riquezas de forma rápida e retornar à Europa para impor o seu status no ambiente da Côrte. Havia também os que sonhavam com essa terra como uma oportunidade de prosperar mas também de fincar raízes mais duradouras e manter-se em paz , até quando fosse possível. Era o caso do judeus da diáspora que, na sua constante peregrinação, sempre encontravam se dirigiam para lugares onde poderiam exercer suas profissões e, quem sabe, poder cultura o Deus de Abraão sem que fossem importunados. Instalados em qualquer desses lugares, logo alguma edificação com aparência mais sólida funcionava como local de encontros sociais e leitura do Thorá. No Brasil primitivo não foi diferente. Nos primeiro povoados vamos entrá-los primeiramente em São Vicente, em Salvador e no Recife, assentando as pedras de base, estabelecendo conexões e oxigenando os negócios locais e portuários. Não era raro encontrar judeu entre os famosos degredados, deixados nas costas brasileiras com a finalidades de lançar as primeiras sementes da colonização, enquanto cumpriam suas penas. Em São Vicente eles chegaram provavelmente no final do século XV, quando ainda nem se cogitava ter aqui alguma forma de governo português. Nossos índios chamavam de Tumiaru o lugar que eles escolheram para fazer suas casas e seus estabelecimentos de profissão. Aqui já era um conhecido lugar de passagem e para de navios em busca de provisões e outros serviços úteis às embarcações. Em 1501, a expedição de André Gonçalves e Américo Vespúcio trouxe mais alguns deles para reforçar base lusitana nesse lugar estratégico para os futuros negocia da Coroa. Todos falavam português, espanhol, um pouco de holandês, francês, italiano, árabe, enfim, as línguas comerciais do Mediterrâneo. Em casa e nos salões do Malkhut (O Reino) praticavam seus dialetos mais antigos da língua-mãe. Tudo de maneira muito discreta, evitando provocar a inveja e o ódio dos maus cristãos. A maioria das igrejas católicas construídas no período colonial teve os traços e colunas pensadas e erigidas por construtos israelitas, que não que tinham receio de compartilhar seus conhecimentos e habilidades com os pedreiros que os auxiliavam. Ajudando nessas construções, os judeus tinham mais liberdade para instalar suas sinagogas. Na expedição de Martim Afonso de Souza é possível identificar sobrenomes hebraicos e também de cristãos ou convertido que viera para a América com a intenção de refazer suas vidas. Eles resistiram de as forma contra as novas perseguições. Muito não conseguiram e foram para outras paragens, como os judeus do Recife, que foram se estabelecer em Nova York, fugindo das aflições causadas pelo Santo Ofício. Muito permaneceram, silenciando todas as suas tradições e se protegendo com suas habilidades e generosidades. Até hoje São Vicente guarda em suas ruas, casas e símbolos as marcas de antigos moradores israelitas, preservados pelos seus descendentes que lhes sucederam durante cinco séculos. 
Em 1951 um grupo de espíritas vicentinos resolveram fundar um núcleo kardecista onde pudessem realizar estudos doutrinários, se revigorarem com o magnetismo, ouvir as dissertações morais dos Espíritos através dos médiuns e também praticar a caridade. Eles se reuniram na noite de 6 de agosto, no fatídico dia da explosão atômica em Hiroxima, acendendo uma pequena a luz do Evangelho naquelas trevas que se espalhavam pelo mundo. A família Garrido foi o núcleo de onde partiu a iniciativa, logo compartilhada com outras de vocação espírita e admiradores da moral rabínica do Cristo. Claro que entre eles vamos encontrar alguns judeus, prontos para dar dinâmica e solidez ao novo empreendimento espiritual. Todos foram unânimes ao escolher um nome que pudesse expressar a gratidão de todos aos que mais se esforçaram para que fosse erigida na rua Frei Gaspar, 900, uma das mais conhecidas instituições humanitárias da cidade: a Sinagoga Espírita Cáritas. Alí também surgiu o Albergue Noturno Domingos Albano; a Biblioteca Didática, que atendia diariamente centenas de estudantes que não recursos para comprar livros escolares e até uma consultório dentário, para atendimento gratuito. O movimento cresceu tanto que A Sinagoga Espírita Cáritas teve que fundar uma entidade jurídica específica de assistência social, com exigia a lei. Surge então, dez anos depois, a Fraternidade Espírita Cristã, com a mesma diretoria e colabores familiares: os Mendes, os Lopes Garrido, os Deberger, Andreoli, os Carlos, Fortes Freitas, os Ferreira, os Regio, os Menezes, os Brutico Mota, os Franco Sobrinho, os Ruys, os Azevedo, os Marzullo, os Silvestre,, os Barbosa, os Franco Sobrinho, os Willichan Azzurza, os Marreiro, Viveiros, Ventura, Almeida, Veiga, Rodrigues, Lua, Pinto Cabral , Moreira Lima, Alves da Costa, Sada Albano, todos muito provavelmente descentes dos tumiaruenses do final do século XV e dos afonsinos que aqui aportaram em 1532. 
Shalon, Shalon!!!! 

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A LEGIÃO NEGRA 


AS FOTOGRAFIAS ANTIGAS não mentem. Tropa reunida e um grande quartel improvisado na Capital recebe a visita do governador Pedro Taques e de alguns oficiais da Força Pública, que iriam passa em revista o contingente de soldados já preparados para um grande combate. No grupo das autoridades militares, de maioria branca, vemos alguns oficiais negros, entre eles Joaquim Guaraná Santana, advogado, agora uniformizado e com patente. Toda a tropa é composta por soldados negros e formam a chamada Legião Negra da Revolução de 1932. O Dr. Joaquim Guaraná Santana é o líder da legião e reuniu sob seu comando milhares de voluntários. Sua ligação com as comunidades negras do interior e do litoral são antigas e remontam ligações familiares e laços de amizade da época da construção das primeiras ferrovias paulistas que ligavam o interior e a Capital com o Porto de Santos. Joaquim Guaraná Santana nasceu na Bahia, mas foi criado em São Vicente, nos bairros suburbanos cortados pelos trilhos da Sorocabana. Poderia ser a Vila Margarida ou o Catiapoã. Sabe-se que a Legião não era um consenso político na comunidade negra, sobretudo na Capital, onde havia muitas outras vertentes ideológicas libertárias. Ele fazia parte da Frente Brasileira Negra (FBN) , mas conseguiu apoio desse grupo para a formação da Legião Negra. Ao se desligar da FBN, Guaraná Santana fundou um partido só de negros- PRN – e um jornal - Brasil Novo - proclamando-se como a maior liderança negra do Brasil. Sua ascensão ao comando dos Pérolas Negras (apelido da legião) foi logo capitalizada politicamente por alguns membros da alta oficialidade do Exército em São Paulo, que obviamente via nele a possibilidade de canalizar forças e ao mesmo tempo neutralizar tendências populares indesejadas pelas elites naquele movimento. Já final do conflito paulista com as forças governistas, o Dr. Joaquim foi substituído no comando pelo advogado negro José Bento. Será que São Paulo realmente queria lutar por um ideal que reunia todos os paulistas, sem nenhuma distinção? Havia uma grande desconfiança na comunidade negra porque ainda estava viva a memória e decepção com o tratamento e reconhecimento pífio pelos seus serviços na Guerra do Paraguai. Valeria a pena se engajar numa luta que não representava aos verdadeiros anseios dos negros? Que época era aquela e que tipo de ideal movia os paulistas naquele contexto? 
A década de 1930 iniciava-se sob o signo da polarização ideológica, fruto das decepções com as quatro ideologias que alimentavam expectativas, sentimentos e as utopias do século XIX. Nacionalistas, conservadores, socialistas e liberais tiveram que se enquadrar seus sonhos e projeto nas duas grandes correntes que dividiu o mundo todo nesse período tortuoso entre as duas grande guerras. Após perder a hegemonia política sobre a república velha os velhos paulistas reagiram prontamente à nova ordem revolucionária que dominaria o Brasil nos próximos 15 anos. Foi assim que o nacionalismo regional revestiu-se de intenso teor romântico para formar legiões soldadescas dispostas a dar vida por São Paulo. Pouco se sabre como as outras regiões e estados interpretavam esse vigor patriótico, mas uma coisa estava bem clara: os paulistas queriam ter novamente em mãos as rédeas do governo federal que durante muito tempo privilegiava e economia cafeeira e colocava a elite agrária e seu aliados regionais como foco da vida nacional. O Convênio de Taubaté, de 1906, não deixava dúvida de que os lucros das exportações da rubiácia tinha praças definidas e os prejuízos da queda dos preços internacionais deveriam ser socializados com todos. Mas isso só foi possível até 1929, quando o Crack da Bolsa de Nova York derrubou todas as esperanças de manter São Paulo e o Brasil sobre o controle dos produtores de café. A Revolução de 1930 confirmou assa nova ordem e colocou no poder o representante da nova elite que se insurgiu contra a política do café com leite. Em 1932 os paulistas resolvem também pela insurreição, exigindo de Vargas uma Constituição. Mas não bem que queriam. Queriam manter a auto-estima paulista nos mesmo patamares de antes e vira na polarização ideológica a oportunidade de aglutinar forçar que depusessem o nosso Napoleão Bonaparte vindo das fronteira gaúcha. Não difícil. Alguns incidentes e uma forte propaganda regionalista acendeu os ânimos e todas as cidades e recantos do estado, à moda da Capital, formaram legiões de heróis de uma guerra e de batalhas nunca aconteceram. Tudo não passou de um grande movimento cívico-militarista sem nenhum efeito prático de combate. Foi uma gigantesca arregimentação, tal qual ocorreu na Europa nas preliminares da Primeira Guerra, mas aqui só foi fogo de palha. Os mortos praticamente não morreram em combate porque teve grandes combates, mas apenas incidentes e acidentes meramente casuais. Foi um movimento esteticamente tão perfeito e ordenado que realmente havia um nítida impressão de que o país estava prestes a entrar numa grande civil. Campanhas de arrecadação de fundos, alistamentos em massa, movimentação de contingentes e armas, propaganda, enfim, tudo que era necessário para uma grande combate que esfriou logo que o governo federal voltou os canhões para a Paulicéia e deu um novo direcionamento ao confronto. A diplomacia e os acordos de gabinetes abafaram a fúria e o patriotismo popular com novas promessas e alerta de que 32 poderia se transformar em um novo outubro de 1917. Ninguém havia pensa nisso e se houve essa intenção, ela estava infiltrada e muito bem escondida em muitas legiões que se formaram à revelia desse movimento inicialmente acéfalo, mas que depois teve liderança bem definidas e sob controle de grupos maiores. 
As lembranças, monumentos e comemorações da Revolução de 1932 continuam acontecendo em São Vicente e nelas não há nenhum negro ou mulato nos seus quadros de alistamentos ou nas listas de heróis e sobreviventes. São predominantemente homens brancos de classe média e que, evidentemente, poderiam participar das ações militares, pois, quando voltassem, certamente teriam cama e comida nas suas casas, bem como garantidas suas ocupações profissionais ou estudantis. Despareceram da memória e dos monumentos dos heróis paulistas os dois mil soldados que inicialmente foram arregimentados pelo Dr. Joaquim Guaraná Santana; e também os 11 mil que a eles se juntaram depois para combater Getúlio Vargas. No último 9 de Julho que participamos com expectadores dos festejos Revolução Constitucionalista, percebemos que o monumento da Praça Heróis de 32 sofreu uma reforma que adulterou completamente a estética e o conteúdo do monumento original que ali havia sido inaugurado em 1957, por comemoração dos 25 anos do movimento. Deram fim aos dizeres poéticos de Luiz Meireles Araújo (Lulu da Melodia, autor da letra do Hino de São Vicente). Também desapareceu a conhecida pintura em cerâmica do soldado constitucionalista, que ficou conhecida popularmente pelo apelido de “soldado assustado”, de braços e peito aberto em curiosa posição defensiva, agora substituída pela figura de um soldado de aparência agressiva. Os conteúdos que fazem o relato da Revolução nos discursos autorizados nas cerimônias são enfáticos, tendenciosos e desconhecidos pela historiografia científica. Geralmente são artigos produzidos por memorialistas cívicos, ligados à instituições de amantes da história militar. No mesmo dia, assistimos também uma cena que confirma o caráter nada popular daquela comemoração. No pequeno palanque montado pela prefeitura, acotovelavam-se muitas autoridades, suas esposas, bem como os tradicionais convidados engravatados. Todos devidamente acomodados e, de repente, percebe-se que alguém tenta desesperadamente vencer o aperto da superlotação, causando estranheza e preocupação nos ocupantes. Empurra dali, empurra daqui, eis que, de repente, atinge a linha nobre e frontal do palanque uma figura simples, vestida com roupas do cotidiano, sob os olhares irritadiços e indignados de alguns presentes, que perguntavam em silêncio algo tipo: ”O que ele está fazendo aqui”? A figura, de baixa estatura e de inconfundíveis feições nordestinas, era um conhecido comerciante da área continental e vereador da cidade. São Paulo ainda não foi derrotado!!! 

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CALUNGA 


NO SÉCULO XIX, São Vicente era vilazinha muito pobrezinha e acanhada, embora ainda gozasse fama de lugar antigo, a mais antiga de todas as vilas. Era chamada de Calunga, lugar de refúgio dos escravos velhos e cansados, libertos pelos senhores santistas e paulistanos. Para os escravos, Calunga era o lugar da liberdade e estava ligado ao mar, que era o caminho que levava de volta à África. Na vida do cativeiro havia sempre duas possibilidades de fuga: o quilombo e o calunga. Havia também o sumidouro, que era ao caminho trágico do suicídio, seja no mar, nos penhascos ou nos poços. Os lugares de São Vicente que mais tinham cara e jeito de Calunga era o Itararé, nas terras junto aos morro, em frente à praia; a ilha Porchat e o Morro dos Barbosa. Eram sítios de pouco ou quase nenhum valor comercial, onde se plantava bananas e hortas, criava-se porcos e galinhas, para o próprio consumo e também para quem quisesse comprar. Fotos antigas mostram as choupanas e plantações de alguns desses sítios, com seus moradores sentados em tocos de madeira proseando com vizinhos e visitantes.
No Calunga havia as curas com ervas, os benzimentos de crianças doentes e as mandingas contra o mau olhado. Nos sítios mais entranhados pelos lados do Voturuá e também da Esplanada dos Barreiros, ouvia-se nas noite lua o barulho dos atabaques da macumba, sempre muito frequentada abertamente pelo pobres e discretamente pela classe média, levados pelos seus empregados nos momentos de desespero. 
Calunga também eram as horas encantadoras de música e dança, cujo som dos ritmos ecoava pelos cantos da Vila, chamando os mulatos e mulatas dos arredores, quase sempre acompanhados de amigos brancos. Esses boêmios e artistas, seduzidos pelas melodias e batuques, queriam dar vida aos pianos e violões que adquiriam nas lojas de partituras e principalmente incendiar os saraus enfadonhos das casas luxuosas da cidade. Sonhavam ter os estilo de vida livre e despojado dos mulatos fortes e bonitos e que tiravam suspiros proibidos das moças mais lindas da cidade. 
A partir de 1850 já existiam em São Vicente e em Santos os blocos carnavalescos, à moda Rio, trazidos pelos funcionários dos bancos, corretores e fiscais da alfândega que percorriam os portos do litoral. Em São Vicente residia nessa época o aristocrata Guilherme Souto, bancário carioca, membro fundador do Grêmio Le Bavards*. Era uma rapaziada burguesa que cultivava as folias e, sobretudo, a malandragem machista, das rivalidades e brigas iniciadas nos botecos e levadas para as ruas na época do Carnaval. Eduardo Souto, famoso pianista e compositor nascido em São Vicente, apesar do pouco tempo que aqui morou antes de ir viver no Rio ainda na infância, nunca esqueceu sua origem calunga e a boemia do pai. Quando voltava à sua terra natal tinha lugares certos para mergulhar e reencontrar sua alma calunga: a casa da sua antiga professora de piano e a Esquina da Saudade, boteco da rua Frei Gaspar, hoje em frente aos portões da Fábrica de Vidro. Mesmo consagrado e feliz no mundo da música, na sua maturidade adulta Eduardo Souto teve que relembrar seus conhecimentos de contabilidade e voltar ao batente da escrivaninha de um banco. Imagino como deveria ser dura essa jornada na qual misturavam-se sobre sua mesa de trabalho os livros-caixa, as partituras musicais e as ternas lembranças da vida calunga. Não há a menor dúvida de que O Despertar da Montanha, sua obra-prima musical, é um tango meio triste, meio alegre, que lhe fazia recordar o silêncio matinal do Morro do Itararé , da Ilha Porchat ou do Morro dos Barbosas. 
Os blocos carnavalescos vicentinos eram atração obrigatória nos concursos e desfiles em Santos, entre eles os talentosos violonistas e ritmistas do Rumba Calunga, comandado musicalmente pelos irmãos Maurício e Maurcy Moura. Todos os anos percorriam as festivas ruas do Gonzaga, ao lado de foliões e carros sofisticados, cheios de brilho e alegria nos dias Momo. Quando chegava a hora de pegar o bonde e voltar para casa, ainda havia um tempinho para um descanso. Então o grupo seguia tocando e cantando até o Marapé, talvez o mais calunga de todos os bairros santistas. Ali eram recebidos festivamente sempre na mesma casa e também pela vizinhança alegre e saudosa, onde se refaziam com um lanche farto de guloseimas e cantorias. Era casa do comerciante Mansuetto Pieriotti, velho conhecido dos foliões e membro de honra do bloco. Pierotti mudou-se para Santos para cuidar dos negócios, porém mantinha laços profundos no Calunga, onde sempre vinha matar as saudades e abastecer-se de samba, fé e futebol. 

NOTA. *O Grêmio Les Bavards foi fundado em 9 de março de 1870, pelos Srs. Francisco Emílio de Sá, Manuel Carneiro Bastos, José Ricardo Wright, J. Manuel Alfaya Rodrigues Jr., Antônio de Sousa Queirós, José Carneiro da Silva Braga, José Lopes dos Santos, João José Barbosa Jr., Manuel Antônio de Sá, tenente Brasílio de Campos Melo, A.M. Azevedo Marques, Carlos Luís D'Afonseca, Manuel Eustáquio de Oliveira, Gustavo Adolfo Peres de Sousa, Alfredo Lessa e Guilherme Souto (pai do futuro compositor calunga Eduardo Souto). 


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O GRÁFICO 

“Quando você ouvir a melodia, que lhe trará tanta alegria, seu coração palpitará. Quando, ao replicar dos tamborins, você vier cantando assim, quero sambar, sambar, sambar”!!! Marinheiro – “Esta Melodia”, samba enredo da X-9, 1968.



NAQUELES ANOS INCERTOS das duas primeiras décadas do século XX, em meio às notícias dos combates mortíferos da I Guerra e a avalanche sangrenta da Revolução Russa, o modesto jornal vicentino O Progresso também lutava para manter sua impressora funcionando. Atendia pequenos anunciantes do varejo, profissionais liberais, bem como os editais oficiais da prefeitura e da câmara. Era ali que trabalhava como aprendiz um jovem de 14 anos recém-chegado da capital baiana. Aprende na oficina as lições básicas da impressão gráfica e também as primeiras noções do texto jornalístico. Era um mundo novo fascinante para um garoto pobre e de inteligência aguçada. Habilitado para a nova profissão, logo foi transferido para o mercado santista, recomendado com potencial para dupla função, onde passou por três jornais combativos, todos de conteúdo político crítico. Sobreviveu a dois movimentos armados de grande impacto na vida da Primeira República. Eram tempos difíceis ( E quando foram fáceis?) para pessoas simples e idealistas. As coisas iriam piorar. Correria dos empregos sucessivos, jornadas dobradas, noites sem dormir, alimentação precária, o stress dos dias incertos. Tudo isso somado à alta dose de sensibilidade e uma forte e contida melancolia, leva o jovem chefe de família a contrair tuberculose. Era a doença dos sentimentos e do romantismo, somatizada no aparelho respiratório. A internação no Sanatórinhos de Campos do Jordão era o que tinha de mais recomendável como profilaxia, porém, para a maioria dos internados, era um caminho sem volta. O combativo gráfico baiano sucumbiu sem que pudesse realizar seus sonhos de vitória e liberdade. Deixou mulher e um filho de 7 anos. A viúva, Dona Iracy Moura Campos, vendo-se desamparada decidiu tentar a vida em São Paulo, onde talvez pudesse trabalhar nas indústrias que se multiplicavam no Brás e no Pari, como tinha escutado falar sobre as boas oportunidades da Capital. Não deu certo. Tiveram que voltar ao litoral e se reerguerem. A família foi se recuperando aos poucos, refazendo-se principalmente pelas lembranças da trajetória do pai. Ainda em São Paulo, já com nove anos, Esmeraldo Filho tornou-se também aprendiz de gráfico, depois de tentar a marcenaria. Quando voltaram a Santos o País estava entrando no Estado Novo, época complicada para donos de jornais, grupos políticos de oposição e sindicatos de trabalhadores. Algum tempo depois, Esmeraldo consegue emprego como office boy num escritório de advocacia, mas logo é demitido por ter faltado ao serviço sem justificativa. Dali pra frente, nos próximos dez anos, incluindo o período da II Guerra, o jovem passou por vários empregos que seriam muito importantes na vida adulta, influindo na sua formação profissional e principalmente na carreira política. E que carreira! 
Todo ano, no dia 12 de abril, como determina a lei municipal, comemora-se em Santos o aniversário de Esmeraldo Soares Tarquínio de Campos Filho. No seu túmulo do Cemitério do Paquetá são depositadas rosas vermelhas e velhos e novos sambistas cantam o hino da X9, sua escola preferida. Antes de ser hino, essa belíssima canção composta por Walter Prado Duarte, o Marinheiro, foi o samba da vitória cantado escola em 1967 e no fatídico ano político de 1968. 
Descendente de baianos, nascido e criado na Vila Margarida em 1927, o célebre político calunga teve carreira meteórica, tão rápida que esbarrou nas asas e garras da injustiça, do preconceito e do autoritarismo. O trabalho como jornalista e como advogado foi estratégico para ter contato com o povo e também com setores da classe média, tradicional formadora de opinião. Dessa forma, elege-se vereador e posteriormente deputado estadual em 1962. 
Anos mais tarde disputaria a prefeitura com Silvio Fernandes Lopes e, mesmo derrotado, atingiu uma significativa soma de 30 mil votos. 
Em 1968, Esmeraldo Tarquínio foi eleito prefeito de Santos com 45 mil votos, tendo como vice o amigo Oswaldo Justo. Foi uma votação expressiva e também assustadora para os bicudos tempos do regime militar. A notícia de capa do jornal Cidade de Santos foi de uma sinceridade constrangedora, em letras garrafais: “DEU CRIOULO MESMO, TARQUINIO ELEITO. 
Em um pequena nota no mesmo jornal o prefeito eleito agradeceu: 

AO MEU POVO 
Chegamos ao final da campanha: bairro por bairro, morro em morro, de rua em rua, de porta em porta - e também - de guindaste em guindaste, poça em poça, de degrau em degrau. Assim tem sido nossa vida. Assim continuará. Jamais deixaremos de ir ao Povo e com ele conviver. Porque desejamos sentir o calor do afeto popular, o olhar dos que crêem e temos a convicção que o abraço que recebemos nas ruas, ainda é a forma, através a qual, o homem do Povo nos reconhece como dos seus. Nosso programa: governo planejado, racional, honesto e dinâmico.Absoluta fidelidade à vontade popular. Vocês me conhecem. Ao meu Povo, os meus agradecimentos. ESMERALDO TARQUINIO 

Mas o calunga não tomaria posse, apesar de diplomado. Foi cassado impiedosamente porque, a bem da verdade, era negro, de esquerda e vicentino, marcas que para milhares santistas era motivo de admiração e orgulho, mas para uma pouquíssima e poderosa parte conservadora era motivo de temor e até acinte. Mesmo assim, passada a tempestade e silenciada a mágoa, por longos anos, Esmeraldo circulava tranquilamente pela cidade, frequentando eventos, fazendo palestras, sempre cuidando da família. Certa vez, nos anos 80, num desses eventos, o vimos na quadra do Senac, na Conselheiro Nébias, já grisalho, conversando e fumando seu cachimbo enquanto recebia cumprimentos dos seus admiradores. 
A população santista aberta e democrática, que via nele a representação dos anseios de reconhecimento e dignidade, nunca se esqueceu do seu eterno prefeito, eleito e impedido. Os eleitores, que confiaram a ele milhares de votos em dois pleitos municipais, se sentiram frustrados com aquela primeira derrota, porém clamavam por justiça pela sua abusiva cassação. E foi por esse último motivo que os legisladores municipais concederam a ele o merecido e inesquecível título honorífico de Prefeito da Cidade Santos. 
Em São Vicente a memória do menino pobre que virou herói do povo em Santos luta para se manter viva na sua cidade natal. Mas quem vai e volta para a Praia Grande pelo Mar Pequeno logo é sempre lembrado por grande placas verdes escritas em branco que está entrando na Ponte Esmeraldo Soares Tarquínio de Campos Filho. No longínquo Jardim Rio Branco, quase no sopé da serra, na avenida Ulisses Guimarães, a principal escola bairro é conhecida por todos os moradores simplesmente como “Esmeraldo”. 

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FALA, RAIMUNDÃO 


NA SEMANA PASSADA desencarnou o amigo Raimundo, de 73 anos de idade (23 a mais do que eu), mulato baiano, alto, magro e de cabelos brancos. Muito falante e cheio de ideias, Raimundão me considerava seu amigo e eu, desconfiado das suas conversas de vendedor (aposentou-se como representante comercial), ficava ouvindo atento as suas longas histórias pensando no por quê ele queria ser meu amigo, já que, segundo o meu preconceito, pessoas experientes não fazem questão de se aproximar dos outros para fazer amizade. Mas ele sempre dava um jeito de se aproximar e principalmente me segurar numa conversa, dizendo “Senta aí, relaxa, me conta as novidades...” Mas quem sempre contava as novidades era ele. Gostava muito de demonstrar conhecimento e lamentava não ter podido estudar e até confessou que a sua cabeça nunca foi boa para essas coisas. Mal sabia que eu também nunca fui muito amigo dos estudos. Me chamava de "Professor" e nunca pelo meu nome. Nunca falamos sobre espiritismo ou coisas do outro mundo. Ele gostava mesmo era de falar das coisas desse mundo, das “coisas boas”, pescarias, caçadas, mulheres, um pouco de futebol. E também da vida outros. Isso me preocupava porque eram coisas curiosas e atraentes, difíceis de resistir, e também porque ficava intrigado me perguntando se também não falava da minha vida para os outros. Daí a minha desconfiança. As vezes fugia dele, alegando pressa de ir para o trabalho, e apenas saudava de longe: “Fala, Raimundão!” 
De resto era tudo muito legal e gostoso aqueles papos quase unilaterais sobre as mil coisas que se passavam pela cabeça dele. Quando a conversa ia afinando, comentava: “Ficar velho não é fácil, dá um trabalhão manter as coisas em ordem!” Gostava de política e vivia se metendo nos assuntos do condomínio. Queria que eu fosse o próximo síndico. Minha desconfiança aumentou e pensei: “O Raimundão tá querendo me ferrar!”. Era corintiano. Passou umas contrariedades na última eleição, da qual fiquei bem longe (alegando que já havia dado minha contribuição no Conselho), mas não creio que esse tenha sido o motivo do aneurisma que provocou sua passagem. Eu já estava aguardando esse desencarne porque percebia que ele andava muito inquieto e ansioso. Um dia antes me cobrou uma conversa mais longa. Atendi o pedido e tivemos a oportunidade de colocar algumas coisas nos devidos lugares. Nessa conversa, algum tempo depois de iniciada, tivemos a presença de outras pessoas que foram se aproximando de nós, sentindo o clima amistoso e alegre, juntando-se para também se despedir do amigo que ia partir. E se foi o Raimundão, em meio aquela agitação natural dos gritos dos vizinhos, do barulho do resgate, dos parentes chegando desorientados, enfim, a hora dos mortos enterrarem seus mortos. Uma semana depois me perguntaram se tinha ido ao velório, enterro e missa. Fiquei constrangido pela minha indelicadeza. Mas lembrei de uns detalhes curiosos: minha esposa me disse que na noite logo após o desencarne, perambulei pela casa, fora do corpo. Foi uma noite perturbadora, de agonia. Sete dias depois, a noite foi bem diferente. Conversei com o Raimundo. Ele queria falar, mas não conseguia. Dessa vez foi a minha vez de falar... Ele estava bem, mas ainda meio perdido, como eu naquele lugar de triagem e espera. Eu olhava no relógio e também queria dizer ao Raimundão que esse ano vou fazer 50 anos. Ele sorria e, sem dizer uma palavra, informava que me achava bobo, mas que gostava de mim. Acordei diferente e logo pensei: “Não fui no velório, no enterro nem na missa, mas fui num lugar muito melhor. E o Raimundão está vivinho da Silva!” 

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O MELHOR AMIGO 


CONHEÇO UM CARA que é o melhor amigo de Jesus. Isso mesmo, de Jesus. É , Jesus mesmo, esse que todo mundo conhece e sabe que é a pessoa mais importante depois de Deus. Se bem que Deus não é propriamente uma pessoa. Mesmo assim, depois de Deus vem sempre Jesus na escala de importância das pessoas mais importantes dessa região do Universo. Então, esse meu conhecido é amigo de Jesus, amigo íntimo, de sair para fazer caminhadas, conversar, dar risadas, falar dos outros e de muitas outras coisas. Enfim, amizade mesmo. Quando falo ninguém acredita que é verdade e sempre questionam por quê alguém como Jesus poderia ter amizade ou perder tempo com alguém tão comum e que certamente não poderia acrescentar nada na experiência do Mestre. Duvidam e dão essas explicações: Jesus talvez ajude ele quando está muito necessitado, mas é só isso. Esse negócio de amizade é lenda. 
Digo que não é lenda , nem fantasia . É real. Jesus vem direto procurar ele e ficam horas conversando. Teve um dia que viram os dois jogando vôlei na praia. Outro dia se divertiram à beça com um cachorrinho salchicha (dachshund). O cachorrinho corria, corria pela praia e eles dois dando gargalhadas ao ver o animalzinho fazendo curvas a toda velocidade na areia. 
Uns perguntam: mas eles conversam sobre o quê? 
“Também não sei”, respondo, dizendo que talvez seja sobre coisas pessoais, confidências, sentimentos incômodos , sonhos secretos, idéias, projetos, preocupações. 

Teve um dia que Jesus estava meio triste e até chorou, pois de longe deu pra ver que Ele estava enxugando as lágrimas passando os punhos nos olhos. Naquele instante vi esse colega colocando a mão no ombro D’Ele e comentando alguma coisa que não deu para saber o que era, mas que deveria ser algo como “Deixa pra lá, não fica assim não...” Em outros momentos esse meu amigo também já foi visto lendo algumas coisas para Jesus ouvir. Eram umas coisas escritas em folhas de caderno e que Jesus ouvia atentamente e dava opiniões sobre o conteúdo, sugerindo mudanças ou elogiando os trechos que mais gostou. Ele (Jesus) também toca violão e canta muito bem. Umas canções incríveis. A preferida dele é aquela do Bob Marley, No woman, no cry. Também gosta de uma bem antiga do Herivelto Martins, Ave Maria no Morro. 

O mais curioso é que depois dessas conversas Jesus anda alguns passos e sempre some. Isso intriga muito as pessoas que tem a sorte de vê-los. Uma vez o amigo me contou que os dois estavam numa lotação e, de repente, Jesus levantou para dar lugar para uma jovem grávida. A jovem se acomodou e Jesus sumiu. A maioria das pessoas que estava ali nem percebeu o ocorrido. Uma velhinha ficou olhando meio assustada, mas logo voltou ao seu mundo, com medo que pensassem que estava ficando louca. 

Também já perguntei a ele o por quê dessa amizade tão próxima com Jesus. Ele me disse que a amizade surgiu espontaneamente, do nada. Estava andando pela rua e Jesus surgiu ao seu lado dizendo umas coisas meio sem sentido, como por exemplo: 

“Todo mundo é tão importante quanto você”. “Olha esse monte de pessoas caminhando em busca de alguma coisa. Você não acha que elas também têm o direito de serem felizes?”. “O rapaz que esbarrou em você há cinco minutos vai morrer nos próximos dias. Está correndo atrás de uma papelada que vai deixar a esposa e o filho seguros, até que o garoto cresça e possa trabalhar”. "A menina que você viu enfiar mão na bolsa da senhora em frente ao banco não pode voltar para casa porque a mãe dela quer que ela se prostitua. Ela prefere roubar do que vender o próprio corpo. Todo dia ela fala comigo e pede para que Eu dê um novo rumo para a vida dela, mas tá difícil encontrar ajuda”. 

Daquele dia em diante, disse o amigo, sempre que acordo com um aperto no coração e um medo inexplicável, sei que Ele vai aparecer para falar algo que o deixa inquieto ou conversar sobre as coisas da vida. Tem dia que ele está alegre, tem dia que está triste. Nunca o vi zangado ou nervoso. Quando percebo que Ele está quase para explodir ou perder a paciência, então Ele olha diretamente para os meus olhos, como se fosse uma criança, e me faz um monte de perguntas sobre o que penso, o que sinto e o que eu faria nessa ou naquela situação. 

Ele te pede conselhos? - perguntei espantado. 

O amigo respondeu positivamente e disse que sempre ajuda o Mestre quando Ele está com os sentimentos confusos, mostrando quais são esses sentimentos e como reage quando isso acontece com ele. 

Então é uma amizade profunda e sincera mesmo... Mas qual a origem da amizade? Porque você? O amigo me disse: “Já perguntei isso a Ele e me respondeu que eu era o único que estava disponível para ouví-lo num dia de muita angústia no coração. Sentiu-se tão bem com a minha atenção e o silêncio que vinha dos meus olhos que decidiu que eu seria o seu melhor amigo. Perguntou-me se eu permitiria essa escolha e eu apenas sorri. Ele entendeu e desde então somos bons amigos. 

Mas é Jesus mesmo? 

“Deve ser porque, sempre que tenho essa dúvida, olho para mim mesmo e vejo que sou eu quem está perguntando”. 


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TARTARUGAS 


ERA UMA VEZ uma indiazinha chamada Poty. Ela tinha quatro anos de idade morava na aldeia Tumiaru, perto do Itararé, uma linda praia com água límpida e borbulhante. A distância entre o mar e a mata era muito longa e possuía uma areia fina, quase branca. 
A indiazinha gostava muito de andar pela praia a procura de conchinhas, com as quais fazia brinquedos e enfeites. Quando o mar estava calmo, Potyzinha corria com os pés dentro d’água e, de braços abertos, imitava as gaivotas que voavam em busca de peixes para comer. Quase sempre Poty estava acompanhada do seu amiguinho Curumim, um indiozinho dois anos mais velho que ela. 
Curumim e Potyzinha eram considerados as duas crianças mais inteligentes da aldeia e também as mais danadas, pois estavam sempre procurando novidades e aventuras. 
Certa vez a indiazinha estava em sua oca e, quase na hora de dormir, percebeu que a claridade do luar que iluminava a sua rede foi ficando cada vez mais forte. Ela pulou da rede e logo foi olhar o que estava acontecendo lá fora. Vendo a Lua no céu, muito brilhante, sentiu uma enorme vontade de caminhar pela praia. Não tinha medo, pois as crianças indígenas são muito cuidadosas e sabem se proteger dos perigos da natureza. 
De repente, enquanto caminhava tranqüilamente ouvindo o barulho das ondas, alguém disse com uma voz bem suave: 
- Olá menininha, que noite linda não é mesmo? 
- Sim, uma linda noite! respondeu Poty, percebendo que se tratava de uma tartaruga muito grande e que por isso deveria ser pacata e experiente. 
Dona Tartaruga parecia estar muito preocupada. Ela pede ajuda a Poty para ajudá-la a pôr seus ovos e protegê-los do perigo dos pássaros famintos. 
- O que devo fazer? perguntou Poty. 
- Faça um buraco na praia, não muito perto da mata, para não atrair as cobras. É preciso ser rápido. Já não tenho a mesma agilidade de antigamente. Tenho que enterrar os ovos antes de amanhecer. 
No começo a indiazinha ficou um pouco confusa, mas logo entendeu que também precisava de ajuda, pois não conseguiria fazer sozinha esse buraco. Foi correndo até a aldeia e, sem acordar os adultos, começou a chamar o seu amiguinho de um jeito que parecia ser um canto de um pássaro noturno: 
- Curumim, mim, mim, mim.... Curumim, mim, mim... Curumim, mim, mim... 
E logo alguém respondeu, do mesmo jeito: 
- Poty, poty, potyyyyyy. Poty, poty, potyyyy. Poty, poty, potyyyy…. 
Curumim já sabia que se tratava de alguma tarefa importante a ser feita. Sempre que acontecia alguma coisa diferente, a Potyzinha vinha chamá-lo para resolver algum problema. Voltaram os dois para a praia e começaram a cavar o buraco com as mãos. Dona Tartaruga ficou bastante emocionada com a ajuda dos indiozinhos e logo foi se arrumando para pôr os ovos. Quando terminou já era madrugada. Pediu então para Poty e Curumim cobrirem os ovos com areia e com muito cuidado. E disse: 
- Agora devo voltar para o mar. Tenho que me alimentar e aguardar que o ovos choquem. Dona Lua me garantiu que vocês são crianças muito boas e que irão cuidar dos meus ovos enquanto eu estiver longe. 
Curumim e Poty olharam para o céu e viram que, enquanto Dona Tartaruga falava a Lua ia ficando mais viva e toda a praia ficou iluminada pelo luar. Poty entendeu também que deveria vigiar os ovos todos os dias. Combinou com o amigo Curumim para que se revezassem na vigília: ela de dia e ele de noite. Dona Lua prometeu avisar caso ocorresse algum perigo. 

E assim aconteceu. Numa dessas noites de vigília, Curumim chamou Poty para ver o que eles já esperavam ansiosos: a areia da praia começou a se mexer e dela foi saindo muitas tartaruguinhas que, muito agitadas e com muita pressa, corriam em direção ao mar. 

Poty percebeu que naquele instante surgiram pássaros negros no céu e começaram a perseguir as tartaruguinhas. Os dois começaram a gritar e bater pedras para espantar os pássaros. Dona Tartaruga observa tudo bem de longe. Não podia fazer nada, pois os filhotes tinham que aprender a viver sozinhos e defender-se contra os perigos do mar e da terra. Só pediu ajuda para os dois indiozinhos porque já estava bem velha e tinha medo de perder muitos filhotes. 

Dona Tartaruga estava muito contente com a vitória de Poty e Curumim sobre os pássaros e prometeu que, daquele dia em diante iriam fazer de tudo para que os dois amiguinhos tivessem uma grande alegria, como a que ela estava sentindo naquele momento. Despediu-se de todos e voltou para o mar. Tudo ficou calmo novamente na praia do Itararé. 

Poty e Curumim sentaram na areia e ficaram olhando as estrelas do céu e que também iam sumindo lá no infinito do mar. Um vento frio lembrou os dois amiguinhos que estava na hora de dormir e foram para aldeia enquanto, já longe da praia as tartaruguinhas começavam a viver suas vidas. 

Tempos depois Dona Tartaruga voltou ao Itararé e não era para pôr ovos. Queria ver e fazer um convite para os dois indiozinhos. Dona Lua já sabia do que se tratava e primeiro chamou Poty com a sua claridade. Logo os dois surgiram assustados na praia pensando que havia acontecido algo de ruim quando vira Dona Tartaruga. Ela tinha vindo para levá-los em uma viagem pelo mar e perguntou se estavam dispostos a ajudar uma baleia que estava encalhada há centenas de quilômetros dali. Viajariam a quase a metade da noite e , se tudo desse certo, voltariam bem antes de Dona Lua se esconder do Sol. Poty e Curumim tinham os corações apertados naquele instante. Subiram no casco da amiga e foram cortando as ondas e o vento pensando o tempo todo na agonia da baleia. Dormiram durante a viagem e, quando acordaram, já estavam em outra praia vendo a enorme baleia rodeada de golfinhos e muitas crianças índias como eles. Todos gritavam em uníssono FORÇA, FORÇA, FORÇA. E logo os dois indiozinhos estavam gritando também , mergulhando e cavando com as mãos a areia que impedia que a baleia nadasse de volta ao mar. Eram tantas crianças que não dava mais para saber onde estavam Poty e Curumim no meio de tanta gente. Então todos pararam de gritar e Dona Lua se encheu de luz despertando a força dos ventos e das ondas. Todas as crianças correram para a praia com medo de se afogarem. Em poucos instantes a baleia estava livre e jogando enormes jatos de água para o alto. As crianças viram aquilo e começar a gritar de novo, agora gritos de alegria enquanto a baleia desaparecia no mar. Dona Tartaruga não estava sozinha. Muitas outras como ela carregavam um ou dois ou três indiozinhos no casco e foram desaparecendo no mar para levar suas crianças para suas aldeias. Poty e Curumim não dormiram na viagem de volta. Já em suas ocas , ainda ouviam o barulho das crianças vendo a baleia se soltar do chão da praia. Dormiram rindo e depois sonharam com isso até o amanhecer. 

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CAMINHOS 


OS CAMINHOS são as veias e o pulso das localidades. É por eles que transitam no dia a dia as pessoas, suas necessidades e interesses. Eles surgem naturalmente, como os fluxos de água, encontrando e indicando as melhores formas de chegar onde é preciso. Muitos foram e ainda são os caminhos pelos quais se movimentam os vicentinos, pelas ilhas e pelo continente, desde os primeiros tempos da Capitania. Com as caravelas e canoas ficamos conhecendo o relevo da região e as possibilidades de penetração e movimento nesses territórios. Os morros ao centro da ilha, de ponta a ponta, logo definiram a obrigatoriedade de duas opções de comunicação entre as duas primeiras vilas da região, seja pela orla, seja pela parte alta dos pântanos do Catiapoã; ou das margens dos rios junto aos morros e que iam dar no estuário, onde seriam construídas as primeiras docas e armazéns do posto santista. Tudo era feito a pé ou com a ajuda dos animais. Já a comunicação da ilha com o continente ocorre pelas pontes, balsas e pequenas embarcações fluviais e marítimas. 
O meu caminho diário, por exemplo, é percorrido em duas etapas: do centro para a periferia da ilha, na parte da manhã; e depois da periferia para o continente, na parte da tarde. Saio de casa às 6:30 e ando até a praça João Pessoa. Ali pego um ônibus que me leva à Vila Margarida, onde permaneço até às 12:30. Dali pego outro ônibus e vou para a ponte dos Barreiros; desembarco, pego uma senha de papel e caminho sobre a ponte até a outra margem do Mar Pequeno, onde estão estacionados os ônibus que complementam seus trajetos para os bairros da área continental, no meu caso, o Rio Branco. Permaneço lá até às 16 horas e retorno para a ilha, em trajeto idêntico. 
A ponte dos Barreiros tem uma pista ferroviária, quase secular, atualmente desativada e que fazia a linha Santos-Mairinque; e uma outra pista, rodoviária, com cerca de 30 anos de uso, agora interditada judicialmente , por causa do risco de desabamento, devido ao desgaste dos pilares de concreto, pela corrosão das ferragens. O trajeto é 600 metros é feito à pé, de bicicletas e carrocelas (conjunto ciclístico de vários lugares), para passageiros preferenciais. Os automóveis só conseguem fazer esse percurso dando a volta por Cubatão ou por Praia Grande, praticamente duplicando a distância e o tempo de viagem. Nesse período de proibição do trânsito de veículos na ponte é muito curioso observar a travessia dos pedestres, quando encontro pessoas conhecidas, geralmente alunos e ex-alunos, caminhando rapidamente para as duas margens. Mesmo com um grande número de caminhantes o trajeto é marcado por um silêncio imposto pelo vento e pelo grande volume de água do mar, que é escura, da coloração dos rios vindos da serra e que ali deságuam. Quase todos devem ter, como eu, vontade de parar e desfrutar da paisagem, mas logo desistem da ideia por causa dos compromissos e também pelas condições do tempo, seja chuva, seja sol. Talvez no inverno, o clima ameno permita uma caminhada mais confortável. É curioso também repara e ver de perto as coisas que normalmente não é possível durante a travessia veloz de carros e ônibus: a passarela de pedestres, as embarcações passando por baixo na ponte, as estrutura de aço e concreto da antiga ferrovia, as revoadas e pousos de pássaros de coloração vermelha nas ilhotas e finalmente as grandes raízes da vegetação do mangue. 
Em um desses meus retornos da área continental, exatamente quando caminhava sobre a ponte ao lado de uma pequena multidão de transeuntes, lembrei que, além do Rio Branco, existem ali outras comunidades que surgiram no período colonial, junto à Serra do Mar. Lembrei principalmente dos antigos moradores da fazenda de Sant’Ana de Acaraú, local onde nasceu e foi batizado o Frei Gaspar da Madre de Deus, no século XVII. Num período posterior, na década de 1840, a fazenda passou a ser de propriedade do herdeiro Fernando José Augusto Bittencourt, muito conhecido na vila insular pela farta produção de frutas, cereais, legumes e cana-de-açúcar, em cujo engenho fabricava melaço e também extraía a famosa Pinga de Acaraú. Ele vendia também licores de frutas em frascos de vidro. Toda a produção excedente da fazenda era transportada em canoa remada pelo próprio Bittencourt e demorava até dois dias para chegar à Vila de São Vicente. O trajeto, suponho, era feito inicialmente pelo rio Boturoca até o rio Santana e de lá ao Mar Pequeno, próximo a Ilha Caraguatá, em Cubatão. Dali vinha em direção aos Barreiros e depois até o porto Guamium, onde hoje é a rua Japão. 
Enquanto aguardo o ônibus na Praça João Pessoa, observo a Igreja, ainda fechada com suas velhas portas de madeira. Fora dela, na travessa Ana Pimentel, pela qual passei há alguns minutos e sob os meus pés, estão enterrados corpos de pessoas comuns, incluindo indígenas e freiras, sem nenhuma identificação pessoal. Dentro da igreja estão os túmulos de pessoas importantes em várias épocas, todas identificadas. Os túmulos de cova rasa, nos quais andei por cima, foram descobertos acidentalmente durante as obras do bullervard da travessa. O corpo de Fernando José Augusto Bittencourt não está sepultado na matriz, embora ele fosse pessoa de destaque em sua época. Foi intendente (cargo atual de prefeito), vereador, juiz de paz e delegado de polícia. Multava os vereadores que faltavam às sessões da Câmara. Era admirador e amigo de D. Pedro II, o imperador itinerante do Brasil. 
Na última vez que desembarcou em Santos e ali recebeu homenagens dignas de um monarca, Pedro II fez questão de visitar São Vicente e desfrutar da hospitalidade simples e modesta dos moradores da antiga vila colonial. Um carro especial de bonde conduzia o imperador e a família real até o centro e ali se hospedavam em uma das casas que disputavam sua honrosa presença. Passeava na Pedra do Mato, tomava água na Biquinha de Anchieta e depois aguardava em casa a hora da missa na Matriz, na qual receberia as honras oficiais e homenagem dos moradores. Edson Telles de Azevedo narra em suas memórias que, nesse evento religioso, a Família Real rezava ajoelhando-se sobre uma tradicional colcha de damasco, presente especial do amigo Bittencourt. A cena imaginária da missa com a presença do Imperador, da Imperatriz e dos súditos vicentinos apaga-se subitamente quando, na curva da rua XV de Novembro, surge o ônibus que vai me conduzir pelo primeiro caminho do dia. 

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O PIANISTA 


A RUA FREI GASPAR nos anos 1950 não tinha edifícios altos de apartamentos como tem hoje, nem essa quantidade enorme de estabelecimentos comerciais que faz dessa rua o metro quadrado mais disputado por novos lojistas Eles ficam desesperados para encontrar nas quadras centrais ao menos um ponto onde posam realizar seus sonhos de lucros. São Vicente era bem diferente e a Frei Gaspar era uma rua silenciosa, cheia árvores e casas de veraneio, sobradões iguais e com varandões idênticos, feitos pelos mesmos construtores. Havia pouquíssimos automóveis circulando no centro. Uma foto dessa época mostra que a Frei Gaspar tinha mão dupla, pois nela se vê alguns carros e um caminhão trafegando em direção à praia. 
Entre as ruas Tibiriçá e Padre Anchieta, logo após a Mansão Caramurú (hoje prefeitura) e a residência dos Wolf (atual pasteleria chinesa) havia o sobrado da família Mariano, paulistanos que fugiram da agitada vida na Capital em busca da tranquilidade pitoresca vicentina. O menino César, um dos filhos do casal, tinha jeito e atração pela música. Tocava no piano que ganhou do pai aos 13 anos algumas peças de poucos acordes , que aprendera de ouvido, mas deixava muito a desejar, segundo o gosto refinado da mãe. Precisava estudar piano pelo método tradicional dos conservatórios, cujas lições técnicas diárias se estendiam por longos anos. 
Foi assim que o menino César foi parar na casa de Dona Georgina Araújo Moura, professora de piano e esposa de Hugo Santos Moura, na rua Capitão-Mor Aguiar, 81, perto do Porto do Gaumium. A casa dos Moura era bastante conhecida e tinha enormes letras HM na parede frontal identificando a tradição musical da família. O Sr. Hugo era um conhecido boêmio da cidade e Dona Georgina, a esposa, a típica mocinha vicentina que recebera esmerada educação burguesa. Seus filhos herdaram inevitavelmente a vocação para música. Desde pequenos se revelaram grandes artistas, formando o famoso Grupo Calunga, que tinha como vocalista a então menina e depois famosa Jarina Resende. Foi ali que jovem César conheceu as primeiras lições conservadoras de piano e também travou amizade com os rapazes Maurício e Mauricio e Maurici Moura, que se tornariam consagrados artistas da noite paulistana, o primeiro exímio violonista; e o segundo inesquecível cantor . Os Moura tinham dois diferentes estilos musicais: o tradicional, que lhes proporcionavam a disciplina teórica e técnica, imposta pela mãe; e o popular, vinda do samba e das serestas que acontecia frequentemente nos quatro cantos da cidade, certamente herdado do pai. César soube aproveitar muito bem essas duas vertentes. Frequentou também, antes desse despertar eclético, as escolinhas e coros infantis comandados por Dona Mimi e pelo maestro Jesus de Azevedo Marques. Logo depois que terminou seus estudos no Externato São Luiz, já rapaz, César Mariano retornou para sua cidade natal onde daria início a uma das mais brilhantes carreiras de instrumentista e arranjador da música popular brasileira. Foi ele o criador e produtor dos melhores discos e shows de Elis Regina nos anos 1970 e 1980. Seus arranjos sobre os originais de João Bosco e Aldir Blanc, Belchior, Milton Nascimento e Fernando Brant tornaram-se verdadeiro hinos da MPB e referência instrumental entre os músicos brasileiros e no exterior. Mas talvez a maior consagração de César Camargo Mariano não tenha sido como acompanhante de Elis Regina ou um dos mais solicitados e reconhecidos arranjadores musicais do Brasil. Tudo isso o colocou no hall da fama da MPB e do jazz, mas o que tocou no mais profundo de toda a sua brilhante carreira foi o título que Cidadão Vicentino - sugerido por amigos, músicos e admiradores- e recebido solenemente na Câmara Municipal mais antiga do País. 


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DISCOS VOADORES 


COM EXCEÇÃO dos curiosos, fascinados e especialistas no assunto, pouca gente sabe que o litoral paulista é um dos lugares do Brasil onde mais se registra a presença de objetos voadores não identificados, OVNI. No litoral norte, entre Bertioga e São Sebastião, os registros de aparições são antigos e frequentes , com relatos insistentes de naves percorrendo o céu durante as belas noites estreladas e também durante os dias ensolarados. No litoral sul os relatos são mais radicais e assustadores, pois as naves pousam e deixam marcas visíveis no chão, sempre e propositalmente em locais onde há muitas testemunhas. Em Mongaguá, Itanhaém e Peruíbe ninguém mais se impressiona com essas histórias, tanto que os aficionados no assunto, pesquisadores e editores de revistas especializadas passaram a se encontrar anualmente nessa região para discutir e avaliar esses fenômenos. Peruíbe é cidade escolhida para os congressos e instituiu oficialmente o evento que atrai interessados de vários lugares do Brasil e até do exterior. 
Em Santos as aparições durante as queimas de fogos de Reveillon são fartamente filmadas e publicadas nas redes sociais. Já faz parte da expectativa dos turistas durante as passagens de ano. 
Nos morros do Voturuá e Itararé, em São Vicente, os praticantes de voo livre registram e relatam a presença de grandes bolas metálicas, alinhadas horizontalmente sobre o mar, em plena luz do dia. Foram dois avistamentos na área insular:, o primeiro no dia 6 de agosto de 2006, às 15:30h, com esferas brancas formando um triângulo; e o segundo em 2008, quando foi vista uma verdadeira frota de esferas brancas, passando de 500 o número delas, formando uma ordem de três grupos. Nessa última aparição, ao aterrissarem seus equipamentos no gramado da orla vicentina comunicando a visão, logo se espalhou a notícia, pois alguns os banhistas também correram ao encontro dos esportistas para confirmar suas visões fantásticas. 
Mas de todos os relatos durante esses longos anos de aparições, o caso ocorrido no Mar Pequeno, próximo à foz do rio Piaçabuçú, é considerado na escala de importância fenomênica dos OVNI o mais impressionante de todos os tempos. Foi um Contato Imediato de Segundo Grau, com efeitos mecânicos, eletromagnéticos e psicológicos. Mesmo sendo uma história relatada por pescadores, a aparição ocorrida em 01 de outubro de 1995 não deixou entre os investigadores nenhuma dúvida sobre veracidade e autenticidade do ocorrido, por causa do impacto sofrido pelas pessoas que tiveram contato com o objeto, considerado de grau altamente significativo, com provas materiais irrefutáveis. 
A nave de intensa luz surgiu por volta das 23 horas sobre uma embarcação de pesca estacionada próxima no rio e ali permaneceu alguns minutos, tempo suficiente para impactar os pescadores, causar pane elétrica na embarcação e deixar marcas e efeitos duradouros nas testemunhas. O caso foi registrado por reportagens locais e por isso atraiu muitos curiosos e especialistas, exatamente porque os vestígios eram inegáveis, embora dentro dos padrões já conhecidos. 
O caso Piaçabuçu-Mar Pequeno, ocorrido na área continental, está registrado até hoje na memória dos sobreviventes e familiares, cujos depoimentos fazem parte do acervo de documentários sérios sobre esse tema. Os pescadores Fernando Bezerra da Costa e Wilson da Silva Oliveira lançavam redes no rio quando foram surpreendidos pela luz. Percebendo o perigo de algo desconhecido e imprevisível, Wilson se escondeu dentro do barco. Fernando permaneceu do lado fora, tentando saber do que se tratava aquele estranho objeto voador, pois não havia barulho de motores nem fumaça. Sua curiosidade expôs seu corpo à uma radiação muito forte, causando-lhe posteriormente graves mudanças no seu metabolismo. Na época ele pesava mais de 100 quilos e depois do incidente teve uma perda da metade do peso e sua saúde permaneceu instável por muitos anos. Wilson, apesar de escondido, teve graves alterações cardíacas, tendo que usar uma válvula artificial no coração por dez anos. 
As provas desse avistamento em São Vicente causou grande repercussão porque as provas materiais eram marcas de pouso do mesmo objeto luminoso sobre a ilha próxima, causando a desidratação na vegetação num raio cinco metros, sem nenhum vestígio de fogo. Além disso, foram encontradas marcas de sapatas de padrão desconhecido na mecânica de aeronaves e com grande profundidade no solo. 
Não há explicações científicas conclusivas para esses fenômenos vistos e fartamente relatados, apesar da repetição de registro dos mesmos. A ufologia tenta há anos estabelecer uma síntese e uma teoria de classificação fenomenológica, mas, ainda assim, enfrenta forte resistência entre os céticos, que não sabem explicar as evidências deixadas nos avistamentos. 


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O MÉDICO 




NAQUELA MANHÃ fria de inverno a Botica do Glória estava com um movimento anormal, por causa do clima horrivelmente favorável a multiplicação de doenças respiratórias. O barulho das conversas e pessoas tossindo repetidamente não tirou a calma do velho farmacêutico, que atendia à todos com paciência e atenção, dois cuidados muito importantes para manter a ordem de atendimento. Seu Glória não podia se distrair com atenções especiais e diferenciadas naquele momento grave. Atendia seus clientes cotidianos e também uma enorme fila de pessoas pobres que vinham dos bairros distantes em busca de ajuda, pois não tinham como consultar os médicos da cidade. Era uma época difícil e, nessa estação temperada, toda a região ficava temerosa com propagação de epidemias mortíferas. 
Nesse mesmo instante, em Santos, dentro do bonde que vinha pelo canal 1 e depois pela orla em direção ao Itararé, estava um jovem médico, que observa a paisagem com um olhar vago e meio triste, completamente alheio ao que se passava ao redor e muito menos ao serviço que o aguardava. Na medida que se aproxima de São Vicente, o jovem fica cada vez mais inquieto e não escondia mais suas insatisfação é tédio. Queria estar no seu consultório à espera de seus clientes, ou então na companhia de amigos desfrutando uma boa conversa e planos para o futuro. Naquela semana ele havia recebido uma proposta irrecusável e que poderia dar um outro rumo na sua vida. Era a chance de sair do Brasil e viver na Europa que, apesar das agitações políticas e da crise econômica, ainda vivia a Belle Époque, sobretudo em Paris. Mas a proposta não o levaria à França e sim à Londres onde, em sociedade com amigos, instalariam um escritório de importação e exportação. Tinham bons contatos no Porto de Santos e também nas empresas de navegação europeias e norte-americanas. Os jovens sócios, tal qual ele, finalmente se libertariam dos seus diplomas de bacharéis, que os prendiam aos seus pequenos empregos de consultas médicas e demandas advocatícias. 
Esta era a causa da tristeza e também inquietação do jovem médico que precisa chegar em São Vicente e logo em seguida retornar para uma conversa de negócios no fim de tarde com os futuros sócios. O serviço não demoraria muito. Era uma ordem da associação médica, para verificar uma denúncia de exercício ilegal da medicina. Naturalmente era algum charlatão que alugara uma porta comercial naquele endereço, para vender xaropes e pomadas miraculosas. Nesse caso o denunciado era acusado de aviar receitas. Era uma denúncia um pouco mais, que não poderia ser somente um caso de fiscalização municipal, mas de queixa-crime. Quando chegou ao centro, o jovem médico se dirigiu para o endereço anotado na carta de notificação que entregaria ao proprietário, alertando-o sobre suas atividades ilegais. No local, na rua Jacob Emmerich, existia um chalé de madeira, de aparência rude. De longe já avistou o intenso movimento de pessoas doentes em frente ao estabelecimento e percebeu que o problema era mais grave do que haviam relatado a ele quando recebeu a ordem de diligência. Mesmo assim, embora preocupado, aproximou da botica e pôs em prática sua tarefa, sempre questionando se voltaria a tempo para o encontro de negócios. Já dentro do chalé, sentindo-se bombardeado pelo barulho de tosses e choro de crianças, o jovem médico anunciou sua presença, exigindo rápida atenção. Foi quando surgiu de uma das salas uma figura tranquila e, naquele momento, um tanto desconfiada. O farmacêutico José Ignácio da Glória ouviu o pedido de atenção e imediatamente comunicou ao jovem médico que não tinha tempo para atendê-lo naquele momento, pois tinha que dar atenção à todas pessoas que ali estavam em situação de angústia. Estava sozinho, prescrevendo e ao mesmo tempo manipulando remédios urgentes aos mais necessitados. Pego de surpresa por essa reação indignada do “Seu Glória”, o jovem médico não sabia onde enfiar a cara de tanta vergonha pela sua insensibilidade e distração. Ao justificar sua impossibilidade, Seu Glória ficou de braços abertos e mostrando com as mãos o sofrimento daquelas pessoas que ali estavam. Foi então que o jovem médico guardou a notificação, tirou rapidamente o paletó, segurando sob um dos braços e arregaçando as mangas da camisa. Puxou uma cadeira e ali mesmo começou atender os doentes que julgou estar mais necessitados. Seu Glória entendeu o gesto e voltou para a sala onde preparava as fórmulas e também conversava com alguns pacientes. A jornada de trabalho pulou a hora do almoço e avançou pela tarde, passando tão rápido que nenhum dois atendentes deram conta de já que estava escurecendo. 
Não se sabe o que os dois conversaram após fecharem juntos as portas da Botica e saírem caminhando em direção ao ponto de bonde. O jovem falava, gesticulava e até cantarolava, enquanto o velho farmacêutico ouvia e sorria diante daquela perfeita imagem de juventude e felicidade que caminhava ao seu lado. O jovem médico era o poeta Martins Fontes, que iniciava sua carreira na medicina e talvez encerrava ali o seu sonho de empreendedor internacional. Sorte nossa que nunca deixou de ser poeta. 


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PERTO DA SERRA, LONGE DO MAR 


A VIDA VICENTINA nunca ficou restrita às vilas da área insular e sempre expandiu pelo continente serra acima, em direção ao planalto, como nas direções opostas do litoral sul e litoral norte. Na parte litorânea e serrana que restou do antigo território da capitania, após inúmeros retalhamentos, São Vicente conseguiu preservar como município grandes áreas limítrofes com São Paulo, São Bernardo do Campo, Cubatão, Santos, Itanhaém, Mongaguá e finalmente Praia Grande. Nossa área continental de mata atlântica, ainda imensa, causa espanto e admiração aos que penetram nos seus terrenos ainda selvagens, embora cortados por estradas de ferro e rodovias. Na parte mais antiga temos Santana de Acaraú, Paraitinga e Samaritá, povoados surgidos a partir das estações ferroviárias que ligavam São Paulo ao porto de Santos. Dessas, o Samaritá tornou-se o mais antigo bairro da área continental, preservando a linha férrea até o final dos anos 1990, através da Ponte do Barreiros. Era uma extensa região ao mesmo tempo ocupada por negócios de extração mineral, depósito ilegal de resíduos industriais tóxicos, como também pequenos bairros marcados pelo abandono e isolamento, até o início da década de 1980. Desse período em diante, a São Vicente insular, assim como Santos, passaram por uma grave crise demográfica, esgotamento dos bairros residenciais, resultando numa forte pressão e ocupação das áreas continentais mais próximas. O Samaritá, Rio Branco e Rio Negro foram os primeiros alvos de invasões, grilagem de terrenos e loteamentos irregulares. Logo depois, numa antiga área federal para isolar o gado em quarentena antes do abate nos matadouro da ilha, ocorre a maior invasão e ocupação irregular da história do município. Surgem ali os bairros Quarentenário, Jardim Maria Dolores e mais recentemente a Fazendinha, todos ocupando mananciais e várzeas dos rios que banham a região, principalmente o Mariana e Boturoca. Muito antes dessas invasões foram feitos dois grandes loteamentos financiados pelo sistema nacional de habitação, o Jardim Humaitá e o Parque Continental, próximos ao complexo penitenciário do Samaritá. Nesse período já estava em franca expansão o complexo rodoviário Anchieta-Imigrantes em direção ao litoral sul, separando esse bairro da Serra do Mar, o que aumentou mais ainda o interesse de ocupação imobiliária. 
O interessante de toda essa movimentação e ocupação é presença majoritária de migrantes nordestinos e do sul Minas, já residentes em Santos e São Vicente, sempre em crescente aumento de volume em função do ciclos históricos das secas, crises econômicas e busca de estabilidade nas novas áreas industriais e de turismo praiano. É bom lembrar também que as invasões, grilagens e loteamentos irregulares nessas periferias não foram diferentes das que aconteceram nas orlas dos municípios e que geraram os disputados bairros de casas e edifícios de temporadas. Em São Vicente, por exemplo, faixas inteiras de praias foram invadidas e ocupadas com a conivências de autoridades sem nenhum tipo de contestação ou punição, assim como ocorreu e inda ocorre nas áreas periféricas. 
Mas a São Vicente continental e da Serra continuam sendo lugares distante e isolados da vida insular. Diariamente milhares de pessoas se dirigem á ilha, São Vicente e Santos, para trabalhar, estudar, consultar médicos, fazer tratamentos, compras, pagar contas e resolver inúmeros assuntos que só são possíveis nos centros dessas duas cidades da ilha. Elas não fazem esse trajeto como faziam os antigos moradores do Acaraú, navegando em canoas pelos rios ou embarcando nas estações de trem mais próximas; ou ainda, de automóveis e demorados ônibus, dando a volta por Cubatão ou pela Praia Grande. Hoje o trajeto é feito pela avenida Angelina Pretti, logo após o Quarentenário e Jardim Maria Dolores em direção à ponte rodoviária A Tribuna, construída ao lado da velha ponte ferroviária dos Barreiros, em cima do canal do Mar Pequeno. 
Ao contrário dos antigos territórios vicentinos da antiga Capitania, a Área Continental de São Vicente não sonha nem se movimenta pela emancipação, apesar das distâncias e dificuldade de transporte e principalmente do número de habitantes, que hoje já atingiu a casa dos 150 mil. A maioria dos moradores já residiu na Ilha, nos bairros periféricos de Santos e São Vicente, e sonha uma dia voltar para a área insular, morando em bairros melhores, sobretudo na orla. Se os habitantes antigos perderam a esperança do retorno, os mais jovens mantém viva essa chama de mudança, mesmo que não haja perspectivas animadoras. Embora não consigam residir nas belas casas e confortáveis apartamentos da orla, é na ilha que eles conseguem seus primeiros empregos, frequentam as escolas profissionalizantes, os shoppings e lojas da moda, os eventos culturais e as grandes celebrações como o Reveillion o Carnaval. E assim vão vivendo e se alimentando de sonhos. Já os mais velhos, apesar de desiludidos, continuam se considerando vicentinos, vivendo de lembranças e conformados de que a única vida possível e digna para eles é do outro lado da ponte, perto da serra e longe do mar. 


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FICAR EM PÉ 


QUANDO SAÍMOS DA CASA onde dormíamos ainda era noite alta e nossa sorte foi que a lua resolveu nos ajudar escondendo-se para aumentar a escuridão. O silêncio da mata era bem menor que as nossas pisadas leves e rápidas, pois só carregávamos pequenas porções de comida, algumas mangas e pedaços de mandioca crua. Estávamos descalços. Seguimos os passos rápidos do Pai e os movimentos atentos da Mãe, sem olhar para trás ou para os lados. Noite de muito medo e angústia. Tínhamos que sair dali o mais rápido possível para tentar chegar até estrada e dar a sorte de encontrar um caminhão que nos levasse até um lugar mais seguro. Rezávamos para que os latidos dos cães da fazenda fossem comuns e não denunciassem a nossa fuga. Fizemos o trajeto fora dos piquetes e das porteiras e tivemos que dar uma volta bem mais longa, para não correr o risco de sermos capturados. Poderia até chover e cair raios que para nós seria motivo para ganhar tempo. Quando nos afastamos uma boa distância, o Pai pôde falar e só repetia que tínhamos que correr até não poder mais. E corremos, fugindo e buscando um lugar para nos escondermos, caso fosse necessário parar e descansar alguns minutos. Não encontramos nenhum e não descansamos. Só parávamos para ver que rumo o Pai tomava e até hoje nunca descobrimos como ele nos conduzia e como escolhia a direção. Não havia tempo para perguntas. Só havia medo e dúvida. Passamos seis meses naquela fazenda e quando ali chegamos tínhamos somente a roupa do corpo. Quando saímos tínhamos menos do que isso e um enorme dívida com o capataz. Dívida que nenhum trabalho conseguia pagar. Por isso corríamos sem parar e sem descansar porque, se voltássemos, as coisas ficariam bem piores do que já estavam. 
Durante muitos anos sonhei com essa fuga, com a escuridão e com cobras enormes cruzando os nossos caminhos e insinuando que deveríamos voltar, pois dali não sairíamos vivos. “Melhor a escravidão do que a morte”. O medo e angústia só acabavam quando o sonho era interrompido. Penso nos que não tiveram coragem ou oportunidade de fugir desse destino vaticinado pelas serpentes negras dos meus sonhos. Não lembro de como o Pai nos tirou dali. Apaguei essa memória e nunca tive coragem de perguntar para a Mãe como chegamos aqui. Continuamos andando, sempre correndo contra o tempo, matando a fome, a sede, o frio, do jeito que era possível. Ainda vejo o Pai avisando a Mãe e ela nos chamando para ir para algum lugar que ela nunca sabia onde era, mas confiava nas decisões dele, pois até ali continuávamos vivos, embora com menos medo e sem a angústia daquela noite. A fome não incomodava mais. Foram tantas viagens, tantos lugares, tantas chegadas e partidas que perdi a conta e a noção se estávamos indo ou voltando. Não éramos de nenhum lugar. Éramos do mundo e o mundo era tão grande que poderíamos ir onde quiséssemos. Pensava assim quando comecei a pensar sobre nós e sobre as coisas. Ainda não pensava nada sobre mim. Cada noite dormida e cada manhã acordada desmanchava esse pensamento e construía outro, na medida em que mudávamos de lugar. Teve um momento que comecei a pensar que poderia chegar a algum lugar e não ir mais para lugar nenhum. Minha mãe pensava isso, mas não podia falar. Ela só dizia pelos olhos e, quando percebia que eu estava tentando adivinhar seu pensamento, ela desviava os olhos para outro assunto. Os olhos do Pai eram perdidos e não diziam nada. Nunca disseram. Não conseguia enxergar nada além daquele dia que começava de manhã e terminava à noite. Comecei a perceber que as coisas mudavam quando descobri que algumas crianças moravam em algum lugar e nós morávamos em lugar nenhum. Morávamos na rua durante o dia, noutra rua durante a noite e no dia seguinte não sabia qual rua iríamos morar. Pelos menos dormíamos e acordávamos sem medo e sem aquela angústia da noite que nunca terminava nos meus sonhos. Mas um dia terminou e nunca mais sonhei com aquelas cobras que insistiam que nós não éramos ninguém e que nunca ninguém se importaria conosco. Foi quando passei a andar em pé. Antes achava que estávamos sempre no chão, nos arrastando de lado para o outro. Foi na escola que percebi que as pessoas ficavam paradas em pé sem se incomodarem com aquela posição. Tinha medo de ficar em pé, como elas. Elas tinham lugar onde morar e podiam ficar em pé. Eu achava que não era permitido ficar em pé se você não tivesse lugar para morar e sentar. Quando a professora mandava ficar em pé para ir até a lousa ou responder perguntas, ficava pensando até quando isso iria durar. E fui acostumando a ficar mais tempo em pé e tomando gosto pelo costume dos meus colegas de escola e de todas aquelas pessoas que fomos conhecendo na cidade onde demoramos mais tempo sem se mudar. Quanto mais aprendia coisas na escola, mas queria ficar em pé. Pai e mãe não queriam ficar em pé, porque não era preciso mais andar e correr da fazenda. Sabiam que logo sairia andando pelo mundo, sozinha, pois estava perdendo o medo de ficar em pé. Teve um dia que descobri que não eram as minhas pernas que me faziam ficar em pé. Quando aprendia uma coisa nova, não tinha vontade de sentar. Queria ficar em pé e saber mais coisas. As pernas ficavam fortes e a cabeça leve. Um dia tive absoluta certeza disso quando, pela primeira vez, ouvi alguém falar da lei da gravidade, que nos mantinha presos ao chão. Pensei, então quem fica em pé não obedece essa lei. Eu estava ficando cada vez mais desobediente. Por isso a Mãe ralhava comigo de vez em quando, porque percebia que eu queria ficar mais tempo em pé. 
Mas precisava encontrar um lugar onde pudesse arrumar um jeito de ficar em pé sem ter que ficar mudando. “Difícil. Muito difícil”, pensava. Foi isso que o Pai procurou a vida inteira e acabou indo para a outra vida sem ter conseguido o que buscava. A mãe pensava que era o destino dela e também o nosso. Comecei a pensar que ninguém sabia com certeza qual seria o seus destinos. Precisava descobrir um caminho, mesmo se não soubesse exatamente onde iria parar, pois nesse percurso era possível que encontrasse um bom motivo para ficar em pé. O Pai, de vez em quando, ficava cismado e arrastava a gente para algum lugar onde pudesse parar de andar. Não teve sorte ou não conseguiu enxergar a chance. Fomos para naquela fazenda porque disseram para ele que o governo estava dando terras para quem tinha vontade de trabalhar. Era uma cilada. Isso também aconteceu comigo quando vim para a Área Continental. Achei que era uma cilada o boato de que tinha terrenos grandes, sem dono, que estavam sendo retalhados e ocupados sem nenhum impedimento. Quando fiquei com vontade de ver como estava acontecendo tudo isso tive também aquela sensação de medo e de voltar a sonhar com as cobras. Mesmo assim decidi enfrentar o medo e resolver tudo em pé. Em pouco tempo tudo estava resolvido. Estava morando num lugar que escolhi, que podia dizer onde estava morando e que poderia decidir nele quanto tempo eu quisesse. Vi também que muitas pessoas caíram em ciladas e tiveram que sair correndo dali exatamente como nós quando saímos da fazenda. Ficava com dó, mas não podia fazer nada, porque aquelas pessoas não conseguiam se manter pé. Tiveram que fugir da Fazendinha, o nome do novo lugar onde foram morar as pessoas que não eram de lugar nenhum, como eu. Nas conversas com os novos vizinhos sobre as nossas histórias e caminhos, sempre me lembrava da fazenda da qual fugimos, talvez muito maior do que todas as cidades da região, comparada com esse lugar que passei a chamar de Fazendinha. O apelido pegou. 
Não perdi a mania de querer ajudar. Sempre que posso, mando fazer uns panfletinhos para distribuir no centro da cidade, no início da noite, para os que estão no chão, prontos para dormir: 

“LEVANTE-SE. FIQUE EM PÉ. 

Pelo menos por um dia, tente ficar em pé o máximo de tempo possível. Fique no chão apenas quando for dormir ou descansar. Levante e ande sempre que puder, de cabeça erguida. Se desanimar, olhe para o Alto e peça forças para suportar o peso do seu corpo e da sua prova. Conte o dia e as horas que conseguiu ficar em pé. Cada vez e cada dia que você fica em pé é um grande passo e uma grande vitória em sua vida”. 


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CAFÉ DE SOLDADO
 

AINDA FAÇO CAFÉ à moda antiga, esquentando água em caneco de alumínio e passando em coador de pano. Sempre que faço isto, lembro as instruções do velho degustador de uma casa comissária do Porto de Santos. Dizia ele que a água não deve ferver e, se passar do ponto da ebulição, ela deve descansar por algum tempo antes de molhar o pó. É o melhor jeito de saborear o café pelo olfato antes de experimentar pelo paladar. E o cheiro se espalha pelos cômodos da casa e até pela vizinhança. Vi também a instrução de uma mulher no canal youtube, dando a receita de café de soldado, sem coador. O preparo ritual dela é um recado diário para alguém da vizinhança, que espera o cheiro chegar, naquela mesma hora, após o pó ser mexido pacientemente na água quente. Sedução.
O cheiro do café é inesquecível. Na minha infância, no interior de São Paulo, ele vinha da torrefação que ficava a umas seis quadras da minha casa, expelido pela chaminé, causando uma inquietação em todas as casas e estabelecimentos próximos. No início dos anos 1970, o centro de Santos, a qualquer hora da manhã ou da tarde, cheirava a café torrado. Um cheiro tão forte que provocava náusea e tontura nas crianças que caminhavam com os pais nas calçadas próximas ao porto. Eu era uma delas. 
Durante uma fase da vida a gente deixa de tomar café, para procurar emoção em outros cheiros e sabores, mas depois, entediados com as descobertas e aventuras, voltamos para casa em busca do aroma original, o mesmo que nos fazia despertar pelas manhãs ou assanhar os sentidos nas tardes, na hora do café das três ou quatro. 
Às vezes fico pensando que o café é uma droga poderosa e não é à toa que ficou conhecida como o vinho das arábias, capaz de mexer com os vivos e também com os mortos. O desejo de tomar um café muitas vezes não é apenas nosso e vai muito além do que imaginamos em nosso mundo íntimo. É um desejo dos que estão entre nós, mas em outra dimensão, que precisam recuperar a memória e refazer os passos perdidos na hora da morte. O café para eles é um momento perdido de vida, de lembrar de coisas que podem dar sentido ao que está sem rumo e significado. Então, em pensamento, eles pedem café, cujo cheiro da passagem no coador é um momento de prazer e de lembranças. 
O cheiro e o sabor do café lembram as plantações e terreiros das grandes fazendas e das senzalas onde viviam os braços que colhiam os rubis nas longas fileiras de pés. Um cafezal em flor é um espetáculo e deu até uma famosa canção triste com esse nome. Lembram também as primeiras ferrovias do Império as quais, em São Paulo, se diriam ao Porto de Santos e estacionavam ao lado de armazéns gigantescos e ali aguardavam o embarque nos porões dos navios. Os armazéns estão lá até hoje, tombados, resistindo ao tempo. O carregamento está registrado em fotos antigas. Eram sacas de 60 quilos sendo conduzidas, sempre em carga dupla, nos ombros de carregadores, em filas enormes, lembrando a ordem e organização dos formigueiros. Um negócio que durante décadas movimentou riquezas e proporcionou prazeres e também tristezas e sofrimentos. De um lado os barões e comissários com suas manias e luxos; do outro, escravos e trabalhadores simples e descalços, com suas misérias e necessidades. 
Olhando velhos documentos e publicações descobri que São Vicente, mesmo distante do porto santista, era o reduto dos endinheirados do café: os comissários e corretores, os fretistas de vapores marítimos, os financiadores bancários e os altos funcionários da alfândega. As chácaras vicentinas do Itararé e da Vila Afonsina eram seus lugares preferidos, longe do cheiro ruim do estuário e do perigo das doenças e epidemias que brotavam no Paquetá e no Valongo. Foram os portugueses, italianos e espanhóis - já paulistanos- que descobriram (ou redescobriram) a velha São Vicente como ponto de veraneio e moradia tranquila. Santos já era uma cidade grande, cara e também insalubre. Saturnino de Brito ainda não havia sido chamado para projetar os famosos canais que se tornariam a marca principal da paisagem santista. São Vicente continuava pequena e modesta, porém com ar puro e paisagem deslumbrante. Os estrangeiros que vinham da Europa comercializar café em Santos adoravam o silêncio e o verde bucólico da Biquinha e da Praça 22 de Janeiro, ou dos arredores do Itararé, onde moravam os velhos calungas. Depois foram chegando os franceses, suíços, suecos, ingleses e principalmente alemães, os mais agressivos consumidores e negociadores de café, até nos dias atuais. Todas as reportagens sobre o alemão Theodore Ville, o Imperador do Café, relatam suas andanças pelas fazendas do interior, pela capital, pelo Porto de Santos, onde tinha seu principal escritório, mas nenhuma delas conta onde ele morava. Será que esse tempo todo em que esteve perambulando e ficando milionário ele residia na Vila Betânia, em São Vicente? Será que ele usava diariamente as carruagens que percorriam a Estrada do Matadouro ou o Caminho do Itararé-José Menino para chegar e voltar do Porto para São Vicente? Difícil dizer por que consta que ele sentiu saudades da sua terra e voltou para a Alemanha em 1847. 


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BUQUÊ DE FLORES

No final de uma tarde e sexta-feira o movimento na Ponte dos Barreiros está intenso, mais do que nos outros dias da semana, com um certo alvoroço nas duas cabeceiras, tanto do lado da ilha como da parte continental. Talvez seja dia de pagamento porque o número de vendedores ambulantes também está maior, bem como o barulho dos gritos repetitivos de oferta dos seus produtos. 
A multidão que caminha na direção oposta à ilha está imensa e a velocidade da marcha bem superior aos que caminhavam para a outra margem. Em outros dias e horários os rostos dos caminhantes se inclinam mais para a expressão sisuda, fechada, revelando cansaço e irritação. Na sexta-feira - e provavelmente também aos sábados e domingos – se tornam em sua maioria mais alegres e sorridentes, com saudações contentes e cheias de intimidades nos encontros entre conhecidos. Não é raro acontecer uma rápida conversa entre estranhos ao identificarem impressões comuns durante o trajeto e que marca uma troca de comentários e gargalhadas. À vezes essas trocas de impressões são gestos de indignação, por causa dos transtornos causados pela interdição da ponte, tudo muito rápido, no ritmo dos cruzamentos casuais. 
No meio da ponte o som das falas parece diminuir o volume, talvez pelo cansaço e também pela força do vento e da paisagem, desviando os olhares para a imensidão do Mar Pequeno, os paredões distantes da Serra e a vista distante das centenas de edifícios da orla de Praia Grande. Poucos olham para céu e, quando olham, o fazem rapidamente para não perderem o sentido do caminho. 
Mas é sexta-feira. Hoje é permitido até tropeçar por distração sem que ninguém repare ou ria do incidente. Bem ali no trecho ventoso caminha em nossa direção um pequeno grupo familiar. Na frente estão dois jovens sorridentes. É um casal com trajes simples, calças jeans, camisetas e tênis. Caminham um pouco distantes um do outro, ligeiramente envergonhados, porém felizes. Ela trás em uma das mãos um pequeno buquê de flores e não esconde um sorriso de alegria. O rapaz caminha tranquilo e vigoroso, com a sensação do dever cumprido, conformado com o destino e com um ar de quem acaba de se render ao inevitável. Uma senhora que está ao meu lado olha para o buquê, abre um sorriso e começa a bater palmas desejando, em voz alta, felicidades ao casal. Parece que são conhecidos e moram no mesmo bairro. Ou não. Mesmo assim, a pequena multidão que se forma nesse rápido encontro sobre o ponte, acompanha o gesto espontâneo da mulher e explode uma salva de palmas e até se ouve alguns assovios e gritos de cumprimentos. Não resisto e também aplaudo aquela cena maravilhosa, de uma simplicidade rara e comovente. A jovem noiva retribui com gestos de agradecimentos e seu marido segue em frente parecendo acelerar o passo para garantir uma vaga nos disputados assentos do ônibus que irá levá-los onde moram. Momento especial, lindo e inesquecível. 


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O CENTRO CÍVICO E O GENERAL


No final dos anos 1970 o Brasil ainda vivia o clima patriotismo do regime militar. As escolas eram os mais importantes núcleos do culto nacional, de olho nas futuras gerações conservadoras, um grande jogo de aparências e negócios monopolistas que começava a ser questionado com mais intensidade pelas forças democráticas. Mas uma boa parte da sociedade ainda se sentia segura e protegida pelos quartéis. Não havia quadras esportivas na maioria das escolas de São Vicente, devido a escassez de espaço urbano. A nossa era a E.E. Augusto Saint-Hilaire, que havia sido construída num grande terreno ao lado do rio Sapateiro, na avenida Martins Fontes. Antes ela se chamava Escola Vidrobrás, já que o prédio tinha todas as janelas protegidas por vidros aramados procedentes da grande fábrica de vidros que funcionava em frente da escola, do outro lado da linha da E.F. Sorocabana. A Vidrobrás deve ter financiado a construção da escola ou parte significativa dela. Isso deve ter acontecido nos anos 1950, pois, na época dessa história as instalações já estavam bem deterioradas. Nossas aulas de educação física eram feitas no terreno baldio ao lado ou então, uma ou duas vezes na semana, o professor agendava para as turmas fossem até o quartel do então Batalhão de Caçadores -2ºBC, para a prática de atletismo. Era uma moda e também uma forma de manter as boas relações do Exército com a população. Várias escolas participavam do programa. Nesse mesmo contexto existiam nas escolas, como força  ideológica, os centros cívicos, um exercício de democracia vigiada. Tínhamos uma nova direção e logo os professores foram convencidos de que o Saint-Hilaire deveria ter um grupo político mirim nesse modelo. Fui leito presidente. Estava na sétima série e era dois anos mais velho do que a minha turma e com um passado problemático. Tinha sido convidado a me retirar da E.E. Zulmira, no Voturuá , por causa de uma malcriação e briga com uma funcionária da escola. Para se vingar a mesma pediu a um aluno maior do que eu  que fizesse justiça. Apanhei na entrada do período. Minha mãe foi conversar com o Delegado de Ensino, que morava perto de casa, e ele resolveu me transferir para o Catiapoã. Era um longo percurso à pé, mas valeu a pena. Mudou tudo. De provocador de brigas fui promovido a conciliador. Eleita a chapa, tínhamos que mostrar serviço. Os professores ficaram entusiasmados com a mudança. Para nos ajudar , o professor José Gomes ordenou a montagem da peça O Noviço (que ensaiamos durante um ano e nunca foi apresentada). O professor Ênio, de Geografia, encomendou um trabalho e uma exposição sobre os  principais países. O meu grupo pegou a França. Naquela época ninguém fiscalizava a idade dos passageiros de ônibus e fui sozinho a São Paulo, no escritório do Consulado da França, no Conjunto Nacional da avenida Paulista, em busca de informações e material. Fui muito bem atendido e saí de lá com duas sacolas abarrotadas de revistas, mapas e folhetos de turismo. Conhecia todas as  estações do metrô da única linha azul e sempre descia na Sé para percorrer as livraria espíritas (era responsável pela biblioteca do C.E. Irmão Timóteo, na vila Valença).  Mas não bastou. Inventamos de pintar a escola. Estava muito feia. Encontramos o prefeito Koyu Iha na rua Frei Gaspar e pedimos ajuda. Ele disse que providenciaria as tintas, mas que não tinha mão-de-obra naquele momento. E sugeriu que pedíssemos ajuda ao comando do 2° BC. E foi feito. No dia da nossa aula no quartel, pela manhã, aguardamos a chegada do comandante enquanto fingíamos alguns exercícios. De repente entrou um carrão diferente e um soldado amigo nos deu um sinal do tipo: “O Homem chegou”. O professor , já sabendo da trama, sumiu na pista de corrida para disfarçar. O Comandante nem havia descido do carro e foi assaltado por gritos da nossa turma. “Coronel, Coronel”. O João Vicente foi o único que  destoou na gritaria dizendo “Ô seu General” (quase linchamos ele). O Comandante e seu ajudante de ordens parecia já saber da nossa intenção e aguardou o nosso pedido. Não prometeu nada mas disse que, ainda naquela semana, iria fazer alguma coisa. No dia seguinte, quando chegamos para as aulas, à tarde, vimos uma movimentação estranha na escola. Em frente estava estacionado um caminhão Mercedes coberto com lonas verdes.  As meninas estavam eufóricas, pois haviam pelo menos uns 30 soldados, todos de tênis, chorts e camisetas regata, se movimentando dentro e fora da escola, com facões, vassouras, latas de tinta (cal), enxadas e rastelos. Quando deu o sinal de entrada, o Luiz, secretário da escola, apontou o dedo para o nosso grupinho e disse: “Aprontaram né, sem avisar agente gente né. Isso não ficar barato não”. Disse em tom de ameaça, mas não conseguia esconder a emoção de ver aquela agitação toda na escola. O João Vicente, apavorado, disse que ia fugir para São Paulo e se esconder casa dos tios. O Luiz  me chamou num canto e justificou falando baixo: “O Homem veio aí  e foi logo perguntado da diretora. Ela não estava (nunca estava). Depois foi conversar com os professores e foi embora meio chateado...” 

Resultado: a escola foi limpa, arrumada, pintada e a diretora nunca mais apareceu mesmo. 


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OS LIVROS E OS CADERNOS DA MENINA FILOMENA

A Escola Estadual Martim Afonso, na primeira quadra da rua José Bonifácio, talvez seja a única na cidade a não ter uma quadra de jogos e espaço para a prática de esportes. Desde à sua instalação próximo à orla até os dias atuais, em alguns períodos, os alunos atravessam o ano letivo e seus ciclos escolares inteiros sem aulas práticas de educação física. A escola foi construída alí no final anos 1950 próxima à praia e num bairro onde o metro quadrado sempre foi muito valioso. No início essas aulas comuns aconteciam em prédios improvisados; e as de atletismo eram feitas no calçadão da orla e na areia praia. Era um tempo em que a cidade era mais tranquila e os alunos podiam ir e vir sem causar preocupações aos pais e educadores.
Mas nem as coisas nem sempre foram assim.
Reza a lenda que, certa feita, um grupo de meninas do Martim Afonso saiu da escola - que na época funciona na mesma rua, porém na instalação de antiga pensão - e foram em direção à praia para realizar alguns estudos e colocar assuntos específicos em dia. Estavam de aula vaga. Não satisfeitas com os bancos do calçadão, tiraram os sapatos e entraram na areia, sentando-se num alegre círculo, colocando os cadernos e livros no chão para ganhar tempo até quando chegasse a hora de irem para suas casas. Eram minutos preciosos de liberdade e diversão. Uma delas, em incontido e inexplicável impulso, sem que nenhuma delas discordasse e impedisse, resolveu por si refrescar os pés no vai e vem das ondas. Sob a curiosidade e até inveja de algumas, ela foi entrando lentamente no mar até que as águas cobriram seu corpo, restando somente a cabeça e os braços estendidos dos ombros em movimento de equilíbrio, dando a impressão de que flutuava. E assim permaneceu por alguns minutos até que as amigas se distraíram e não perceberam que ela havia desaparecido complemente de suas vistas. Todas em pé, algumas se aproximam da água, olham para todos os lados e busca da colega e nada avistaram. Nos rostos, a angústia e algumas lágrimas desespero, já querendo respostas para o que acabara de acontecer.
Como explicar aquele súbito desaparecimento? O que diriam aos pais dela, aos professores e às suas famílias?
Voltaram apressadas para a escola e alertaram a direção. Nesse ínterim, no calçadão e na areia, já havia alguns curiosos querendo se inteirar da novidade. A notícia se espalhou rapidamente e chegou à delegacia de polícia, que ordenou rapidamente as buscas. Diferente dos turistas que se afogavam por distração ou suicídio deliberado, a menina parece ter sido tragada rapidamente por uma força estranha, sem nenhuma resistência da parte dela. Sumiu no mar.
Como acontece com a maioria dos afogados, o corpo da jovem estudante, sugado pelas águas e por impulso da maré, seria encontrado dias depois boiando próximo da Pênsil na direção do Mar Pequeno. Uma tragédia diferente daquela que atingem turistas desconhecidos. A moça não era desconhecida e sim uma menina de 14 ou 15 anos, agora mais do que nunca, muito conhecida na cidade. Uma grande comoção popular tomou conta dos vicentinos no velório e sepultamento.
Mas naquele dia fatídico e inesquecível, quando todos se retiravam do local onde ocorrera o sinistro, alguém olhou para trás e avistou alguns pertences na areia. Foi até o lugar e, no chão, onde haviam se sentado em círculo, e viu que lá ainda estava os cadernos, os livros, o par de sapatos e as meias da colega desaparecida para sempre. O par de sapatos e as meias foram devolvidos para a família. Os livros e os cadernos foram conservados em segredo entre as colegas, que guardaram como lembrança e depois um preciosa relíquia usada em suas orações para matar saudades da amiga e também auxílio místico em outros momentos de angústia e incerteza. Que segredos poderiam conter nas anotações dos cadernos ou notas esparsas dentro dos livros? Que força estranha e secreta teria impulsionado seu mergulho para a morte? Teria sido uma simples fatalidade, causada por um mal estar súbito, um choque de temperatura e congestão? Ou então uma queda acidental numa cava formada pela maré? Escondia ela algum segredo íntimo que se transformou em tormento e que jamais poderia ser revelado? São dúvidas que só ela ou alguém muito próximo poderia esclarecer.
Foi assim que, aos poucos, esse hábito de cultuar esses objetos entre as amigas mais íntimas da jovem estudante afogada espalhou-se como devoção popular entre mulheres religiosas, que passaram a levar livros e cadernos dos seus filhos colocando-os sobre o túmulo da Menina Filomena. Era assim que ela se chamava, talvez, em homenagem à menina martirizada aos 13 anos em Roma e que depois se tornou santa. O túmulo da menina Filomena, sem que a família pudesse ter algum tipo de controle, durante muitos anos ficava repleto de livros e cadernos no dia de Finados; e também recebia a visita em dias comuns, quando as causas e pedidos de ajuda não podem esperar o distante dia dos mortos no final do ano. Também pode ter sido por isso que, de tempos em tempos, as aulas práticas de educação física no Martim Afonso são suspensas sem maiores explicações.

NOTA de Nelson Jose Gonçalves
"Conheci Filomena, nos a chamávamos de Filó, menina magra de cabelos compridos até a cintura e sua irmã de olhos verdes muito bonita, moravam na rua Marcílio Dias do Nascimento, no Catiapoã, terceira casa descendo do lado da vila sorocabana perto da praça Walter do Amaral, seu pai sr.Tibúrcio, foi candidato a vereador mas não ganhou. Me lembro de uma passagem eu estava brigando em frente a sua casa com meu amigo Miguelzinho camisa preta por causa de bolinha de gude e ele sr. Tibúrcio saiu no portão: "Ei meninos o que vocês estão fazendo aí", entrou na briga para separar-nos e mandou todo mundo para casa. Isto aí que aconteceu com a Filó me entristeceu muito quando soube que ela tinha
morrido afogada. Eu tinha na época 14 para 15 anos, ela também quase a mesma idade; foi enterrada com seu vestido de primeira comunhão. Me lembro como se fosse hoje. Isto ocorreu mais ou menos em 1958, não em 1949. Foi um choque para todos nós. Moro em São Paulo e todas as vezes que desço à Baixada para ver meus parentes e visitar o túmulo de meus pais, visito a quadra nr. 08 do cemitério de São Vicente onde está enterrada Filó, companheira de infância. Seu túmulo está cheio de placas grudadas de (milagres) graças alcançadas".

Comentário feito no grupo Amigos do Martim Afonso - Facebook.



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QUEM É O MIGUEL DE VOCÊS DOIS?



O Fred até que se virava bem em cima de uma prancha, quando conseguia alguma emprestada. Eu nem isso conseguia. Era subir e logo escorregava, com ou sem parafina. Mas queríamos ser surfistas. Nem que fosse de fachada. Camiseta Hang-Ten, shortão de naylon até o joelho, chinelas Havaianas pretas viradas com a sola pra cima. A gente só não passava água oxigenada para descolorir cabelo porque iria ficar ridículo. O resto a gente fazia de tudo. Éramos dois surfistas sem pranchas. Também não queríamos ser chamados de paneleiros, surfistas pobres da periferia, com aquelas pranchas surradas e cheia de buracos. Bem trajados e bem informados, frequentávamos todos os points possíveis da onda surf do Itararé, principalmente a Sorveteria Royal, na esquina da Onze de Junho com a praia. Lá fervilhava toda a rapaziada e as cocotas mais lindas e ousadas da cidade. Eu e o Fred lá, completamente deslocados e só relaxávamos quando alguém vagamente conhecido nos cumprimentava. Um deles era o Carlinhos Piranha, muito legal, amigo do meu irmão mais velho. 
E assim sucediam-se os sábados à noite, quando não íamos ao Gonzaga tomar lanches, ver discos recém lançados em várias lojas e ou assistir à sessão da meia noite, volta e meia exibindo “Rock é Rock Mesmo”, documentário sobre um show do Led Zeppelin em Nova York. 
Certa noite no meio da semana, conversando na calçada da rua Rio de Janeiro com alguns colegas, ficamos sabendo que alguém tinha aberto uma fábrica de pranchas na rua Dom Lara. Era novidade numa época que só existia a Twin, na rua da Constituição. Era chance de conhecer como eram fabricadas as pranchas (só víamos fotos em revistas) e, quem sabe, um comprar uma. A iniciativa foi minha. O Fred, sempre muito cético, achou engraçado e topou ir comigo. Não confiava muito em mim, mas era amigo fiel. Virou engenheiro, depois advogado e eu professor de História. 
Combinada a visita, fomos até a rua Dom Lara, caminhando pelo canal da Monteiro Lobato. Não tínhamos certeza qual era a casa. Quando chegamos na padaria ( hoje Ponto Chic) vimos dois rapazes conversando na esquina, do outro lado do canal. Eram surfistas. Um deles era o Fumaça, gordinho e com o cabelo black-power, levemente descolorido. O outro deveria ser o Miguel. Só podia ser. Era parecido com o irmão mais novo que estudava no Martim Afonso. Era ele sim. O Frederico ficou em dúvida e só concluímos que dos dois a gente só conhecia de verdade mesmo era o Fumaça. Paramos e ficamos observando. Ficamos tanto tempo parados que eles começaram a ficar desconfiados. Entre alguns minutos de “vamos ou não vamos” tomei a decisão e partimos em direção aos dois. Pensava e repetia comigo: Vou perguntar: “Quem é o Miguel de vocês dois”? Um deles vai responder “Sou eu”, lógico. Chegando perto, percebi que os dois nos olhavam com extrema desconfiança e fui logo dizendo, bastante tenso e nervoso: 
- Quem é o Miguel de vocês dois? 
E eu mesmo respondi: SOU EU! 
O Fred começou a rir e não parava mais. E eu tentado manter a pose. 
Foi muito difícil explicar o que o que tinha acontecido. Acho que não conseguimos. Perguntamos onde era Ocean Side , a fábrica de pranchas, e o Miguel gentilmente explicou o endereço e marcou um horário pra gente conhecer a oficina. Nunca fomos e eu só veria o Miguel novamente uns 30 anos depois saindo de uma missa dominical noturna, na Igreja de São Jorge Pescador, em frente de uma lojinha de moda praiana que fica na esquina da Onze, onde era a Royal.


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ROSE MAURA



Nos anos 70, apesar da ditadura militar, com exceção do leste europeu, China e alguns satélites soviéticos, o Brasil e o resto do mundo ocidental vivia mergulhado numa cultura hippie e libertária. Tínhamos costumes que hoje seriam considerados abusivos e criminosos com vender, sem controle, cigarro e bebidas alcoólicas para crianças e adolescentes. Havia um fascínio pelas drogas e também pela liberdade sexual. Era a época dos mochileiros e dos acampamentos, bem como dos festivais de música ao ar livre, imitando as loucuras psicodélicas do final da década anterior nos EUA e na Europa. Não foi a minha geração, mas vivíamos envolvidos nessa moda através dos irmãos mais velhos, que compravam discos e revistas sobre rock. A mais conhecida era a americana Rolling Stone. Em 1974 mudamos do interior para São Vicente e fomos morar no jardim Independência. Em 1976 fui estudar numa escola inaugurada naquele ano e que ficava na divisa dos Tambores. Era uma novidade para a garotada que via nesse acontecimento a oportunidade de respirar novos ares e fazer novos amigos. E fiz vários deles, cuja amizade perdurou bastante tempo até que a idade e os compromissos foram naturalmente desfazendo. Essa escola foi construída na Praça Estado de Israel, num terreno em formato circular , bem em cima do marco divisório entre São Vicente e Santos e as duas Vilas São Jorge. Parte do prédio em Santos e a outra parte em São Vicente. Foi batizada Ginásio Estadual Cidades Irmãs e hoje se chama Neves Prado, em homenagem à antiga e conhecida inspetora de alunos do Ginásio Martim Afonso. Dona Neves era mãe de um alto funcionário da Secretaria da Educação. Era uma grande novidade frequentar aquela escola enorme, feita de concreto armado e com paredes de tijolos de cerâmica à vista. Não tinha muros nem vandalismo. Fui matriculado na sexta série do período noturno, com 13 anos de idade. Era normal. Os adolescentes começavam a trabalhar bem cedo e precisavam estudar à noite. Eu já havia passado pela quinta série noturna da E.E. Sorocabana, na avenida Antônio Emmerich e foi lá fiquei sabendo da inauguração da escola Cidades Irmãs. Fui acompanhando uns colegas, sobretudo o Rafael, que morava perto de casa, na rua Espírito Santo. Ele morava com uma irmã casada. Gostava de boa música e do estilo hippie praiano. Nessa época não tinha asfalto nas ruas dos bairros dessa região. Tinham as pedreiras e a única rua calçada era a velha Anita Costa, cheia de chalés de madeira e paralelepipedo no chão. Na Vila São Jorge não tinha esgoto nem calçamento. Tinha aquelas valas abertas de esgoto, cuja água escura cheirava a coisa podre. Com o tempo a gente acostumava com o cheiro e a má aparência das casas. Um pouco mais próximo à Santos já existia um conjunto residencial de casas de cosipanos e outros industriários que trabalhavam em Cubatão. Um núcleo semelhante, menor, foi feito na Vila Melo, próximo da Igreja Nossa Senhora da Graças. Tomava banho e saía de casa às seis horas da tarde, quando terminava o desenho Tom e Jerry. Era uma caminhada longa de quase seis quadras. Em dias de chuva tínhamos que ir pela Antônio Emmerich, passando pelo Quartel até chegar no Guassu e nos Tambores. Ali descíamos pela avenida divisória para chegar à escola. Na volta, às 11 horas da noite, a mesma coisa: dependendo do clima e da estação do ano, chuva, céu estrelado com lua, calor ou inverno, se tivesse gente nas ruas íamos por dentro. Se não, voltávamos pela avenida. Fiz alguns amigos que moravam na Vila São Jorge Vicentina, como o Donizete. Ele morava numa casa de alvenaria num terreno isolado, de poucos vizinhos, em frente a um campo de várzea e ao morro, cortado pelo antigo rio São Jorge, na época já com canal aberto, mas com muito mato em volta. A casa do Doni era perto da Bica dos Escravos. Era surfista e freguês da Twin, sempre bem vestido. Outro amigo importante foi o Toninho, filho de nordestinos, morava numa daquelas ruas apertadas da Areia Branca, atrás do cemitério. Eu nunca conseguia memorizar a casa nem a rua. O Toninho era playboy brega, ainda usava cabelo black-power, aquelas calças de tergal boca de sino, camisas com estampas extravagantes e sapato de sola e salto altos. Interessante que a irmã dele, mais velha, era diferente e tinha um namorado também diferente. Eles curtiam MPB e foi com eles que conheci os discos do Gonzaguinha. Perceberam que tinha gostado e me tratavam muito bem, mostrando os discos do Fagner, Belchior, Dominguinhos e Gilberto Gil. Naquela época namorar era isso, levava para a casa da mina uma vitrola e alguns discos para regar os beijos, abraços e carícias. Eu admirava e invejava os dois, o estilo deles. Nessa época meus irmãos ouviam rock progressivo (Emerson, Lake e Palmer) e MPB sofisticada: Milton Nascimento, Egberto Gismonti, Novos Baianos. Eu gostava de Jean Luck Ponty, música para viajar de olhos fechados, cósmica.
Na minha sala de aula aconteceu um fato perturbador. Ainda tinha coragem de sentar na frente e duas fileiras depois da minha sentava uma garota chamada Rose Maura. Era linda, morena clara, de cabelos pretos, baixa estatura e corpo esbelto. Usava saia curta, mostrando as pernas muito bem contornadas. Me apaixonei de cara. Ela logo percebeu a minha queda e abusava da minha ingenuidade. Eu sempre deixava, de propósito, um Choquito ou um Diamante Negro em cima da carteira para chamar atenção dela. No começo ela nem ligava, mas depois percebeu a minha intenção e começou a ser mais gentil comigo. Às vezes aceitava a oferta, à vezes não, para não dar na vista. Era encantadora, uma criança querendo ser adulta. Ela dizia pra mim: “Eu já sei o que é a vida, tenho 15 anos nas costas”. Tinha 13 também e ia fazer 14. Morava na rua Maria Patrícia, depois da Areia Branca. Quem me mostrou a casa dela foi o Toninho, num sábado à tarde. Rose Maura tinha uma irmã mais velha, Márcia, que ela chamava de Picita. E uma prima, que fingia gostar de mim, e que morava no Guassu. Quando chegava na escola e subia a rampa em direção a sala de aula, sempre me perguntava se tinha chocolate. Respondia que não, mas oferecia sempre uma bala. Ela aceitava e ficava olhando pra mim com um ar de menina mais velha que sabia que não rolar nada sério. Era muito tímido, não conhecia o jogo nem as regras, um desastre. Não tive a menor chance com a Rose Maura. Mesmo usando roupas de marcas –emprestadas do meu irmão mais velho- e dando quilos de chocolate pra ela. Não virou nada. Ela era apaixonada por um cara bem mais velho, figura que todos gostavam, pela sua presença e simplicidade. Era o Macalé. Quando via os dois indo embora abraçados chegava em casa arrasado. Tinha vontade de beber algo forte. O Rafael me dava o maior apoio e nós comprávamos vinho licoroso para encher a cara. Eu tinha um diário e relatava tudo o que acontecia na escola. O nome Rose Maura aparecia em praticamente em todas as folhas desse caderno. Tinha um professor de Matemática, bonitão, boêmio do Gonzaga, que olhava pra ela e despejava elogios, sem malícia, falando da beleza dela com classe e alegria no rosto. Ela se derretia e eu ficava muito preocupado. Fui perdendo o interesse, meio à força. Chegamos no final de abril, quase maio. O centro cívico marcou um baile de férias, sábado à noite. Fomos eu e o Rafael, de cara cheia de vinho licoroso. Chovia muito e já fazia aquele frio de quase inverno. Mesmo assim formos por dentro, andando em meio ao lamaçal das ruas desertas. Chegando na praça não vimos quase ninguém fora da escola. Ouvimos um som de vitrola tocando Estúpido Cupido, da novela de Mário Prata. Também tocava a trilha da novela Escalada. De vez em quando um pagodinho do Agepê, sob protestos, e depois Nazareth, Led Zepelin e outras bandas que as meninas não gostavam. Queriam ouvir Love Heart e Tender Ness, também trilha de novelas. Pra minha extrema decepção, não apareceu ninguém que esperava. Nem a prima do Guassu. O Doni estava de carro, já tinha carta. Ofereceu carona. A mina que ele gostava também não apareceu. O sábado foi uma bosta e o baile terminou mais cedo. Voltei pra casa e fui encarar a Sessão de Gala, na Globo, seguida do Corujão. Nessa noite deve ter sido exibido “Os Pecados de todos nós”, com Paul Newman; e depois “Pic Nic”, com Kim Novac, já de madrugada. Mas gostava mesmo das reprises de “Vidas Amargas”, com James Dean. Me identificava com a história e com o irmão dele, que namorava a mocinha linda da cidade, e depois morreu na guerra. 
Na virada do semestre mudei de vida e de escola. Nunca mais voltei lá. Quando percebi, já era 1977 e 1978, época do filmes “Embalos de Sábado à Noite”, Greese e da novela Locomotivas. Foi a explosão mundial das discotecas e da novela Dancing Days. Eu odiava. Achava babaquice, todo mundo vestido igual e ouvindo Bee Gees repetidamente. Preferia ver os shows da Rita Lee e Tutti-Fruti (Babilônia) e Hermeto Pascoal, num cinema desativado da Conselheiro Nébias; e do Gilberto Gil (Realce), no ginásio do SENAC. Começavam outros tempos. O mundo dos Yuppies e da cocaína. Logo chegaria os computadores e os games. Nunca mais vi o Rafael. Por onde andará Rose Maura?


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AVISTAMENTO NO ITAIPU



Final de década de 1950. O Forte de Praia Grande é um antigo sítio colonial localizado na encosta de Itaipus, morros que formam um maciço e uma península na barra sul da Baia de Santos. A vizinhança é composta por alguns sítios e chácaras antigas e algumas casas de veraneio na direção da praia do Boqueirão. É um lugar isolado e ainda tomado pela mata atlântica, com poucos pontos de ocupação. A pequena praia que fica do outro lado do maciço é completamente isolada e fechada para os banhistas civis, assim como as dependências da base militar, construída para proteger o porto e a ilha de São Vicente. No período noturno a sensação de isolamento e solidão é mais intensa, predominando um silêncio florestal, um forte cheiro de mato, misturado com a maresia. Não se escuta nenhum barulho dentro ou fora da área quartel e raramente acontece alguma movimentação de veículos particulares ou de serviço.
As sentinelas do Forte, distribuídas em vários pontos da propriedade, funcionam como os únicos meios e elos de comunicação entre os ocupantes da antiga gleba e os moradores dos arredores. Tudo que acontece dentro ou fora do Forte, passa primeiro pela guarda, que filtra as informações por meio dos oficiais que verificam rotineiramente as ocorrências percebidas e registradas pela vigilância.
O Forte é também um lugar de segredos. Segredos militares, controlados pela ordem hierárquica e regulatória; e também segredos comuns e cotidianos, sem nenhum controle hierárquico e burocrático. Essas últimas são ocorrências geralmente curiosas, fora do padrão disciplinar, e correm numa velocidade espantosa, extrapolando os muros, cancelas e tomando rumos e destinos incertos, sempre levadas pelos que entram e saem diariamente.
A ocorrência ali registrada na noite de 4 de novembro de 1957 foi uma dessas que alteraram completamente a rotina e o clima de convívio na Fortaleza. Duas sentinelas, de forma totalmente inesperada, foram surpreendidas por um evento sobrenatural, certamente indescritível pelas meios normais dos testemunhos humanos. São relatos que destoam da percepção e senso comuns. Além das sentinelas, o próprio oficial comandante da Fortaleza, presenciou a ocorrência e testemunhou visualmente o fenômeno manifestado à céu aberto. O Tenente Coronel Adston Pompeu Piza não teve dúvidas de que estava registrando uma ocorrência completamente fora do normal e dos padrões reconhecidos pela ciência e tecnologias conhecidas naquela época. O mundo de então já realizava experiências avançadas, porém, o que foi visto naquela noite na Fortaleza ainda poderia ser considerado raro e espantoso diante daquelas testemunhas. Os testes nucleares já estavam acontecendo em varias regiões do planeta , sob a vigilância das duas superpotências em franca competição de poderes. O céu do ocidente já era povoado por satélites espaciais e naves tripuladas por bichos domésticos, como a cadela russa Laika, que naquele ano havia sido enviada ao espaço pelos pesquisadores soviéticos. O General George Marshal já tinha sido visto na Fortaleza de Itaipu, cumprindo uma rotina de visita a bases militares brasileiras alinhadas com o bloco da OTAN. Naquele mesmo ano, no Brasil, dois acidentes aéreos causaram a morte de todos os tripulantes e passageiros, mais de 80 pessoas. As aparições de objetos voadores se tornaram frequentes naquele período, em vários lugares do Brasil e os relatos se sucediam de forma também espantosa. Em Praia Grande as sentinelas foram atingidas pela luz intensa de uma esfera vermelha, a mesma vista pelo Comandante Adston e também pelos soldados de plantão. Mesmo mantendo segredo militar sobre alguns detalhes considerados inconvenientes para o conhecimento público, o oficial compartilhava repetida e cansativamente sua experiência para familiares e amigos, para não deixar nenhuma dúvida sobre a veracidade do acontecimento e a credibilidade dos soldados-sentinelas ou de qualquer morador dos arredores que testemunharam o fato. O relato oficial foi feito e inclusive retransmitido para outras organizações militares, no caso dos EUA, especializadas e interessadas em fenômenos semelhantes.
Este foi mais um segredo que extrapolou os muros do Forte. Não havia como contê-lo. Nem o comandante se conteve. Era questão de vida e morte e também de razão e sanidade mental. Ver e relatar um fenômeno raro e impressionante não ficava apenas na no aspecto da informação casual e suas repercussões triviais. Surgem muitas dúvidas sobre o significado do acontecimento, coisas que fogem do senso comum. As pessoas sempre questionam se esses fatos são produtos do acaso ou se elas estavam predestinadas a passarem por essas experiências, já que tais acontecimentos causam impactos significativos nas vidas delas. O Tenente Coronel Adston Pompeu Piza, por exemplo, depois de cumprir sua missão de comando no Forte, fixou residência no Boqueirão, onde só frequentava como veranista. Dez anos depois do seu contato com um OVNI no Forte, o oficial se viu envolvido na tarefa de conduzir os novos destinos políticos da cidade, no momento em que Praia Grande rompia seu vínculo político com São Vicente, passando a cumprir um destino totalmente diferente após a emancipação. Adston não era um oficial comum. Lutou na Itália como capitão da FEB e tinha formação específica na matéria Estado Maior das Forças Armadas. Foi encarregado de elaborar um plano estratégico que colocasse Praia Grande como um elemento novo e integrado no contexto da geopolítica regional e nacional. Durante várias semanas ele se debruçou no estudo da geografia física do litoral e frequentava diariamente as instalações da Capitania dos Portos em Santos com a missão de desenhar e estabelecer os pontos divisórios do novo município, respeitando os limites e possibilidades naturais e contemplando as necessidades e tendências da política territorial vigente. Muitas dessas definições escolhas são visíveis e transparentes nos mapas, com razões e explicações óbvias. Entretanto, muitas outras foram por razões impublicáveis, consideradas razões e segredos de Estado. Quais foram elas? Pelos mesmos motivos, o Tenente Coronel Adston Piza também deve ter se perguntado no dia seguinte ao 4 de novembro de 1957: Por que essa esfera de imensa luz vermelha se manifestou exatamente nas sentinelas do Forte? Por que somente eu e os soldados de guarda naquela noite testemunhamos esse fato? O que tinha por trás desse fenômeno? Era algo de natureza espiritual? Era de natureza geopolítica e proposital? Havia dentro do Forte algum tipo de segredo militar guardado – que era muito comum no contexto da Guerra Fria - que interessava aos seres extraterrestres? Por que fizeram questão de aparecer, quando poderiam ter se mantido ocultos? Por que Praia Grande nasceu nesse momento e qual seria o seu papel como nova cidade da região e do estado? Seria coisa do destino ou foi tudo uma mera coincidência?


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BEM-AVENTURANÇA


A chuva forte do fim de tarde apressa a nossa entrada ônibus. 

Um dos passageiros entra pela porta de trás. Permanece em pé. 

No rápido percurso da vila até o centro-praia, ele observa cada um dos que estão sentados, que saíram ou estão voltando para casa. 

Está inquieto e angustiado. 

Alguns pontos à frente explode em choro convulsivo. 

Inconformado, relata que foi forçado a deixar sua casa como medida protetiva. O oficial de justiça foi categórico. 

Saiu com a roupa do corpo, shorts, camiseta e chinelos e um saco-mochila com alguns pertences. Já se prepara para ser um novo morador em situação de rua e teme ser maltratado. Já é idoso. 

Alguns passageiros dizem algumas palavras de consolo e encorajamento. 

Será sua primeira noite na rua. Está lúcido, mas muito abalado. Diz que vai até a delegacia reclamar. 

Alguém lembra que ali perto tem um abrigo público e que ele não precisa dormir na rua. Ele reage com um brilho nos olhos e um pouco de sorriso. 

Desce e caminha solitário. 

Já está bem escuro e lá fora a chuva aperta. 

Uma senhora ao meu lado, que ficou o tempo todo de cabeça baixa, só abriu os olhos para ver que rumo o nosso irmão havia tomado. Sorriu timidamente, levantou-se e também despediu-se de nós. 


*

PARTE II - Moradas



ÍNDICE

I. MUDANÇAS
II. NASCENTE E POENTE
III. MEMÓRIA
IV. VIZINHOS
V. CASA DOS SONHOS
VI. REFÚGIOS
VII. APARTAMENTOS
VIII. A VILA
IX. JARDINEIRO
X. CASAS
XI. ESQUINA
XII. SOBRADINHO
XIII. RAPOSO
XIV. SÃO PAULO
XV. SEM-FLORESTA
XVI. NA RUA
XVII. GRADES
XVIII. EM PÉ
XIX. ÍNDIOS
XX. GONZAGA
XXI. CASA DE MAÇOM
XXII. CIGARRO DE VACA
XXIII. TAÇAS DE SANGUE
XXIV. VELÓRIOS
XXV. JANELA PAULISTANA


PREÂMBULO

Todo mundo, pelo menos uma vez na vida, já viu aquela microcena das formigas se encontrando e se reconhecendo rapidamente durante seus percursos de trabalho. E todos perguntam: o que é que elas falam uma para outra? Ou é apenas um mero sinal de continuidade da tarefa?
Uma coisa ou outra, o que ninguém duvida é que as formigas moram em lugares que são tão perigosos e incertos como as nossas casas e estão sempre em busca de coisas para matar a fome. E tomam os cuidados que deveríamos tomar para construir, manter e proteger os lugares onde moram.


I
MUDANÇAS

Já morei em 10 apartamentos num período de 35 anos; e 14 casas, entre 1961 e 2020. Tudo isso aconteceu em cinco cidades, num período de 60 anos. Somando o período anterior, dos meus pais e avós, temos 100 anos de coisas para contar sobre nós, sobre o nosso País e também os acontecimentos que mudaram o mundo.Os intervalos nos quais ocorrem as mudanças foram períodos vividos com inquietação, a mesma pressa pela qual passam os pássaros ao terem de mudar e refazer seus ninhos.
E fico imaginando porque tem que ser assim.
Porque precisamos mudar?
Será porque temos que sofrer mudanças íntimas provocadas pelas situações que nos forçam a mudar de lugar?
É bem provável.
Em cada mudança sempre acontece outra mudança.
Nos filmes do Mazaropi sempre tem cenas de mudanças para relatar o sofrimento dos personagens ao ter que deixar um lugar e amargar a angústia do incerto.
Numa canção de Edu Lobo e do Chico Buarque - do disco Circo Místico - as mudanças dos atores circenses são definidas como “arte de deixar algum lugar quando não se tem pra onde ir”.

II
NASCENTE E POENTE


Nasci no Porto Tibiriçá (atual Presidente Epitácio) e hoje estou vivendo em São Vicente, na região metropolitana de Santos. Já havia morado em São Vicente, entre 1974 e 1984; depois mudei para São Paulo em 1985. Voltei para Epitácio na década de 1990, onde fiquei até 1997. No ano seguinte fui morar em Campo Grande – MS, cidade que acolheu muitos epitacianos. Voltei para São Paulo em 1999 e retornei para São Vicente em 2001.
Sempre que faço esse pequeno e confuso relato as pessoas logo reagem, tentando compreender os motivos de tantas andanças e mudanças.
Outra coisa, o que tem a ver São Vicente, uma cidade fundada no século XVI, com o Porto Tibiriçá, fundado no início do século XX?
O que poderia ter em comum essas duas localidades tão distantes, uma no litoral e outra no interior, e com quatro séculos de diferença?
Tudo a ver.
Muita gente do interior vem para a Capital, para o litoral e também vai para o exterior. Outros tantos fazem o percurso contrário. Sou do Porto Tibiriçá e creio que tem muitos e tibiriçaenses e epitacianos em vários lugares do Brasil e do mundo. Tem muita gente da nossa terra vivendo no litoral, em São Paulo, em várias regiões do Brasil, nos Estados Unidos, no Canadá, na Austrália, em vários países da Europa e até do leste europeu. É possível que tenha morrido algum pirangueiro no Word Trade Center. No Japão também tem epitacianos, é claro!
Creio que as pessoas vão para os lugares por algum motivo muito mais forte do que aquele que simplesmente funciona como pretexto e impulso para as mudanças. Mudar de lugar é uma busca de algo que se perde dentro de nós mesmos e que, na verdade, não está exatamente nos lugares para os quais a gente quer ir. Pode ser que aconteça, de acharmos o que realmente procuramos ao mudarmos de endereço, mas não é o lugar em si que é o motivo verdadeiro da procura, nem a causa real do encontro. São as coisas que acontecem, em determinados lugares, em determinados momentos que fazem realmente com que se façam algumas escolhas e essas decisões provoquem algumas mudanças na forma de ver e encarar a vida. Essa é a verdadeira mudança, a qual podemos realmente chamar de destino. Nas terras por onde se passa, descobre-se, se constrói um chão e nele o relógio do tempo avança numa sucessão de fatos e circunstâncias. Ao mesmo tempo o contato com esse chão aciona uma bússola, que nos conduz pelas veredas das decisões e escolhas. Aí a gente muda.
Certa vez eu fiquei fascinado pelo mar. Acho que isso também aconteceu com a minha mãe. Foi ela que teve a ideia de mudarmos para o litoral. Era um tipo de angústia que ela sentia na alma durante décadas e só curou parcialmente quando fomos viver próximo ao mar. Herdei isso dela. Meu pai sentia a coisa de forma contrária: vivia com o pensamento voltado para o sertão, lugar onde acreditava ter vivido os melhores momentos de sua última existência e, no final dela, conseguiu realizar o sonho de morar novamente em Epitácio. Seu corpo está sepultado no Horto da Igualdade, embora seu Espírito certamente não esteja lá. Aliás, sabe-se que algumas pessoas que foram viver longe fazem questão de ter seus corpos enterrados em Epitácio, pessoas que estavam vivendo na América do Norte e nunca tiraram Tibiriçá e Epitácio da memória sentimental.
O céu do sertão é bem diferente do céu do litoral; são cores e ventos diversos e opostos. O poente e o nascente repercutem de forma diferente no psiquismo das pessoas e isso influencia nas escolhas importantes que elas fazem na vida. Dizem que nascemos assim, mentalmente inclinados para um ou para o outro lado, para o sertão ou para o mar.

III
MEMÓRIA

Lembranças funcionam como um filme na cabeça da gente. Parece uma sucessão de quadros, como no cinema. Isso acontece a todo instante, mas de forma mais apurada quando estamos sós, pensando na vida. Muitas vezes esse estímulo vem de pessoas, de situações ou de objetos que nos remetem automaticamente ao passado. Vi numa foto a primeira casa em que morei. Era de madeira, tinha uma varanda enorme, dessas em que as pessoas ficam conversando despreocupadamente. Essa casa ficava na Belo Horizonte, em direção ao cemitério velho. Nessa foto estou no colo da minha “Madinha Manoela” (Manoela Borges), que não era parente do nosso sangue, mas tinha um vínculo espiritual muito forte com todos nós. Ela adotou e criou minha avó, retirante do sertão baiano; adotou e criou minha mãe e praticamente meus quatro irmãos. O meu irmão caçula, adotado de uma família ribeirinha do Porto XV, chegou para passar alguns dias em nossa casa, enquanto a mãe dele se recuperava de uma grave infecção no hospital. Por causa do destino, ficou para sempre, após o falecimento da mesma. Anos depois, uma tia nossa com dons mediúnicos, observando essa criança, identificou nela a figura do pai de dona Manoela Borges, reencarnado. Quando os meus avôs chegaram ao Porto Tibiriçá, vindos ainda jovens do Rio de Janeiro e da Bahia, também receberam de Dona Manoela abrigo e proteção. Dessa casa não lembro quase nada. Minha primeira lembrança vem da casa em Tibiriçá.
Nossa casa em Tibiriçá foi uma espécie de presente de casamento para os meus pais, dado pelo Tenente Gilberto, interventor militar do Distrito de Tibiriçá e que se tornou muito amigo da nossa família. O tenente era do tipo bonachão, sempre muito simpático e dele todos guardam boas lembranças por causa do seu gosto por festas populares, sobretudo as da época junina, quando mandava construir uma grande fogueira próxima ao mastro da bandeira. Construída a partir de 1954, a nossa casa, na verdade da Bacia, era uma das poucas construídas em alvenaria. Tinha cômodos grandes e um quintal espetacular, sem luxo, mas enorme, cheio de árvores frutíferas e ornamentais e de muitas possibilidades para fantasias de criança. A varanda em “L” revestida de ladrilho ocre, muito usado nos anos 60, servia para refrescar o corpo nos meses de calor.
Em frente de casa tinha um enorme campo de futebol, rodeado de árvores de cedro. Apanhei muito da minha mãe, nas pernas, com uma varinha seca que se acumulava debaixo dessas árvores. Embaixo de alguns desses cedros também tinham bancos feitos de madeira. Na esquina próxima tinha um que era o mais frequentado da vila, até altas horas da madrugada e por isso era chamado de “Banco do Pecado”.
Do outro lado do campo tinha algumas casas e um clube, onde funcionavam o serviço de autofalante, o salão de bailes e o cinema, este último sob a gerência do meu avô Carlos dos Santos.
Do período em que moramos nessa casa de Tibiriçá lembro de algumas coisas marcantes. Minha mãe chorando na varanda ao receber a notícia de que um tio nosso tinha tentado suicídio com um tiro na cabeça. A bala ficou alojada num dos ouvidos. Quando esse tio vinha em casa me deixava impressionado ao vê-lo, durante as refeições, mastigar vagarosamente para não sofrer a dor causada pelo projétil. Essa tentativa de suicídio, bem como outros casos consumados, teria uma repercussão ainda maior em nossas vidas, eu e minha mãe, nos deixando muito impressionados, servindo para nos aproximar de um grupo de pessoas que, desde1961, realizava um trabalho voluntário de prevenção do suicídio em São Paulo.
Outra cena marcante na época de Tibiriçá, na margem do rio, próximo a Bomba D´água, foi a chegada dos corpos de três funcionários da Bacia (Júlio César, e os irmãos Ênio e Fortunato) que morreram afogados durante um temporal noturno, quando pescavam. Júlio era paraguaio, casado com a tia Ester, irmã do meu pai.
Fui uma criança portadora de sonambulismo, cujas crises de febre emocional eram constantes e me faziam, tarde da noite, sentar na janela e denunciar para minha mãe a presença de “pessoas” andando no campo. Eram também os primeiros sinais da mediunidade. Moramos em Tibiriçá até 1967, período no qual a Bacia do Prata estava encerrando suas atividades e seu patrimônio sendo sucateado. Os moradores da Vila Tibiriçá, que poderiam por direto ter permanecido em seus lares, foram sendo pressionados a deixar as casas. O corte de energia e água, bem como ameaças indiretas foram algumas dessas formas de pressão, certamente estimuladas por alguns políticos e comerciantes de Epitácio interessados na rápida desmontagem do Distrito. O regime militar contribuiu também para que esse processo de desocupação da vila ocorresse de forma criminosa e impune. Os antigos moradores, a maioria gente simples e despolitizada, não tinha meios de reagir e se defender contra esses abusos, pois temiam represálias por parte dos poderosos.
Entre 1968 e 1970, já estávamos residindo em Epitácio, primeiro na Rua Maceió, em frente a um enorme terreno baldio no qual mais tarde seria construído o prédio dos Correios. Depois, na Rua Cuiabá, tivemos como vizinho até 1973 o Sr. Rogério Pelegrini, imigrante italiano e ex-colono da Fazenda Santa Cruzinha, antiga propriedade da família de Rachid Murad. Essa fazenda mais tarde foi dividida entre os arrendatários e antigos funcionários que tornaram-se sitiantes, muitos deles vindos de Cafelândia e foram os primeiros fornecedores da primitiva feira de Epitácio. Com muitos descendentes na cidade, seu Rogério vivia uma velhice simples e era para nós um forte exemplo de persistência e sabedoria. Viúvo, se mantinha ocupado cultivando uma horta e mudas de café; fumava curiosos cigarros de palha, cujo cheiro se espalhava por toda a vizinhança. Ele sempre contava para minha mãe que, ao ficar viúvo e com muitos filhos pequenos, recebia a ajuda do espírito da própria esposa para cuidar da casa.

IV
CAVERNAS

Dizem que os apartamentos são cavernas modernas, confortáveis, privativas e seguras. Não é nada disso. São apenas pequenos espaços comercializados por metro quadro e que dão a falsa impressão do que deveria ser uma moradia urbana.
Entramos num apartamento, adquirido ou alugado, com a mesma sensação de incerteza de quando entrávamos nas cavernas paleolíticas em busca de abrigo, calor, frescor e um pouco de paz na hora de comer e de dormir. Antes do repouso olhávamos para o fogo e nele nos fixávamos tentando desvendar o mistério daquelas chamas vermelhas que consumiam os pedaços de madeira.
Hoje colocamos os olhos na televisão, num computador ou num celular. Quando vence o contrato mudamos de caverna e só percebemos que ali não há mais nada a fazer e que na verdade somos nômades em busca de novos apartamentos.
Meu último vizinho, que vi chegar e também partir, encontrou um jeito bem humano de trocar de ninho: ele fica três meses morando normalmente e depois permanece vários meses sem pagar e sai só antes de ser despejado. E assim vai morando com o dinheiro que ficou devendo. Empurrando a vida.
Ao ouvir essa história fiquei indignado e concordei com o porteiro que o chamou de safado e enrrolão. Esse vizinho me cercou várias vezes para pedir dinheiro emprestado. Nunca emprestei porque sabia que não pagaria. Ia perder o dinheiro. Fui firme, de coração partido, mas não cedi. Sempre que conto essa história do vizinho, já faço esperando a reação seca sobre o caso: “É complicado”! O vizinho enrrolão e desonesto é aposentado, pescador, tem um filha problemática e deslumbrada. Quando o conheci ele disse que uma vez viu Nossa Senhora da Aparecida aconselhando ele a não ir procurar um certo tesouro indicado por uma alma perdida. É um homem rústico. Vieram do Vale do Ribeira, zona rural antiga do litoral paulista, quase na divisa com o Paraná. Dei a ele o apelido de Mazaropi. “É parecido mesmo”, reagiu rindo o porteiro. Tenho dó deles. São pessoas de caráter fraco e se acostumaram com a vida errante, penso julgando, como se levasse uma vida inteiramente acertante. Já encontrei os dois no supermercado depois que mudaram (de apartamento), em dias diferentes; ele procurando alguma coisa ou alguém e a moça perguntando ao repositor se o vinho que tinha em mãos era de boa qualidade. Descobri, pelo porteiro, para onde tinham mudado quem seria a próxima vitima do golpe deles. Ele apontou até a janela e o andar. E fiquei olhando para o prédio pensando e chegando à conclusão que eles apenas descobriram um jeito de viver sem sofrer, mesmo causando aborrecimento para os outros. É claro que também pensei na possibilidade de numa outra vida eles terem sido proprietários cruéis com seus inquilinos, estando agora na condição de choque de retorno, ainda com a agravante dessas quedas, mas que terão de enfrentar a fase de arrependimento e depois reparação, segundo a lei moral de causa e efeito que atualmente se bate sobre mim, com alguns agravantes.
Mas não é somente os inquilinos que passam por crises. Atualmente os leilões de casas e apartamentos estão em super oferta na internet. Escritórios de advocacia anunciam as facilidades para a desocupação desses imóveis, tentando tranquilizar os compradores, futuros moradores ou apenas investidores. Muitos, como eu, pensam: Não vou ser feliz contribuindo com a infelicidade dos outros. Claro que não tem nada a ver, do ponto de vista racional. Mas nesses casos, incrível, a gente automaticamente se coloca no lugar de quem está perdendo o imóvel, mesmo que ele não esteja sofrendo ou que realmente necessite vendê-lo dessa forma.
As ofertas de financiamentos continuam a todo vapor, com todas as vantagens e riscos previsíveis que a maioria prefere não enxergar, para não estragar os sonhos. Também as ofertas de consórcio ainda estão em voga, a que os especialistas afirmam ser um jogo de fantasia no qual você paga para alguém guardar o seu dinheiro durante um longo tempo, dinheiro que poderia estar rendendo muito mais em outros investimentos. Questão de mentalidade. O Consórcio seria então, nesse modo de ver, um colchão confiável e alugado.
Tem também os loteamentos em lugares distantes, feitos a partir do retalhamento de fazendas no interior, um sonho de consumo para quem vive enclausurado em apartamentos nas grandes cidades. Essa opção está na mesma categoria das chácaras: duas alegrias, uma quando compra e outra quando vende. Só que esses lotes são muito difíceis de revender, pois quem compra quer comprar o próprio sonho e não o sonho do outros.
Mas existem também outras possibilidades que a razão não explica, a não ser quando não acreditamos nelas.
Nosso prédio está próximo mar e foi construído na década de 1970 para atrair turistas paulistanos. Antes da construção havia no terreno uma imensa mansão para temporadas, muito comum na vizinhança nos anos 1920, quando São Vicente era balneário e moradia dos milionários do café e da indústria paulista nascente. Aqui também moravam os mais ricos operadores do mercado portuário, geralmente europeus. Santos era considerada uma cidade perigosa para morar, por ser muito exposta a doenças vindas do exterior. As fotos antigas do bairro, onde proliferaram prédios de apartamentos, era um jardim plano de moradias e ruas arborizadas. Nosso prédio é ocupado por uma maioria de idosos e uma minoria de jovens de mai idade que ainda não se convenceram da terceira etapa do ciclo da vida. Não repararam que somos um condomínio de passagem para outra dimensão, sob a vigília rigorosa do Comandante dos Oceanos, que intuiu o construtor a colocar seu nome nessa morada transitória. O porteiro sabe o que isso significa e me disse que sua missão é vigiar a rotina dos velhinhos, sobretudo os que moram sozinhos. É só desaparecer um morador que ele ativa o interfone e, se este não responde, vai até o apartamento verificar o que está acontecendo. Se não responde ele usa a chave-reserva e entra chamando pelo morador. Quando geralmente isso acontece é porque o mesmo faleceu ou então está em agonia. Da última vez foi o meu vizinho, um senhor que tocava teclado e conversava sozinho ( ou com alguém da família que já havia partido antes dele). Sempre a mesma música, com falhas de notas e interrupções. Na minha lembrança, a melodia era um conhecido hino de procissão, de Ave Maria, que os pecadores transpuseram para os seus vícios mundanos: “Dona Maria, que bicho que deu? Deu bicho gozado, a senhora perdeu, ave, ave , avestruz”. Naquele fim de semana o som do teclado não soou pelos corredores. Alguém avisou o porteiro e ele respondeu que estava desconfiado de algo grave. O tecladista teve convulsões e depois e, dois dias depois, foi levado ao hospital e lá veio a falecer. O apartamento que ele morava seria dias mais tarde ocupado pelo pescador enrrolão.
Esse porteiro, servo fiel de Netuno, tem sido atuante e prestativo na sua tarefa. Ele confirmou essa história que eu já sabia e que também ocorreu de forma semelhante em outro edifício do bairro, com pessoas conhecidas.
Vagou um apartamento no décimo andar, que logo foi ocupado por jovem mãe e seu filho. Um sala-living modesto, porém espaçoso como todos os demais nos outros andares. Tempos depois veio morar com eles o irmão da jovem, recém chegado do nordeste. Ela e técnica em contabilidade e ele vendedor das Casas Pernambucanas. Foram vivendo meio apertados até que a jovem resolveu se mudar com o filho, para deixar o irmão mais à vontade com as namoradas. Foi morar num apartamento maior no prédio vizinho. O rapaz, feliz da vida, ali ficou por mais de um ano até que um certo dia recebeu uma carta da administradora solicitando sua presença no escritório. Chegando lá, preocupado e pensando ter que deixar o imóvel por conta de alguma reclamação grave, teve a grata surpresa que tornou sua vida um pouco mais feliz do que vinha sendo naqueles primeiros meses de mudança da sua terra natal. O proprietário do apartamento havia falecido em Portugal sem deixar herdeiros e, como todas as suas contas estavam em dia, ele seria o novo dono do imóvel. Hoje sou vizinho dele e da sua esposa grávida. A Providência empresta e cobra. Apartamento novo, família nova, novas responsabilidades. A história do outro apartamento foi idêntica: morador português, morto, sem herdeiros. A diferença é que as contas estavam todas pendentes, exceto o aluguel. IPTU e condomínio não eram pagos há mais de um ano. Mesmo assim, conseguiram ficar com o apartamento, ajustando as contas com empréstimos consignados.
“Como isso é possível”, perguntou alguém que conhecia os dois casos, querendo saber de mim a explicação espírita sobre esse estranho fenômeno. Respondi prontamente: são credores, diretos ou indiretos, recebendo de volta o que a Justiça Divina considera últil e necessário. E cantarolei a música do Mogli,do desenho do Disney: “Necessário, somente o necessário. O extraordinário é demais”
Todos felizes e satisfeitos. Menos a subsíndica da nossa morada vertical. Inconformada com o lance de sorte do rapaz, ela desconfiou que havia algo errado nessa história. Detetive nata, apesar dos seus mais de 70 anos, fez de tudo para descobrir a verdadeira origem desse estranho caso. A desconfiança aumentou quando todos souberam que a administradora era um senhora portuguesa muito conhecida no centro da cidade e que cuida de imóveis dos patrícios que retornaram para a Europa.
Mas a proprietária do apartamento do rapaz não era portuguesa e não voltou para Portugal.
“Rá, aí tem coisa”, dizia a subsíndica em voz alta quando passava pela portaria e questionada pelos funcionários do prédio sobre o que realmente havia acontecido.
A investigação foi feita em todas as fases previstas e sem nenhuma possibilidade de refutação. Ela descobriu onde morava a proprietária falecida, viajou para o interior do estado, por sua conta, e levantou todos os dados de que precisava.
A expectativa no prédio era intensa, sobretudo na assembleia de aposentados que se reúne todas as tardes no hall, antes da novela das seis. Um burburinho medonho.
Dessa vez quem deu a noticia oficial foi a própria síndica, pois a “sub” não teve coragem de aparecer para dar o seu testemunho chocante.
E desferiu, a seco, o resultado oficial do inquérito: a proprietária realmente havia falecido, segundo informações do cartório da cidade onde residia e não deixou herdeiros nem dívidas; o rapaz é dono do apartamento e disse que vai continuar morando no edifício.
Após alguns segundos de espanto e silêncio, explodiram algumas gargalhadas e comentários impublicáveis.
Já pensei em mudar várias vezes do prédio, mas sempre desisto quando lembro dessa história.
Vai quê...


V

CASA DOS SONHOS 


Ultimamente tenho sonhado muito com casas. Mas não é sonho de sono e sim com os olhos abertos. O isolamento de 40 dias, por causa da pandemia do corona vírus, provocou em mim o desejo de morar em lugares amplos, abertos, próximos da natureza. Estou a apenas 80 metros do mar e, no entanto, isso não é satisfatório. Quero estar na serra do mar e não apenas perto do mar. Enjoei do mar. Me parece monótono, embora tenha um horizonte incomparável, diferente das montanhas, porque é plano e te obriga a imaginar as coisas com muito mais precisão e detalhes. É por isso que nas crises as pessoas gostam de ver o mar, para preencher a mente com outras preocupações mais suaves e aliviar as mais duras e persistentes. Outros preferem as montanhas ou as planícies. Questão de temperamento. No litoral há muitas casas disponíveis, milhares delas. Casas e apartamentos de temporadas de verão e que em outras estações, na maior parte do ano, ficam fechadas. Bairros inteiros ficam em silêncio e solidão, sobretudo no inverno. Muitos quilômetros de praias desertas, uma paisagem atraente à primeira vista, mas depois assustadora com o passar do tempo. Trabalhei numa escola que fica em frente ao mar, num desses bairros distantes e isolados do litoral sul. Nos anos que ali fiquei percebi que algumas casas nunca estavam abertas. Cheguei a entrar em algumas delas, com a ajuda de uma das nossas alunas de suplência, que fazia faxina e cuidava de algumas propriedades. De vez em quando, geralmente nas horas de almoço, ela deixava a gente dar uma olhada pra matar a curiosidade. A que mais me impressionou foi a que ficava bem em frente da escola. Uma construção típica e comum dos anos 1970, ampla, isolada no terreno, com jardim frontal e quintal nos fundos. Varanda e garagem lateral. O interior parecia um cenário perfeito para um filme de época, tudo original, cortinas, sofás, tapetes, móveis, tudo com cores e estampas extravagantes, com tons de vermelho e laranja. Mistura de era espacial e mundo hippie. Interessante que, diferente da outras, tinha uma vibração gostosa e não lembrava nada de tristeza e preocupações. Quem fez essa casa passou ali momentos de alegria e descontração. Deve estar lá até hoje, intacta, ainda com os lustres de vidro e lâmpadas transparentes. Ninguém vende, ninguém compra, ninguém entra, a não ser alguns ladrões casuais que já conhecem todas as casas do bairro; e alguns curiosos que colocam risco o emprego das faxineiras e zeladoras.
Nessa escola nós fizemos uma coisa diferente, que agradou muito os pouquíssimos moradores do bairro. Havia um professor de matemática que era terrivelmente ruim na sua função. Ele sabia disso e certa vez confessou o principal motivo, segundo ele. “Eu tenho cara de palhaço e os alunos não me respeitam”, disse conformado e triste. E tinha mesmo. Uma cara de palhaço sem pintura no rosto, misto de alegria e melancolia. Fiquei pensando durante a semana toda sobre como era vida daquele professor. Algum tempo depois, arrancando com a enxada algumas moitas de mato que haviam crescido muito rente aos muros, descobri que o professor tinha talento para outras coisas. Vendo a minha dificuldade com a enxada, ele sugeriu que a escola comprasse um mata-mato, veneno que as fábricas químicas chamam comercialmente de defensivo. “É tiro e queda”, disse ele empolgado. E justificou: “Eu sou formado em técnico agrícola”. O merendeiro, que nos escutava, lembrou que a escola já tinha tido uma pequena horta há alguns anos, para uso próprio. Propus então que reativássemos a horta, agora maior e mais diversificada. Os olhos do professor brilharam. Compraríamos as sementes e alguns suplementos agrícolas para correção e adubação do solo. “É muito ácido, mas tem jeito” e topou fazer o trabalho voluntário. Lição na lousa, tudo normal, classe calma, enquanto alguns alunos mais inquietos e fisicamente ativos ajudavam na construção dos canteiros. Não deu outra: a horta vingou, linda, parecia uma plantação japonesa, tal o capricho e a força produtiva, com todos os temperos e legumes possíveis. Quando começou a crescer, o professor me fez outra confissão: contou que tinha abandonado a profissão de técnico agrícola porque certa vez estragou um serviço que fez o patrão perder uma lavoura inteira, por causa de um erro de cálculo dos suplementos. Teve que fugir para não ser humilhado pelos colegas. Pensou até em se matar. Morava no interior e foi assim que decidiu vir morar na praia. Fiquei muito preocupado com a horta. Será que ele acertou os cálculos dessa vez? O investimento foi alto. Todo mundo na expectativa. Não falei absolutamente nada sobre isso com ninguém. Só fiquei mais tranquilo quando ele garantiu que não tinha mais volta nem risco, tudo estava grande e em mais alguns dias já estaríamos colhendo algumas coisas, menos a couve que, apesar de alta e verde, ainda não estava no ponto. O professor estava curado. Matou o mato que trazia no peito e na mente há anos. O Anjo da Guarda dele estava perto de nós, com chapéu de palha, calça velha e camisa surrada, limpíssimas, pés descalços, uma enxada no ombro e um palito de fósforo entre os dentes. E sorria muito, de alegria. O professor não mudou seu jeito de dar aulas de matemática, mas mudou a fisionomia. Não tinha mais cara de palhaço.

VI
REFÚGIOS

A última crise financeira mundial foi causada pelo mercado de imóveis. Milhares de casas hipotecadas nos Estados Unidos foram tomadas pelos bancos credores. Os donos haviam perdido seus empregos e não conseguiam arcar com as prestações. Porém, eram tantas casas que os bancos perderam a maioria dos clientes e faliram. Muitas dessas pessoas foram morar na casa de parentes e também nas ruas. Com tanta gente precisando de casas e desejando moradias amplas e confortáveis, elas passaram a ser o foco dos negócios financeiros: empréstimos e principalmente os refinanciamentos dessas mesmas casas.
Nas épocas de crise, os imóveis suplementares das famílias mais abastadas sempre entram em oferta, pois seus proprietários precisam reverter esse capital com certa urgência. Compraram quando estavam financeiramente bem e agora podem queimar a gordura que está sobrando. Apartamentos e casas de praia são os mais comuns nesses negócios.
Quando acontece alguma crise nas famílias que moram na Grande São Paulo e no interior, os sobreviventes, quando podem, se refugiam em suas casas de veraneio no litoral. Provavelmente eles também se refugiam nas chácaras, sítios e fazendas.
Os motivos das fugas são muitos, bem como suas histórias, desde os mais corriqueiros, como o tédio ou stress; ou coisas mais graves, como as falências, desemprego, separações conjugais, problemas com os filhos, as mortes súbitas das figuras centrais das famílias ou simples refúgio nos últimos dias de vida dos doentes terminais.
As reações e adaptações também são muito diversas, algumas comovedoras e outras até engraçadas.
Tem uns que vem para o litoral para morrer e permanecem vivos durante longos anos; chegam tristes e depois se tornam sorridentes, dando os ombros para tudo que lhe parecem bobagem. Creditam que foram preservados pelo cheiro e a paisagem do mar. Outros chegam para viver intensamente e acabam morrendo mais rápido do que esperavam, surpreendendo os parentes e os vizinhos que mal tiveram tempo para conhecer.
Mais uma casa fechada a espera do inventário.
São centenas de histórias. Os corretores de imóveis sabem de todas elas e das condições de compra e venda.
As histórias que mais complicadas que ouvíamos eram de falência e desemprego. Os maridos geralmente não apareciam na escola, somente as mães e filhos menores. Algumas ainda com o nariz empinado, críticas e exigentes no início, mas depois iam mudando de postura e ficando amigáveis, passando a colaborar com escola. Nossa coordenadora, a Marli, já desencarnada, era psicóloga e tinha um espírito burguês que se afinava com elas, quebrando aos poucos os traumas. Era difícil para elas verem os filhos estudando na mesma escola que os filhos da faxineira e do porteiro do prédio ou do caseiro. Teve uma que chutou o pau da barraca. Era dondoca do Pacaembu (assim ela se auto denominava), estudou arte e design na FAAP e caiu no limbo financeiro do marido. Dizia: “Eu não vou ficar em casa esperando o mundo rodar porque eu já tô ficando zonza”. Prestou um concurso para merendeira da prefeitura e saiu da zonzeira. Tinha também muitos foragidos da justiça. Isso me deixava de orelha em pé, geralmente do Nordeste. Como o distrito policial e também o batalhão da PM eram perto da escola, ficava relativamente tranquilo. Alguns perigosos apareciam para fazer suplência à noite e ficavam testando a disciplina, de entrada e saída.
Quando chegavam novos moradores, mesmo não tendo filhos, eles davam jeito de aproximarem da escola, pra fazer amizade e ajudar em caso de necessidade. Recebemos certa vez a visita de uma vendedora de Yakult. Ela tinha uma casa de praia como prêmio de desempenho na empresa e escolheu uma na rua da escola. Como acontecem com todos, usam bastante no começo; depois emprestam para os amigos e depois desaparecem por anos, até que as casas sejam vendidas.
Conheci nesse bairro uma outra casa, aliás muito curiosa, e que foi sofrendo reformas durantes vários anos e que parecia nunca agradar os que ali curtiam o veraneio ou outras estações do ano. “Essa casa é daquela cantora famosa”, alertava o corretor, animado com a possibilidade de faturar uma comissão. Infelizmente ela faleceu e os herdeiros não querem fazer o inventário, acham que não compensa. Uma pena. A casa fica num lugar maravilhoso, entre a orla e a rodovia, de onde se vê, bem próximo, o pé da serra. Em frente tem uma enorme praça do tamanho de uma quadra. É um local muito especial, que nos dias de chuvas rápidas e de mudança de tempo, as gotículas se juntam para flutuar diante da luz do sol e formam um arco-íris enorme, muito maior do que o paredão de serra que ali descansa frente ao mar. Se existem os portais de um plano para outro, ali é certamente um deles, pois a exposição dos arcos coloridos duram por muitos minutos, parecendo uma grande festa de passagem de almas e seres elementais para o outro mundo.
Nas tardes em que eu ficava para turno da noite, antes que escurecesse, adivinhava que algumas dessas criaturas invisíveis rondavam a escola em busca de socorro até que, em pensamento, indicasse o rumo das nuvens sobre a pequena montanha, com a nítida ideia de que as portas do céu ainda estavam abertas para os retardatários. Nem todos conseguiam e ficavam por ali perambulando, à espera de uma nova chance.

VII 
APARTAMENTOS 


Este apartamento em que moro é pequeno e muito aconchegante. Sala-living. Digo aconchegante porque me acostumei. Moro nos fundos, sozinho e tenho uma pequena vista para o mar, num corredor entre dois prédios pelo qual vejo os carros subindo e descendo da Ilha Porchat; e também a saída e a entrada de navios do Porto de Santos. Tudo muito rápido porque o corredor é de apenas seis a oito metros de largura. Má dá pra ver nitidamente o que acontece. É um consolo. Sabia que um dia isso acontecer. Lendo um livro quando ainda estava na faculdade, fiquei impressionado com a descrição do prédio e do quarto onde morava o protagonista, abarrotado de livros e revistas até o teto. Me vi em Paris morando naquele quarto. Essa lembrança voltou à minha imaginação muitos anos depois, quando me deliciei ao ver o prédio e o apartamento de Amélie Poulaim e também os dos seus vizinhos estranhos e solitários. O bairro e a casa onde morava o pai de Amelie e também a do casal de velhos “Bretodeau” (pais do quitandeiro e vizinho dela) , bem como todos as demais moradias desse filme, foram construídos propositalmente como cenários bucólicos. Mas isso não importa. São livros e filmes. Sonhei que um dia iria morar em um desses lugares, curtindo também a solidão incurável dos personagens. Aconteceu, mas sem livros e revistas até o teto. Amo o minimalismo, até por questão de necessidade. Mas essa solidão durou pouco menos de um ano.
Minha filha entrou em crise e veio morar comigo. Também já esperava por isso. Ela precisa tomar rumo na vida e aportou no meu apartamento, depois de desistir de morar com os avós em São Paulo. Na verdade, eu a mãe dela fizemos com que desistisse porque a vimos insegura e demorando muito para nos comunicar a incerteza sobre se essa mudança realmente seria benéfica para ela. Acertamos. Morando comigo e percebendo que eu estava meio sem rumo depois de 40 dias de isolamento, ela sugeriu: “Escreva um livro”! Eu havia dito a ela há algum tempo que pretendia escrever sobre os lugares e casas que morei e expliquei os motivos e a importância do assunto, como registro memorial e como descoberta dos nós existenciais que podem ser desatados.
O outro apartamento em que morei, quatro anos antes, era maior e mais sofisticado. Foi fruto de uma crise conjugal. Como não tinha mobília, dava impressão que era gigantesco. A proprietária era tão chata e metódica que nunca tive vontade de pendurar nada nas paredes nem comprar nada para preencher o espaço vazio. Só a cozinha estava equipada com o essencial: geladeira e fogão. Nos quarto apenas dois colchões e minha mala de viagens com as roupas e mancebo que eu e minha filha encontramos na rua. Está até hoje comigo, no banheiro. Na área de serviço, sem máquina e com um pequeno tanque, sobrava muito espaço e tinha uma vista espetacular, da linha do VLT, da maioria das vilas de São Vicente na direção de Santos, na zona noroeste; de Cubatão com suas chaminés e bicos de chamas de gás; e da Serra do Mar. Na sala tinha uma sacada bem confortável para leitura, com vistas para um mar de prédios, porém não tinha comparação com a área de serviço. Em todos os horários. Durante a feira, nas sextas de manhã; o movimento dos trens e um intenso tráfego das avenidas laterais. O barulho diminuía na medida que avançava a noite. No outono as luas eram espetaculares, surgindo atrás dos morros Voturuá e Itararé, enormes e alaranjadas no início da noite, para depois, no meio da noite se fixar bem cima do meu prédio, já cor de prata. Não tinha vontade nenhuma de dormir, embora tivesse que levantar cedo para estar na escola às 7 horas, na periferia. À noite ia e voltava à pé da faculdade onde também dava aulas. Nas madrugadas, entre os inúmeros habitantes noturnos, surgia uma figura toda vestida de negro, travestida. Vinha da avenida presidente Wilson, atravessava linha férrea e ficava por alguns minutos na esquina da avenida Marechal Deodoro, sozinha ou conversando com um ou outro notívago que surgia de carro (nunca entrava neles), bicicleta ou à pé. Depois desaparecia nas ruas desertas da Vila Valença. Dificilmente voltava. No início achávamos que se tratava de feitiço, pois ela carregava algo coberto com um pano. Como não depositava nada nos trilhos nem no cruzamento, excluímos essa hipótese. Só poderia ser traficante então. Mas não tinha nenhum indício de uma cena comercial, mesmo camuflada. Essa hipótese também foi eliminada. Por sugestão da minha namorada, passamos a vigiar com as luzes apagadas. Ficamos divididos entre o programa sexual (dela) e a simples fantasia de alguém que durante o dia era alguém de boa família e de bons costumes. Sugeri de irmos até ela para conversar, matar a curiosidade, mas não tivemos coragem. Achei que não seria nada demais, mas a minha namorada achou arriscado. Dois dias antes tínhamos visto uma discussão e briga de uma prostituta com um cliente bêbado. Ela cobrava o dinheiro do programa e ele dizia que não iria pagar porque ela era namorada dele. “Namorado não paga”, dizia ele. E começava a rir. E ela furiosa, xingava e continuava cobrando. E ele respondia: “ Você sempre me chama de meu amor, então é minha namorada.“Não pago. Não pago”. “Te pago uma cerveja, quer?

VIII 
A VILA 

A Vila em que morávamos nos anos 60 era um antigo porto fluvial particular, propriedade de uma companhia de colonização fundada em 1905 por duas grandes famílias paulistas: os Tibiriçá e o Diederichsen. Ficava no extremo oeste do estado, na divisa com Mato Grosso. O rio Paraná ficava praticamente em nosso quintal. Meus avós já eram funcionários aposentados dessa empresa quando meus pais ingressaram nos seus quadros. Os aposentados tinham que mudar da vila e ceder suas casas para os funcionários que estavam na fila de espera, de acordo com a graduação profissional. Foi assim que meus avós fora morar na cidade e nós ficamos em Tibiriçá até 1967, quando a empresa fechou e a vila foi vendida par um grande frigorífico que se instalava na região, nas margens do rio e próximo da rodovia Raposo Tavares. Nossa casa era de alvenaria; as dos meus avós eram de madeira. O piso era de tacos e na cozinha, banheiros e na varanda era de ladrilhos vermelho-ocre, cujos cacos já eram moda para revestir os quintais. Na minha casa eles eram inteiros e eu adorava deslizar neles quando a varando era lavada com sabão em pó, para depois ser encerada. Em frente de casa tinha um imenso campo gramado, de passeio e de jogos de futebol. A maioria das casas estava de frente para esse campo, que era ornamentado por árvores de cedro. Entre elas haviam bancos de madeira, onde as pessoas se reuniam para conversar. O banco de uma das extremidades do campo era frequentado só homens e por isso era chamado de Banco do Pecado. As ruas eram todas de terra e protegidas da erosão por uma grama rasteira natural. Esse campo não existe mais. Foi usado na construção de casas populares. Mas quando existia era muito bonito, apesar de simples. Ele foi registrado em imagens em preto e branco, feitas pelo fotógrafo alemão Konrad Vopell, em 1938. Voppel desembarcou no porto de Santos como turista e registrou com sua lente os lugares mais interessante da Capital e do estado, sobretudo as colônias industriais construídas pelas empresas estrangeiras. Tibiriçá era uma delas, quando a Tibiriçá Diederichsen foi vendida para um grupo alemã, já com o nome de Companhia de Viação São Paulo Mato Grosso.
Konrad Voppel provavelmente era um espião nazista ou então um observador que trabalha para o governo alemão e também para empresas do seu país interessadas nos negócios da América do Sul. O trabalho dele era o registro das atividades econômicas que pudesse interessar aos investidores e também seus sócios que eram membros do governo. Antes deles esse trabalho de observação ou espionagem foi feito durante alguns anos pelo Zepeplin, o dirigível que rodou o mundo em busca de informações para Hitler. Com os acidentes e sabotagens, o Zeppelin se tornou inconveniente. Foi então que os fotógrafos voltaram ao seus antigos trabalho de peregrinos. No início dos anos 70 esteve em Presidente Epitácio e Tibiriçá um fotógrafo japonês, que registrou também imagens curiosas dos arredores da cidade, sobretudo da navegação fluvial. Na época havia rumores que o Japão estava interessado em terras da região centro oeste, para expandir negócios e aliar a pressão populacional com um plano de imigração em massa para o Brasil.
Os estrangeiros adoravam Tibiriçá. Essa mesma empresa mais tarde seria revendida para o mega empresário tcheco Jan Antonin Bata, fundador das industrias de calçados Bata, com filiais em muitos países. Bata acreditava que sua missão no mundo era fundar cidades e suas criações urbanas são famosas no mundo inteiro. Seu plano era criar uma ampla rede produtiva em Mato Grosso, interligada por ferrovias e o Porto Tibiriçá seria o ponto estratégico para recepção, distribuição no estado paulista e escoamento de exportação no porto de Santos. No Brasil, Jan Antonim Bata fundou algumas colônias agrícolas importantes como a de Batatuba (Piracaia), onde construiu uma casa maravilhosa para morar com a família. As ruínas dessa casa existem até hoje. Fundou em Mato Grosso as cidades de Bataguassu e Bataiporã, cujas terras no entorno foram transformadas em centenas de chácaras, sítios e fazendas, algumas delas verdadeiros latifúndios de gado de corte. Conheci uma dessa fazendas, na cidade de Anaurilândia, que possuía um sede espetacular, toda construída em madeira de lei, com muito aposentos e até uma sala de armas, muito comum nas fazendas, por causa das onças que atacavam as rezes. Nessa visita à famosa “Fazenda Estância Boiadeira” tive uma grata surpresa ao encontrar num quartinho fora da sede algumas caixas com antigos talões de embarque de gado assinados por um dos meus avôs – Comandante Maurício Xavier Duque- que chefiava o serviço de balsas de travessia de gado entre o Porto XV (MT) e o Porto Tibiriçá (SP). O gado era conduzido até a estação da Estrada de Ferro Sorocabana, em Presidente Epitácio, e de lá embarcado para São Paulo. Nesse mesmo esquema logístico de transporte fluvial e ferroviário funcionava também a extração de madeira, cujas toras eram levadas em chatas pelo rebocadores fluvial da mesma empresa. Só um detalhe: a antiga Companhia de Viação SP-MT teve que mudar de nome durante a guerra, pois foi encampada pelo governo federal, por ser de propriedade estrangeira e considerada de interesse para a segurança nacional. Passou então a ser denominada Serviço de Navegação da Bacia do Prata-SNPB, autarquia pública ligada a diversos ministérios, dependo dos governos eleitos nesse período. Meus pais ingressaram na mesma empresa onde trabalharam meu avós, morando na mesma vila, já na condição funcionários públicos , contratados e depois concursado pelo DASP, nos anos 1950. Essa situação durou até 1967, quando tivemos que mudar para Presidente Epitácio, pois a nossa casa seria ocupada por um dos funcionários do Frigorífico União. Mais tarde a propriedade do Porto Tibiriçá seria vendida para o Frigorífico Bordon e depois Swiftt, marca de aluguel para exportação de carnes.
Foi na varanda de ladrilhos da casa em Tibiriçá que ficou gravada em minha memória uma cena que teria influência marcante no meu envolvimento com o trabalho voluntário de prevenção do suicídio. Já de madrugada, minha chorando ao saber que um tio nosso havia tentado o suicídio dando um tiro em um dos ouvidos. A arma que ele usou pertencia ao meu avô. Mas nessa casa tivemos momentos felizes, festas de aniversário, jantares para amigos, páscoas, natais e revellions. Nessa época morava conosco a nossa madrinha Manoela Borges, pessoa que havia criado meus avós e minha mãe. Ela era separada, ex-mulher de Guilherme Borges, que foi gerente da Companhia de Viação e da Fazenda CIMA, em Indiana, onde minha mãe havia morado com elas, como filha adotiva. Eles tinham perdido uma filha de 17 anos, com tuberculose e minha avó, para minimizar o sofrimento deles, deixou que minha mãe fosse viver com eles. Em 1967, Dona Manoela recebeu em nossa casa uma visita muito especial de uma amiga de muitos anos. Era Dona Cacilda, que foi professora do meu pai na escola primária de Tibiriçá. Ela trouxe com ela os dois filhos, que eram músicos de grande sucesso e se apresentavam em todas as rádios e emissoras de TV. Chamavam-se Neno e Irupê. Naquele dia eles fariam um baile-show no clube da Sociedade Filarmônica 27 de Março, em Presidente Epitácio. Vieram acompanhados de outros músicos que formavam o conjunto The Jordans, para o lançamento do LP Studio 17, com o single “Tema de Lara”, do filme Doutor Jivago. A presença de todos eles na minha casa causou um furor em toda a vila. O povo invadiu o nosso quintal e ocupou a varanda e as janelas para ver os astros da TV e do cinema ( no filme O Puritano da Rua Augusta). Neno e Irupê foram depois componentes do RC 7, banda exclusiva do Roberto Carlos e que aparece em todos os filmes do Rei da Jovem Guarda. Uma lembrança grata sobre eles: em visita a Londres, já nos anos 70, eles foram reconhecidos num restaurantes com “músicos brasileiros” e tiveram uma rápida, porém curiosa conversa sobre a bossa nova e outros estilos de música “tropical” com dois artistas já bastante conhecidos na Inglaterra e no mundo. Eram John Lennon e Ringo Star. O encontro deles foi registrado numa foto bastante divulgada na internet.

IX 
JARDINEIRO 


Recentemente perguntei a minha mãe quem foi João Puba e logo sua fisionomia grave transformou-se num sorriso, fruto de uma grata recordação de infância. João Puba era o jardineiro da casa da gerência do Serviço de Navegação da Bacia do Prata e que sempre demonstrou um grande afeto pela minha mãe. Pai de uma grande prole e originário do sertão de Minas Gerais, seu João Puba era cultuador da Festa de Folia de Reis em Tibiriçá e minha mãe e suas amigas eram encarregadas de arregimentar as crianças para abrilhantar a festa e não deixar morrer a tradição que ela tanto prezava. Pessoa de aparência e hábitos simples, seu João cumpria à risca as ordens dos superiores para manter a ordem e a beleza da Vila Tibiriçá como se fosse um grande jardim de todos que ali moravam.
Conta-se que no dia do falecimento de Armênio Ribeiro, administrador do porto e do Distrito, o velho jardineiro estava muito preocupado e logo cedo tratou de cuidar para que o enterro do chefe fosse realizado conforme a vontade do morto. Ele havia solicitado por diversas vezes para que não fosse esquecida sua última vontade ao partir de Tibiriçá. Aproveitando a fartura da época, Seu João logo se apressou, pois não havia muito tempo para que a tarefa fosse realmente cumprida. Os amigos vendo-o quase em estado de aflição, com medo de não conseguir cumprir o que havia prometido, tentavam dissuadi-lo a fazer somente o que fosse possível, mas seu João não concordava. Queria fazer tal qual fora bastante recomendado.
Graças a ele, o enterro, que seria realizado no antigo cemitério de Epitácio, teve um momento especial de beleza, gratidão e respeito pelo chefe que partia. O trecho entre a porta da Casa da Gerência até o Mata-Burro, próximo ao aeroporto, não era curto e também não era muito longo, porém, naquele dia triste e inesquecível, o chão, sem falhas no percurso, estava forrado de centenas pétalas de rosa e provavelmente milhares de pétalas de flores de primavera.
Mas o sorriso de minha mãe não foi somente por ter tido essa lembrança da agonia do velho amigo jardineiro e do enterro do Seu Ribeiro. Ao ser questionada por mim, ela respondeu prontamente:
“O Espírito do Seu João Puba foi a minha primeira vidência. Numa noite, logo após o jantar, enquanto o Padrinho Guilherme (Borges) lia na sala, intuitivamente me dirigi para a porta que dava para o quintal e deparei com um forte estrondo seguindo de um enorme e inexplicável clarão. Lá estava o Seu João Puba sob as árvores, com a mesma roupa simples, sorridente e segurando sua boa e velha enxada de trabalho. Era um sinal de que ele me acompanharia na minha tarefa espiritual até que pudesse aprender a lidar sozinha com a minha mediunidade”.
Em nossa família, todos, de alguma forma, tiveram contato com essas informações sobre as verdades espirituais e recebeu essa influência com as respectivas repercussões íntimas para cada um. Nenhum de nós, portanto, poderá alegar ignorância e falta de oportunidades, caso algum dia nossas consciências façam esse tipo de cobrança.
A desocupação da Vila Tibiriçá é um assunto que ficou pendente na vida da minha mãe e dos funcionários da Bacia do Prata. Foi um processo meio confuso, rápido e cheio de contradições. Políticos e empresários epitacianos tinham interesse em se apropriar do Porto Tibiriçá se aproveitando do processo de desmonte da bacia do Prata e a entrada do de um frigorífico na cidade, que utilizaria as casas para os funcionários. Uma negociata obscura que na época era difícil questionar, por causa do regime militar. Ninguém sabe até como uma área pública foi para nas mãos de uma empresa particular e parte desse patrimônio caiu nas mãos de especuladores imobiliários: áreas ribeirinhas de exploração do turismo, pastos de gado transformados em chácaras e sítios e o parque Figueiral e o aeroporto, que ficou sob posse da prefeitura. A parte que ficou sob interesse privado foi renegociado quando o Frigorífico Bordon sucedeu o União. O mesmo aconteceu recentemente com o JBS, depois de um longo período de desativação. A vila permaneceu ocupada por funcionários e ninguém foi incomodado, diferente do aconteceu com os moradores do tempo da Bacia do Prata.


CASAS 


Quando saímos de Tibiriçá, moramos em em mais quatro casas em Epitácio, duas alugadas e as outras duas pertecentes aos meus avós, paternos e maternos. Nossos avós maternos viviam nu sítio em Mato Grosso, adquirido da Companhia de Viação SP-MT. A duas casas alugadas foram de estadia rápida e transitória. Meus pais estavam meio desnorteados, pois nunca tiveram problemas com moradia e achavam que a estabilidade da Vila de Tibiriçá duraria até a aposentadoria deles, como aconteceu com meu avós. Com a extinção do serviço fluvial de travessia, a maioria dos moradores teve que se mudar às pressas.
As casas dos meus avós eram completamente difrentes e refletiam exatamente o que eram intimamente. As duas eram de alvenaria, diferentes das casas alugadas que moramos anteriormente, que eram de madeira. Casas de madeira eram muito comuns na região. Já as casas de alvenaria eram raras e dizia-se que eram de “material”, no sentido de serem diferenciadas na concepção e construção. Mas haviam também casas de madeira muito amplas e bonitas, que aproveitavam bem a fartura desse produto ofercido pelas inúmeras serrarias e madereiras que haviam na cidade. Só em Epitácio, nos anos 1950, haviam 18 grandes serrarias, numa cidade com pouco mais de dois mil habitantes. Entretanto, a habitação de material era sinônimo de ascensão social dos profissionais estáveis e abastados. Eram feitas por empreiteiros que atuavam na região, que funcionam ao mesmo tempo como engenheiros e arquitetos. Nesse período começam a surgir também as olarias, que fabricavam tijolos e telhas. Era um negócio dominado geralmente por portugueses e espanhóis.
A casa da rua Cuiabá não era luxuosa, mas tinha a intenção de mostrar a conquista do novo status quo do meu avô. Ele era um funcionário público aposentado e também sitiante. Além dessa casa , meus avós possuíam uma chácara, de um pouco mais de um alqueire, que ficava no extremo da mesma rua, na direção da barranca do rio. Ali minha avó começou suas atividades leiteiras, que depois transferiu para o sítio em Mato Grosso, no município de Bataguassu. A casa da rua Cuiabá tinha um quintal enorme. Alí minha avó reproduziu num pomar de árvores praticamente todas as espécies frutíferas que existiam na sua terra de origem, na região de Sobradinho, e também do meu avô, que era de Carinhanha, Bahia. Lembro nitidamente dos dois pés de umbú, com pequenas folhas verdes claras; dois pés de pinha; um pé de jaca, duas jaboticabeiras, sendo uma no jardim de fronte para a rua; uma goiabeira, um pé de cajá-manga e outro de cajazinho; três mangueiras, uma espada e duas rosa; dois ou três mamoeiros; um grande abacateiro; e finalmente a minha preferida, a arvore de tamarindo, não pela fruta, que não gostava por ser muito azeda, pela pela sua aparência de superioridade, galhos firmes, escuros, estirirados e que avançavam por cima dos muros vizinhos. Era o quintal dos sonhos de qualquer criança, no qual criei até um filhote de tatu, por pouco tempo, encontrado na estrada pelo meu meu pai. Nesse quintal também havia uma pequeno depósito feito de madeira e corberto com telha, que serviu para o primeiro espaço de brincadeiras de oficina, escritório e que depois se transformou num clube. Nessa época eu era escoteiro e já tinha visto no cinema o filme Os Meninos da Rua Paul, inspirado na obra de Ferenc Molnár, jornalista e escritor húngaro. A escola fica quase ao lado de casa e dava para escutar o sino de aviso para formar filas no pátio.
Meu avós maternos vieram para o Porto Tibiriçá nos anos 1920 como retirantes e não se conheciam. Nessa época Epitácio não existia. Só surgiria com a chegada dos trilhos ferroviários que avançavam além da serra de Botucatu. Antes disso, no inío do século, toda a região oeste paulista era selvagem. Quando chegaram, meu avô foi trabalhar nas obras da Estrada de Ferro Sorocabana e minha avó como empregada doméstica na casa de Guilherme e Manoela Borges. Com o passar tempo eles adquiriram uma casa vizinha na rua Cuiabá, de madeira, que alugavam para ajudar nas despesas. Eles, Maurício e Maria, tiveram cinco filhos, duas mulheres e três homens. Dois desses filhos eram solteiros e moravam conosco nesse período. Também passavam algumas temporadas no sítio, que se chama São Guilherme, nome provavelmente escolhido pela minha avó Maria para homenagear o padrinho Guilherme Borges, que nessa altura da vida vivia em Presidente Prudente, separado de dona Manoela Borges. Seu Guilherme Borges aparece nos relatório de viagem do Dr. Adolpho Lutz, numa expedição cientifica de 1913 entre Tibiriçá e Guaíra, no rio Paraná. O sítio durou cerca de 30 anos, quando as terras daquela região foram inundadas pela usina hidrelétrica de Porto Primavera, formado um lago de 16 quilômetro no rio Paraná. Meu avós voltaram a morar em Presidente Epitácio, onde terminaram seus dias.
O sítio deles na Reta A-1 era uma propriedade de 51 alqueires que tinha como vizinhos alguns sitiantes e também fazendeiros, com terras com o tamanho de 600 a 800 alqueires, que no Mato Grosso era contado como 48 mil metros quadrados cada. Um deles era Seu Faustino Azenha, também proprietário do primeiro cinema de Epitácio. Os varjões dominavam as fazendas, enquanto os sítios foram ocupados em local mais alto e seco. Durante as noites era possível ver uma imensidão de vagalumes e, no varjão, o movimento misterioso de uma pequena feixe de luz prateada, muito forte e rápida, se escondendo e aparecendo na vegetação baixa. “fogo fátuo”, para os céticos, efeito da decomposição orgçanica de animais; ou boitatá, espíritos da mata, para os caboclos pirangueiros.
A primeira casa do sítio na Reta A-1 foi feita de madeira, duas águas, com tábuas verticais. Não tinha varanda, nem forro e os quartos faziam parede com um paiol de milho e ferramentas. O fogão era de tijolo e revistido de vermelhão. O piso era de chão batido. Os banheiros eram externos e feito também com tábuas de madeira, um com fossa; e outro só para banho, com piso de tijolos. Não havia eletricidade e a água era retirada de um córrego que ficava em frente, a uns 15 ou metros da casa. Era o Córrego da Anta, que tinha vários pontos largos e estreitos e desaguava no rio Paraná.
A segunda casa do sítio era pré-moldada e foi adquirida quando houve a oferta de muitas delas, do canteiro de obras do DNER, durante na finalização da construção Ponte sobre rio Paraná, ligando São Paulo a Mato Grosso. Era de madeira também, telhado de uma água e não tinha banheiro. Mas tinha forro, vidraças e assoalho de madeira. Tinha uma pequena varanda nos fundos. Na cozinha foi feito um piso de de cimento queimado, com vermelhão, assim como um novo fogão de tijolos. No quintal havia o banheiro, o sanitário e um poço artesanal, cuja a água passou ser ser retirada com bomba a óleo Diesel. Haviam árvores relativamente grandes ao redor da casa, oferecendo sombra nos dias de sol.
A terceira casa do sítio também foi feita de madeira, para que fosse ocupada por um dos meus tios, que casou e foi morar lá co a sua jovem esposa. Lá tiveram tiveram dois filhos e algum tempo depois foram cuidar da vida em outros lugares. Acredito que foi o melhor período da nossa infância , onde passávamos as férias e feriados longos. Foi onde aprendi a nadar, jogado por esse tio, de surpresa, numa lagoa formada pelo córrego e que fica numa fazenda vizinha. Ele teve sucesso na sua intenção de ensinar algo que se deve aprender sozinho. Foi ele também também que me ajudou a comprar meu primeiro carro ( uma Brasília 77), vendida por ele em longas prestações. A placa era de Bataguassu-MS e as multas tomadas em São Paulo nunca chegavam para pagar, pois não havia comunicação de dados entre os Detrans do estados. Esse meu tio me vendeu um segundo carro, também meio na faixa, um Gol BX 82 à alcóol. Algum tempo depois depois, adquiri um Passat 79, comprado em Osasco, que usei algum tempo em São Paulo e depois tornou-se para mim um marco de negócio. Era um carro veloz e confortável, embora já bastante usado. Passando férias em Epitácio, li um anúncio no único jornal local, que era semanário, vi que alguém havia colocado uma casa à venda, na rua Curitiba. Era um jovem borracheiro que queria se mudar da cidade e quando viu o Passat ficou alucinado. Paguei uma pequena diferença e fiquei com a casa. Tinha como vizinhos um funcionário do Banespa, vindo de Santo Anastácio; e uma família antiga e amiga de Tibiriçá.
A outra casa de material , dos avós paternos, ficava ao lado da antiga agência dos Correios e também da Delegacia dos Portos, da Marinha de Guerra. Esse dois prédios, geminados, pertenciam ao meu avô, também aposentado da SNBP, mas não era sitiante. Complementava a aposentadoria com alguuéis, incluindo a primeira casa que construíram antes dessa fomos morar. Essa casa era mais moderna e espaçosa, com amplas varandas na frente e nos fundos, além de uma garagem coberta. Esse meu avô nasceu da região do Vale do Paraíba (São José dos Campos) , mas viveu algum tempo no Rio de Janeiro. Soube da transformação causa pelas ferroas no interior de São Paulo e foi tentar a sorte no Porto Tibiriçá, trabalhando num hotel. Minha avó era imigrante húngara, que veio com os pais e irmãos em 1924 para povoar a Colônia Arpad Falva, que ficava entre Presidente Epitácio e Caiuá. Eles se conheceram nos bailes que eram realizados na colônia e frequentados por rapazes e moças da região. Iam à pé ou de trem. Carlos e Verônica (Vera) tiveram também cinco filhos, dois homens, incluindo meu pai, e três mulheres. Após a aposentadoria em Tibiriçá , se fixaram em Epitácio , onde também terminaram seus dias. Uma curiosidade, esse meu avô faleceu durante uma viagem ao Rio de Janeiro, quando tentava uma colocação para o meu tio – o caçula- nos quadros da marinha mercante. Os corpos dos meus avós alguns tios e também do me pai estão enterrados em Presidente Epitácio, num espaço público denominado Cemitério da Igualdade, no qual as sepulturas são todas no chão de terra e coberta por grama ou flores, tendo apenas uma simples placa de mármore, com a identificação dos mortos, sem nenhuma exceção.
Nessa casa ficamos apenas alguns meses, pois meu avô havia falecido há alguns anos e minha avó morava sozinha. Em 28 de março de 1974 mudamos para São Vicente, já que meus pais continuavam em regime de disponibilidade da SNBP, podendo escolher algumas cidades onde houvesse serviços do Ministério dos Transportes. Escolheram São Vicente de olho no Departamento Nacional de Portos e Vias Navegáveis, em Santos. Não chegaram a trabalhar nesse setor, pois aposentaram-se antes de serem chamados. Mesmo assim, trabalhavam em outras empresas, para complementar a renda. Éramos seis filhos homens, um com três meses de idade, dois pré-adolencentes e dois quase adultos.

XI
ESQUINA


Em 1972 meus pais viviam um momento de agonia pessoal, uma crise familiar e ao mesmo existencial que exigia mudança de rumos. Mesmo recebendo seus salários do serviço público, eles tentavam ampliar os ganhos e horizontes em busca de algo melhor para todos. Vivíamos modestamente, mas não era suficiente. Meus avós ajudavam. E como. Precisava acontecer algo diferente e que provocasse uma mudança no roteiro de nossas vidas. Nossa Madrinha Manoela tinha morrido um ano antes e um sentimento de orfandade tomou conta da família. Ela era madrinha dos meus avós, dos meu tios, dos nossos primos e de muitas pessoas na cidade. Isso acentuou a nossa crise familiar. Meu pai trabalha em serviços extras e até teve um bar em sociedade com o amigo muito querido na cidade. Era um imigrante espanhol. Minha mãe tentou um negócio de cosméticos. Outro amigo, empresário da panificação, queria que ele assumisse de vez a gerência do negócio, pois queria passar um longo tempo em Portugal. Meu pai tocava a padaria durante essas férias do amigo, mas não era isso que ele queria. Minha mãe não sabia o que ele queria e talvez nem ele próprio sabia. Era uma insatisfação indecifrável. Mas ele tinha dívidas. Contas urgentes a pagar. A agonia aumentou, apesar da ajuda de parentes e amigos muito caros. Numa manhã de sábado ele saiu de casa para ir bar conversar com os amigos, os de sempre. Nada de diferente. Veio almoçar e saiu de novo. Quando voltou entrou em casa apressado com um sorriso estampado no rosto, uma alegria diferente. Dirigiu-se ao quarto, abriu a porta do guarda- roupa e pegou algo que estava guardado no bolso de um paletó. Geralmente ele guardava dinheiro e maços de cigarros da marca Continental, sem filtro. Naquela dia não foi cigarro nem dinheiro, quer dizer era outro tipo de dinheiro. Pegou o que procurava e saiu com a mesma pressa com que havia entrado. Minha mãe estava na sala e corri até ela para perguntar o que tinha acontecido. Ela me respondeu, também sorridente: “Seu pai ganhou na loteria”. Ele tinha vindo pegar os bilhetes que tinham sido premiados no sorteio da Loteria Federal. Eram três pedaços com final 84. Touro, no jogo do bicho e também signo dele. Depois soubemos que ele tinha encomendado um bilhete inteiro, mas o vendedor de loteria só tinha três pedaços. Deixou com ele e prometeu voltar com mais dois pedaços até fim do dia. Não apareceu. O prêmio foi de 65 mil cruzeiros. Uma festa na cidade, apesar da quantia modesta, pois no ano anterior um empresário havia ganho 350 mil, um verdadeira fortuna. A sorte rondava as ruas de Epitácio. Na segunda-feira, quando cheguei na escola para entrar na fila da minha classe, a professora anunciou o que todos já sabiam. Ela estava feliz de verdade, enquanto a escola inteira olhava para mim. Eu acreditei naquele instante que realmente havia ficado rico. Foi uma sensação maravilhosa e indescritível. Nunca tive tantos amigos e admiradores mirins. A vida seguiu. Meu pai pagou as nossas e outras contas, ajudando alguns amigos, comprou uma Kombi zero quilômetro – lembro até hoje do cheiro de plástico e de novidade que ela tinha – comprou uma casa e não quis comprar um sítio que estava á venda, próximo do sítio do meu avô. Minha avó Maria , que era sogra dele e fã do programa do Zé Bétio foi quem tinha sugerido a compra. Não ouviu o conselho porque era da sogra e talvez não conhecia o ditado repetido diariamente pelo grande apresentador sertanejo: “Quem compra terra não erra”. Mas restaram a Kombi e a casa. A Kombi nos levou a uma viagem de férias em Praia Grande, na vila Tupi. Foi quando conheci o mar e tudo que os turistas conhecem na orla da Baixada Santista. Voltamos encantados. Passamos na ida e na volta por dentro de São Paulo. E minha voltou da viajem com algumas ideias na cabeça. Meu pai continuou deslumbrado e preso a Epitácio; e minha mãe em busca de alguma outra transformação mais importante e outra alegria diferente daquela que estava no seu sorriso quando me de a notícia do prêmio loteria.
A casa comprada ficava na equina na rua Curitiba com a rua Guanabara, há apenas duas quadras de onde morávamos. Fomos ver e voltamos alegres, pois enfim , depois de tento tempo teríamos a nossa própria casa, e de esquina. Era uma casa simples, de madeira com tábuas horizontais e paredes duplas e ocas, para frescor no verão e calor no inverno, no estilo dos bangalôs americanos, com varanda e garagem. Uma graça, muito bem conservada com tinta à óleo. Era verde musgo por fora e creme por dentro. Tinha ainda um terreno anexo, todo arborizado, onde havia um pomar. Perfeito para brincar. Durante o mês inteiro eu pegava as chaves e visitava a casa até duas ou três vezes ao dia, para ver ou mostrar para alguns colegas. As visitas terminaram algum tempo depois quando soubemos que meu pai havia vendido a casa. A crise voltou ou estava no seu processo contínuo, não concluída. Durante algum tempo, já adolescente e vivendo em São Vicente, me via morando sozinho nessa casa. Lembro que nessa fantasia tinha um Mini Bug na garagem e na sala tinha uma garrafa de licor de menta. E uma namorada linda, que depois soube que tinha se casado e mudado para bem longe de Epitácio. Esqueci tudo isso quando comecei descobrir as praias de São Vicente e lugares interessante em Santos.
Tivemos que mudar da casa dos meus avós paternos e fomos morar na casa da avó paterna, dona Verônica, que há pouco tempo tinha perdido a sua mãe, a nossa bisavó Maria Szucs, que não falava uma única frase em português. E nenhum de nós falava húngaro e só nos comunicávamos com ela por gestos e olhares. Era a vó Santa, pois ela usava um lenço azul escuro na cabeça que lembrava as imagens de santas da Igreja. Ela pegava nas nossas mãos e dizia muitas coisas, sempre sorrindo, dando conselhos e fazendo observações, que advinhavamos com os seus olhares vivos, sobre as coisas do dia a dia. Como a minha vó, elas tinha olhos azuis. Corrigindo, a vó Santa ainda se lembrava de algumas frases em português quando tocava o telefone (aqueles aparelhos negros e pesados). Chegava perto do telefone, não tirava do gancho, e gritava: “Não tem ninguém”!!! Quando ouvia trovões, advertia: “Sokat esik az eső”, está chovendo por aí, na tradução da vó Vera.

XII 
SOBRADINHO 


Não tinhamos sofás nem camas. Só colchões e livros em pilhas para sentar. Era um tempo em que as coleções de livros faziam parte do acervo das casas. Tínhamos Jorge Amado, José de Alencar, Machado de Assis, a Gramática de Jânio Quadros (num mini suporte de madeira imitando o Congresso Nacional) , José Mauro de Vasconcellos e o Trópico Ilustrado, enciclopédia colorida, para substituir as caríssimas Delta e Britânica. E alguns livros espíritas, pois sempre tinha alguém pedindo emprestado e não devolvia, porque pedia para emprestar para outra pessoa. Nossa mudança se resumia numa geladeira, fogão, botijão de gás, enxoval de família e roupas pessoais. Uma TV Colorado RQ garantia a diversão de todos, com a novela Fogo sobre Terra, com Juca de Oliveira e Dina Sfat, sucessora de Selva de Pedra.
São Vicente e toda a região tinha um cheiro diferente de tudo conhecíamos, uma mistura de maresia e gases emitidos pelas indústrias químicas de Cubatão, sobretudo à noite. O que mais me fascinava nesse horário era ver as lanternas vermelhas sobre os edifícios altos da orla e, no céu, a luz alaranjada emitida dos bicos de fogo das torres da refinaria da Petrobrás.
Foi uma semana de incertezas e expectativas. Minha queria morar em Paulo e pai não queira sair de Epitácio. São Vicente foi o meio termo. Um alívio para os dois e uma grande aventura para todos.
Estávamos instalados num sobrado na rua Uberaba, sem garagem, no Jardim Independência. A avenida Prefeito José Monteiro não tinha calçamento, como nenhuma outra rua do bairro, exceto a Anita Costa, que tinha paralelepípedo. As pedreiras próxima aos morros funcionavam a todo vapor com explosões de dinamite de manhã e à tarde. Poucos meses depois fomos morar na rua Rio de Janeiro, numa casa maior. Uma rua cheia de famílias como a nossa, com muitos filhos e de olho no futuro. Havia nessa rua um conjunto residencial que se chavaaa Verde Oliva, onde moravam muitos militares que serviam no Batalhão de Caçadores no Cascatinha. Ainda estávamos no regime militar e isso influenciou até na mudança do nome do bairro, que antes se chamava Vila da Misericórdia. A construção do Oliva exigia um nome mais apropriado e cívico, então homenagearam assim o Sesquicenteário da Independência.
Chegamos em março e não encontramos vagas nas escolas da cidade. Fomos estudar em Santos, numa escola na avenida Ana Costa (Dino Bueno), que fica ao lado do grande orfanato fundado por Anália Franco. Íamos sozinhos, de ônibus. De vez em em quando combinávamos de não descer no ponto e seguíamos em direção ao centro, para conhecer a área portuária, principalmente a rua General Câmara. Também pegávamos outro ônibus e íamos até a Ponta da Praia, ver o movimento de navios no canal do porto. Uma vez fomos até a cidade Ociam , em Praia Grande. A Ociam foi um empreendimento de Roberto Andraus, que foi prefeito de São Vicente e construtor paulistano. Minha mãe descobriu tudo e conseguiu transferir a gente para uma escola de São Vicente. Ensino noturno na E.E. Vila Sorocaba, na avenida Antônio Emmerich. Tínhamos aulas de francês com um professor chic e bastante amigável, Constant Luciano Hulmond, que depois de morrer se tornou nome dessa escola, na Vila Melo.
Meu irmão mais velho fazia faculdade em Santos e o outro, quase adulto e músico, foi se aventurar no Araguaia, tocando em bailes e boates. Depois voltou e os dois trabalhavam com pesquisadores do IBGE e da Lista Telefônica. Nessa época a grande fonte de empregos eram as empreiteiras que construíam a rodovia dos Imigrantes. Mudamos para casa vizinha, um pouco mais nova, geminada com a casa de uma família de alemães muito educados e divertidos. O patriarca e filho mais velho trabalhavam na Volkswagem, em São Bernardo do Campo. E tomavam muita cerveja, entregue pelo caminhão de uma distribuidora. Naquela época só tinha lata de Skol , chamada skolzinha, que eles não gostavam, por ser “aguada”.

Foram dez anos de mudanças intensas. Meu pai foi trabalhar numa plataforma de petróleo, em Campos, empresa de hotelaria a serviço da Petrobrás, em turno quinzenal. Meu irmão mais velho foi para São Paulo trabalhar como designer industrial, depois de um estágio na COSIPA.
No final da década de 1970 e inicio dos anos 80 a família mudou-se para São Paulo. Minha mãe ainda precisa realizar uma parte importante do seu projeto de vida. E conseguiu. Morar e trabalhar em Sampa, cidade que ela adorava. Eu ainda fiquei mais um ano e fui o última a sair da casa, com lágrimas nos olhos, para ir morar num apartamento no Gonzaga. Um amigo carioca e engenheiro, me arranjou emprego numa fábrica, onde fiquei dois anos enquanto iniciava da faculdade História em Santos. No primeiro dia de trabalho vi na rodovia Anchieta o rescaldo do incêndio da Vila Socó, com dezenas de mortos. Vi também uma ação de uma grande frota de ônibus de funcionários da Cosipa evacuando moradores da Vila Parisi, após a propagação de um nuvem baixa de amônia que escapou de uma fábrica de fertilizantes. Cubatão era um grande risco para todos. No ano seguinte ocorreu a na Índia a tragédia de Bopal, numa fábrica química, que tinha um filial em Cubatão. Foi nessa época também que a Rohdia, outra multinacional desse ramo químico, construiu na área Continental de São Vicente cavas para depositar lixo tóxico produzido no polo industrial de Cubatão. As cavas só foram descobertas e denunciadas na imprensa quando milhares de família invadiram esses terrenos para construir moradias, no Rio Branco e no Parque Continental. Aquela região teve em 30 anos um salto de 3 mil par 150 mil habitantes, entre 1990 e 2020.


XIII 
RAPOSO 


São Paulo passou por todas as mudanças urbanas cem anos antes da maioria das cidades brasileiras, com exceção do Rio de Janeiro, que foi o modelo de reformas no início do século XX, importado tardiamente das mudança ocorridas em Paris e Londres. A diferença é que na capital paulista as coisas aconteceram numa velocidade industrial, admiravelmente acelerada, tanto que não foi apenas descrita pelos cronistas e poetas, mas também pelos antropólogos, historiadores e geógrafos franceses que vieram dar aulas nos primeiros anos da criação da USP. As transformações aconteceram na cidade e também nos arraiais que rodeavam a Capital, as antigas “freguesias”, acomodadas em fazendas, sítios, chácaras , nos vales das pequenas serras e nas margens e várzeas dos rios. Esses núcleos ainda rurais receberam as primeiras ferrovias e depois se transformariam em “largos” dos bondes e finalmente nos viadutos e estações do metrô. O anúncio de um loteamento, por mais distante que fosse, era suficiente para causar uma inquietação nos moradores recém chegados e que se aglomeravam nas pensões e cortiços do centro da cidade. De alguns poucos milhares de habitantes em 1900, São Paulo reuniu, em pouco mais de 50 anos, centenas de bairros e numa infinidade de vilas, quase 15 milhões de habitantes .
Como vimos, uma segunda crise familiar nos levou a São Paulo entre 1984 e 1985. Uma prole essencialmente masculina não se desgruda do seio materno com tanta facilidade. Não tínhamos irmãs nem cunhados. Isso dificultou as coisas e retardou as mudanças. As noras que foram chegando tiveram que se adaptar ou se afastarem. E nós permanecíamos. Nosso destino foi o Butantã, bairro que um dia foi bem afastado da área central e que depois abrigou a enorme gleba onde foi construída a Cidade Universitária e seus institutos e faculdades. Ficamos no entorno, entre Osasco e o Morumbi, tendo como acesso principal a rodovia Raposo Tavares, no Km 6. Ironia do destino, pois essa rodovia acabava 640 quilômetros depois em Presidente Epitácio. Ocupamos três apartamentos de um então novo conjunto residencial chamado L”Abitare, com torres modernas de 13 andares, construidas numa pequena floresta à margem da rodovia. Tinha piscinas e parques que nunca usamos. O condomínio oferecia aluguéis baratos e tinha como atrativo principal um hipermercado instalado em frente da portaria, do outro lada das pistas, mas que dava acesso a loja por uma passarela de pedestres. Na medida que a demanda pela compra de apartamentos foi aumentando os aluguéis se tornaram altos e fomos obrigados a migar para o outro lado da rodovia, num pequeno e mais modesto condomínio; e depois numa grande casa de três pisos na Vila Gomes, muito próximo ao Jardim Bonfigliolli. Nesse período eu já havia passado como empregado de uma loja de instrumentos musicais, na avenida Rebouças e concluía meus estudos na PUC. Dava aulas numa escola da avenida Paulista e nas filiais espalhadas em vários bairros de classe média: Paraíso, Aclimação, Pinheiros, Lapa, Santo Amaro, Morumbi e finalmente Alfaville. Minha mãe decidiu voltar para Epitácio, preocupada com a insatisfação do meu pai com a cidade. Vivia trancado em casa e se recusava a se integrar no ritmo alucinado, de sair de casa às cinco da manhã e voltar à meia noite. Lembro que tentamos comprar um apartamento na Freguesia do Ó, mas meu pai não queria ter vínculos com São Paulo. Anos mais tarde eu voltaria, casado pela segunda vez, para morar na Freguesia. Ele queria voltar para sua terra natal e conseguiu. Porém, morreu apenas quatro ou cinco meses depois de terem se mudado. Nesse tempo minha mãe morou em três casas em Epitácio.
Permaneci em São Paulo num apartamento na rua Eusébio de Queiróz, no Paraíso, quase Aclimação. Era horrível, me sentia muito só e perdido. As namoradas moravam sempre longe e queriam casar pra mudar de vida. Moravam tão longe que eu não sabia voltar depois de levá-las em casa. Isso me assustava. Eram vínculos muito frágeis, na minha visão e, vendo o que acontecia com muitos colegas, desistia rápido dessas relações. Já estava entrando na casa dos 30 anos e algo mais instintivo me dizia que já estava na hora de começar a pensar num prolongamento da raiz genética misturado com o receio da solidão. Foi então que comecei a pensar numa moradia fixa, em um ninho, sem pensar muito na ideia de que teria que atrair uma fêmea que estivesse passando pela mesma crise. Voltei a pensar na casa da esquina em Epitácio, agora sem mini bug e licor de menta, mas com cerveja, whisky, vinhas e conhaque. Adquirir um imóvel em São Paulo, do jeito que eu queria, fantasia de cinema, era praticamente impossível. Morar na periferia, nem pensar. Achava que era um sofrimento desnecessário, embora milhões de pessoas levassem uma vida tranquila e feliz no arredores da cidade e também nas cidades vizinhas. O problema era eu. Adorava São Paulo mas estava me sentindo deslocado. Teve uma época que me tornei expectador do programas sobre negócios. Fazia lanche numa pequena pastelaria perto do Centro Cultural São Paulo, de um ex-funcionário do Metrô. Pronto, aquilo se tornou uma referência e partir para o sonho empreendedor. Meus alunos do colégio do Morumbi e de Pinheiros, só falavam nisso e vinham me pedir conselhos. Eu fingia que entendia porque via as tendência no programa de TV e na revistas especializadas. A moda eram as pizzarias e outros pontos de alimentação fast-food, locadoras de vídeo e o lava-jato. Só se falava em franquias. Numa viagem que fiz com um colega ao Paraguai, na volta passamos em Epitácio e via que acidade estava vivendo momento de euforia: termas de águas quentes, muitos funcionários da CESP e de grandes empreiteiras mudando para a cidade. Tive então a ideia de ter uma franquia da nossa escola. Éramos professores na mesma escola. Ele não quis e acabou indo morar no Canadá, onde vive até hoje. Eu fiquei com esse pensamento, embora nem soubesse por onde começar. Mais isso não foi problema. Em menos de dois anos, eu um dos meus irmãos, já estávamos com um escola funcionando em Epitácio, usando a franquia , sem concorrentes e com muita chance de crescermos também na região. Foram seis anos de entusiasmo e depois um redundante fracasso. O que valeu a pena foi voltar a morar na cidade onde havia nascido, vivido a minha infância e parte da adolescência. Voltar a ouvir o silencio das ruas e a paisagem do rio foi deslumbrante. Meus avós ainda viviam e tínhamos muitos parentes e amigos que também haviam voltado pelos mesmos motivos. Queriam dar um tempo ou viver ali definitivamente.
Quando troquei o Passat pela casinha de madeira na rua Curitiba senti que as coisas poderiam acontecer, não do jeito que eu imaginava, mas aconteceriam de alguma forma. A casinha foi transformada numa casa maior, a partir de uma barracão rural, com piscina, edícula e área grande área de lazer. Tudo simples, mas muito de bom gosto. Interessante que os pisos eram muito caros na época e optamos pela ardósia escura, que combinou muito bem com a construção que lebrava as pousadas rurais e de praia. As pessoas passavam enfrente de casa e só faltavam ser convidarem para entrar e ver o que tínhamos feito. Queria mais. Queria uma chácara e um grande terreno para construir uma instalação escolar mais adequada. Comprei do meu avô um terreno de dois mil metros quadrados. Fiz lá um barracão de obras com madeira e telhas de uma casa demolida que minha mãe havia adquirido através de um consórcio. A ideia dela era construir uma nova casa no terreno. Nunca foi feita e ele acabou devolvendo o terreno. Incrível como as coisas não se concretizam quando não são feitas de forma adequada às regras e à natureza desse negócio. Depois dessa estadia em Epitácio, finalizada por uma nova crise, tomei o rumo de Campo Grande uma cidade que conhecia e visitava com frequência. Ali vivi pouco mais de um ano, tempo de uma campanha eleitoral iniciada em março e concluída em novembro.

XIV
SÃO PAULO


Na virada do ano de 1998 para 1999 uma nova crise me reconduziu de Mato Grosso do Sul para São Paulo, capital. Em Campo Grande tinha morado num bairro de casas muito bonitas. Na cidade as calçadas são largas e aproveitadas como jardins. A casa que morei pertencia a um empreiteiro paranaense que construía postos de gasolina. Ele queria me vender a casa, que era nova, boa e muito barata, mas não consegui fazer dinheiro com a minha de Epitácio para fechar o negócio. Ficava na rua das Garças, esquina com uma das ruas que cruzam a avenida Mato Grosso, no bairro Santa Fé. Com a ajuda de um primo, me engajei na campanha de um candidato a governador, que venceu o pleito. Me ofereceram um cargo na nova administração, porém tinha uma intuição que não ficaria morando na cidade. Nesse período fiz muitas atividades espirituais, fazendo palestras e elaborando publicações. Cheguei a trabalhar em dois jornais, que deixei logo, para entrar na campanha politica. Recebi uma proposta de abrir uma agência de publicidade com o capital de uma gráfica industrial da cidade. Recusei. Consegui aulas numa organização educacional maçônica, depois de passar por um complicado processo seletivo, por jogo de influências. Mais uma vez fui salvo por amigos. Meses antes de sair de Campo Grande, fui fazer um concurso na Secretaria da Educação em São Paulo. Nas duas longas viagens que fiz de ônibus, tinha tempo de sobra para estudar os textos das duas etapas. Eram 16 horas de viagem, 32 ida e volta. Consegui passar. Foi um período de muitas inquietações íntimas, no qual tinha sonhos simbólicos nos quais era criança, sempre atravessando as avenidas mais movimentadas segurando as mãos da minha mãe. Isso acentuou ainda mais a minha vontade inconsciente de mudar. Estava envolvido com muitas coisas e pessoas, aparentemente numa situação estável e promissora, porém intimamente não conseguia me integrar, falta de afinidade com aquilo tudo. Não era nada de ruim, mas não era para mim. Uma amiga muito querida, em visita à minha casa, contou-me que uma pessoa que se preocupava muito comigo tomou a iniciativa de consultar um adivinho sobre a minha situação, logo depois da crise que me fez sair de Epitácio. O vidente descreveu a ela que eu atravessaria as águas para morar numa grande cidade , mas que depois, de volta, atravessaria as mesmas águas para morar numa cidade muito maior.
Voltei para São Paulo sem saber dessa revelação. Minha mãe estava morando na mesma região do Butantã, num sobrado enorme, onde me instalei com a minha estante, meus livros e meu carro, que dormia na rua. Dessa vez a crise foi forte e teve um forte componente espiritual. Vivia do aluguel da casa de Epitácio e aguardava a chamada do concurso, que só veio em outubro de 1999. Enquanto isso fazia caminhadas na Cidade Universitária e percorria os pontos culturais da cidade, quando podia. Que época maravilhosa, apesar da crise pessoal e econômica que o país estava passando. Vivia cheio de preocupações, porém tinha muita confiança no futuro.
Voltei a estudar e fui fazer mestrado, decisão que mudou completamente a minha visão de mundo, pesquisando uma área diversa da minha graduação original. Da História fui me aventurar na Comunicação Mediática; pesquisa da transposição de texto literário para texto audio-visual, ou seja cinema, rádio e televisão. Tudo feito com um grupo de professores da ECA-USP que atuavam no programa de pós-graduação de uma universidade privada. Nossa turma era uma diversidade bacharelados e os nosso seminários também, com assuntos de muitas áreas diferentes. Era pago mas acessível, pois ainda não havia sido reconhecido pela CAPES. Esse título também me proporcionou dar aulas no ensino superior durante 15 anos. Valeu a pena, mesmo não tendo feito o doutorado. Nem precisou, pois esse setor sofreu um forte impacto do ensino à distância e retraiu muito o campo da docência titulada.
Nesse período ingressei como professor efetivo no Estado e trabalhei em duas escolas: na Vila Guilherme; e na Freguesia do Ó. Foi nesse bairro que morei, casado, num prédio vizinho da minha segunda escola. Antes disso morava com a minha mãe num apartamento de uma grande amiga epitaciana (que foi morar em Cuiabá). Esse apartamento ficava na rua Baronesa de Itu, na chiquérima Vila Buarque, quase Higienópolis e Pacaembú. Desnecessário dizer do cosmopolitismo paulistano ali presente e também do imenso prazer e morar num lugar tão especial. Minha mãe ficou sozinha quando me casei e um irmão foi morar em Goiânia. Então ela tomou a decisão de voltar para São Vicente, a convite de uma antiga amiga de Santos. Cansei de tentar uma vaga nas faculdades paulistanas. Minha filha já tinha 1 ano e a mãe dela, há algum tempo, sonhava em viver no litoral. Ela tinha um conhecido que era dono de um prédio de apartamentos no Marapé, em Santos, próximo ao Orquidário. Não deu outra. Entrei num concurso de remoção e no ano seguinte estava morando em Santos e trabalhando em Praia Grande. O apartamento do Marapé era espaçoso e tinha garagem fechada, lugar um pouco degradado, mas com alguns vizinhos muito solidários e acolhedores, nordestinos e descentes de portugueses, antigos pescadores e estivadores do porto. Foi da escola na qual ingressei em Praia Grande que fui ser vice-diretor no Jardim Solemar. Ali tive tempo suficiente para ajudar o professor de matemática a fazer uma horta e também formatei um livro extraído da minha tese de mestrado. Quando saí dessa escola e fui para outra, em São Vicente, já lecionava também em uma faculdade e morava num apartamento próprio, na rua Freitas Guimarães, no Boa Vista.

XV
SEM-FLORESTA


O desenho “Over The Hedge” conta a história de um grupo de animais que tiveram suas vidas ameaçadas pelos condomínios suburbanos do EUA. Eles reagem, sob a liderança manipuladora de um guaximim endividado com um urso mau caráter. É o mundo do crime e da opressão humana transposto para o universo natural. No Brasil o desenho recebeu o título Os Sem-Florestra, por razões óbvias. A história dos cercamentos ou surgimento das propriedades privadas no hemisfério norte - estampado no título orinal- não teria muito sentido. No Brasil tem o rural MST-Movimento Sem-Terra e também urbano Movimento Sem-Teto, que já teve até candidato a presidente da república. Mais ainda, no Brasil temos os Retirantes, categoria social cantada e glorificada na literatura, na música, na pintura e no cinema - os Absolutamente Sem Nada – e que teve como um dos seus mais conhecidos representantes alguém que fez carreira sindical e ocupou duas vezes a presidência da república. Meus avós eram retirantes, do nordeste, do interior e também do exterior.
É um assunto delicado esse, porque é politico e contraria interesses poderosos. É um fenômeno mundial e deveras antigo, desde o êxodo dos hebreus escravizados no Egito, passando pelas lutas agrárias dos tribunos da plebe, Caio e Tibério Graco, até chegar nos dias atuais com as políticas demográficas e habitacionais que nunca dão conta do problema. Que família pobre brasileira concordaria em ter apenas um filho, como é lei na China? Diriam, com toda razão: “Não vamos ser pobres a vida inteira e nossos filhos serão difarentes de nós”. Talvez esse seja o real motivo de ter tantos chineses vivendo fora China. Todos querem casar e ter casa para viver. Presidente Epitácio já teve o maior acampamento Sem-Terra do mundo. Teve também conflitos de terras na época do regime militar e assentamentos durante os governos democráticos. Parece que as coisas se estabilizaram, pelos menos por enquanto. O fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado, que já trabalhou na ONU e rodou o mundo registrando o deslocamento das populações sempre foi defensor do MST. Ele sempre lembra nas suas entrevistas que esse movimento é o único no mundo a pregar a volta do homem ao campo.
Mas a volta do homem ao campo vem sendo adiada. A maioria prefere a cidade, pois ela é o símbolo da felicidade contemporânea, o cenário onde os sonhos se realizam. As cidades brasileiras não conseguiram fazer subúrbios gigantescos. Até tentaram, mas logo eles estavam conurbados com a cidades que os expulsaram. Os subúrbios ricos também conurbaram. Os pobres sem teto não se conformam com a quantidade de imóveis fechados e sem uso. Nas praias os imóveis ociosos de lazer não são muito úteis porque são muito distantes dos locais de trabalho. Seriam , se fossem realmente ocupados por moradores locais. É uma eterna questão dramática sobre o direito de moradia. Qualquer política governamental que atinja interesses privados gera mais conflitos e negócios de especulação. Mas devem ser feitas.
Quando saí de São Vicente em 1985 para morar em São Paulo, a Baixada Santista ainda sofria uma intensa demanda de moradias, provocada principalmente pelos migrantes nordestinos. A construção da rodovia dos Imigrantes e a expansão do parque industrial de Cubatão foram o ápice desse deslocamento populacional, iniciado com a rodovia Anchieta nos anos 40 , a instalação do polo industrial nos anos 50 e também a expansão imobiliária nas orlas litorâneas, nos anos 60 e 70. A construção civil praiana era essencialmente “baiana”, apelido genérico dos migrantes nordestino. Já haviam favelas em todas as cidades da região, porém , a partir dos anos 80 elas se acentuaram. As pressões aumentaram e se deslocaram para a área continental, antes praticamente desocupada. Três mil famílias foram instaladas no conjunto residencial Humaitá, há quase 30 quilômetros de Santos. Não foi suficiente. Nas duas décadas seguintes ocorre uma explosão de ocupações de terras em antigas áreas públicas do Distrito do Samaritá, especificamente nos bairros Rio Negro, Rio Branco e uma extensa área de pastos de quarentena de gado, já então denominada Quarentenário. E mais recente formou-se ali também um grande núcleo de ocupação conhecido como Fazendinha, com construções barracos a perder de vista , comunidade com leis próprias até que o poder público interfira com projetos de reconhecimento e legalização.
Quando voltei para São Vicente em 2.002 esse novo cenário urbano já estava montado e sendo altamente explorado pelos segmentos políticos, imobiliários e também criminosos. Um cenário de invasões violentas e de alto risco sanitário e ambiental. A grande maioria dos habitantes que ali se instalaram são retirantes nordestinos ou seus descendentes. Aos bairros não são nada agradáveis aos olhos, por mais que a prefeitura e muitos moradores se esforcem em dar um toque de urbanização. São construções espantosas, sem nenhuma regra técnica e estética. Favelas horizontais a perder de vista, com todos os problemas decorrentes dessa rápida e irregular ocupação.
Este é um cenário reduzido, próximo de onde onde vivo, mas que traduz exatamente o que acontece em todo o mundo. Cada vez mais mais torna-se difícil morar. Nossa espécie não consegue construir e manter ninhos seguros e permanentes. Não conseguimos ter poucos filhotes nem mandá-los para o mundo no tempo certo, como fazem os animais. Construímos aglomerados familiares que desafiam as leis civis e de convívio.
Creio que no futuro, se não houver um recuo radical ou natural na demografia humana, teremos um cenário horroroso nas cidades, mais ou menos parecido com aquela visão apocalíptica de Los Angeles no filme Blade Runner: favelas com edifícios de 80 a 100 andares, torres repletas de pequenos espaços ocupados por milhares de famílias.
Poderemos ter também um colapso e mortandade em massa, causada por epidemias e guerras bacteriológicas, ou então desastres ambientais Poderíamos morar nos campos, sermos felizes sem essa febre consumista, vivendo com o estritamente necessário, como alertou a tartaruga Verne ao seu pequeno grupo de animais perfeitamente integrado à Floresta. Mas não, caímos na conversa dos traficantes de cultura e resolvemos que a cidade é a única forma possível de vida em nosso planeta. Queremos ser cidadãos, urbanos.
Vai durar até quando essa forma de pensar e de agir?
Certamente quando as cidade acabarem, seja lá como for.

XVI
NA RUA


Quando a Família Real de Portugal fugiu para o Brasil, a cidade do Rio de Janeiro passou por uma situação inédita. Eles não vieram sozinhos e sim com a Côrte, composta de dezenas de famílias que faziam parte da nobreza e do sistema de serviços burocráticos do Estado. Todos estavam nos navios da marinha inglesa que os trouxeram sob sua proteção. Quando desembarcaram com suas imensas bagagens, descobriram ou já sabiam que a cidade não tinha moradias suficientes para abrigar tanta gente importante. Os moradores do Rio ficaram de orelha em pé, pois sabiam que aquela situação certamente traria problemas para os proprietário das casas mais atraentes confortáveis. E assim aconteceu.
Diante das reclamações insistentes e urgentes de alguns membros da Côrte, o Príncipe Regente D. João VI emitiu um decreto confiscando os imóveis considerados de interesse real, para serem ocupados pelos seus funcionários. Os ordenanças realizavam as prospecções, faziam as devidas vistorias, classificando os imóveis de acordo acordo com as novas categorias de ocupantes, rejeitando ou colocando um selo real com a sigla “PR”, que significava Príncipe Regente. No imaginário popular carioca essas duas letras logo tomaram o sentido jocoso, para esculachar os seus donos: “Ponha-se na Rua”.
Devia ser um desespero, pois o despejo até então era somente para os esculachados e caloteiros de aluguéis. Agora o feitiço tinha se voltado contra o feiticeiro. Vingança gostosa do populacho, mas que não refletia o todo para sempre da sociedade.
Dias desses fui a São Paulo com a minha filha. Ela levou a máquina fotográfica para descolar umas imagens urbanas diferentes. Depois do compromisso, fizemos uma rápida caminhada pela rua do centro. Da rua Maria Paula subimos a Brigadeiro Luiz Antônio e numa certa altura entramos num viaduto que nos levou à rua Vergueiro e finalmente na Liberdade, tradicional reduto oriental. Seguimos em direção à Praça da Sé, olhando e observado tudo que era possível e novo aos nossos olhos. Foi uma caminhada rápida e apressada, pois já era fim de tarde de outono e não queria voltar ao estacionamento onde deixamos carro quando já estivesse escuro. Na ida o que nos chamou a tenção foram algumas pessoas agrupadas nas calçadas em franca conversa, tonando cerveja e ouvindo música. Não eram bares, mas moradores de cortiços iniciando um fim de tarde e uma noite de lazer. Era sexta-feira. O plano era darmos uma volta , passando pela Prça João Mendes e descer o Viaduto Dona Paulina até a esquina da Brigadeiro com a Maria Paula. Assim fizemos. Como demoramos um pouco na Liberdade, ao voltamos ao ponto inicial já estava escurecendo. Foi então que vimos uma cena inédita para quem ficou alguns anos sem ver o que havia acontecido em São Paulo após 2016: uma multidão de moradores em situação rua sob a marquises e se recolhendo para passar a noite. São Paulo sempre teve muitos moradores de rua, mas nunca nessa proporção. A multidão era multidão mesmo, aglomerada como se fosse uma fila de cinema. É possível que ali próximo fosse um ponto de distribuição de alimentos, dessas sopas levadas por grupos organizados; ou então que tivesse um núcleo assistencial fixo nas redondezas. Sabíamos que as áreas centrais das cidades tem muita oferta de comida, de esmolas e sobretudo das sobras que vão para o lixo, daí a concentração maior de habitantes que estão nessa situação. Mas para nós foi assustador, sobretudo pelo aumento da sensação de abandono que sentimos ao ver todas aquelas pessoas que não souberam contornar suas crise e entraram declínio. Não lembro de ter visto crianças, mas havia muitos casais. Uma cena muito triste. Na medida que subimos a Brigadeiro, vimos muitas barracas sendo montadas, nos espaços de lojas fechadas, que também eram muitas. Nunca senti tanta vontade de voltar e estar em casa.
E voltando, conversamos sobre como é viver nas ruas e quais as possíveis soluções para isso. Falamos também sobre pessoas que não querem sair dessa situação, pois perderam a capacidade e a vontade de reconstruírem seus lares. Seus mundos internos estão desorganizados e precisam encontrar primeiro as soluções íntimas antes das soluções sociais. Mesmo assim, elas precisam de um mínimo de condições que possa manter nelas a dignidade humana, em forma de abrigos e serviços permanentes de amparo. É uma esperança e uma chama que deve ser mantida acesa. Se apagar, é possível que a humanidade também se apague, para sempre.

XVII
EM PÉ

Quando saímos da casa* onde dormíamos ainda era noite alta e nossa sorte foi que a lua resolveu nos ajudar escondendo-se para aumentar a escuridão. O silêncio da mata era bem menor que as nossas pisadas leves e rápidas, pois só carregávamos pequenas porções de comida, algumas mangas e pedaços de mandioca crua. Estávamos descalços. Seguimos os passos rápidos do Pai e os movimentos atentos da Mãe, sem olhar para trás ou para os lados. Noite de muito medo e angústia. Tínhamos que sair dali o mais rápido possível para tentar chegar até estrada e dar a sorte de encontrar um caminhão que nos levasse até um lugar mais seguro. Rezávamos para que os latidos dos cães da fazenda fossem comuns e não denunciassem a nossa fuga. Fizemos o trajeto fora dos piquetes e das porteiras e tivemos que dar uma volta bem mais longa, para não correr o risco de sermos capturados. Poderia até chover e cair raios que para nós seria motivo para ganhar tempo. Quando nos afastamos uma boa distância, o Pai pôde falar e só repetia que tínhamos que correr até não poder mais. E corremos, fugindo e buscando um lugar para nos escondermos, caso fosse necessário parar e descansar alguns minutos. Não encontramos nenhum e não descansamos. Só parávamos para ver que rumo o Pai tomava e até hoje nunca descobrimos como ele nos conduzia e como escolhia a direção. Não havia tempo para perguntas. Só havia medo e dúvida. Passamos seis meses naquela fazenda e quando ali chegamos tínhamos somente a roupa do corpo. Quando saímos tínhamos menos do que isso e um enorme dívida com o capataz. Dívida que nenhum trabalho conseguia pagar. Por isso corríamos sem parar e sem descansar porque, se voltássemos, as coisas ficariam bem piores do que já estavam.
Durante muitos anos sonhei com essa fuga, com a escuridão e com cobras enormes cruzando os nossos caminhos e insinuando que deveríamos voltar, pois dali não sairíamos vivos. “Melhor a escravidão do que a morte”. O medo e angústia só acabavam quando o sonho era interrompido. Penso nos que não tiveram coragem ou oportunidade de fugir desse destino vaticinado pelas serpentes negras dos meus sonhos. Não lembro de como o Pai nos tirou dali. Apaguei essa memória e nunca tive coragem de perguntar para a Mãe como chegamos aqui. Continuamos andando, sempre correndo contra o tempo, matando a fome, a sede, o frio, do jeito que era possível. Ainda vejo o Pai avisando a Mãe e ela nos chamando para ir para algum lugar que ela nunca sabia onde era, mas confiava nas decisões dele, pois até ali continuávamos vivos, embora com menos medo e sem a angústia daquela noite. A fome não incomodava mais. Foram tantas viagens, tantos lugares, tantas chegadas e partidas que perdi a conta e a noção se estávamos indo ou voltando. Não éramos de nenhum lugar. Éramos do mundo e o mundo era tão grande que poderíamos ir onde quiséssemos. Pensava assim quando comecei a pensar sobre nós e sobre as coisas. Ainda não pensava nada sobre mim. Cada noite dormida e cada manhã acordada desmanchava esse pensamento e construía outro, na medida em que mudávamos de lugar. Teve um momento que comecei a pensar que poderia chegar a algum lugar e não ir mais para lugar nenhum. Minha mãe pensava isso, mas não podia falar. Ela só dizia pelos olhos e, quando percebia que eu estava tentando adivinhar seu pensamento, ela desviava os olhos para outro assunto. Os olhos do Pai eram perdidos e não diziam nada. Nunca disseram. Não conseguia enxergar nada além daquele dia que começava de manhã e terminava à noite.
Comecei a perceber que as coisas mudavam quando descobri que algumas crianças moravam em algum lugar e nós morávamos em lugar nenhum. Morávamos na rua durante o dia, noutra rua durante a noite e no dia seguinte não sabia qual rua iríamos morar. Pelos menos dormíamos e acordávamos sem medo e sem aquela angústia da noite que nunca terminava nos meus sonhos. Mas um dia terminou e nunca mais sonhei com aquelas cobras que insistiam que nós não éramos ninguém e que nunca ninguém se importaria conosco. Foi quando passei a andar em pé. Antes achava que estávamos sempre no chão, nos arrastando de lado para o outro. Foi na escola que percebi que as pessoas ficavam paradas em pé sem se incomodarem com aquela posição. Tinha medo de ficar em pé, como elas. Elas tinham lugar onde morar e podiam ficar em pé. Eu achava que não era permitido ficar em pé se você não tivesse lugar para morar e sentar. Quando a professora mandava ficar em pé para ir até a lousa ou responder perguntas, ficava pensando até quando isso iria durar. E fui acostumando a ficar mais tempo em pé e tomando gosto pelo costume dos meus colegas de escola e de todas aquelas pessoas que fomos conhecendo na cidade onde demoramos mais tempo sem se mudar. Quanto mais aprendia coisas na escola, mas queria ficar em pé. Pai e mãe não queriam ficar em pé, porque não era preciso mais andar e correr da fazenda. Sabiam que logo sairia andando pelo mundo, sozinha, pois estava perdendo o medo de ficar em pé. Teve um dia que descobri que não eram as minhas pernas que me faziam ficar em pé. Quando aprendia uma coisa nova, não tinha vontade de sentar. Queria ficar em pé e saber mais coisas. As pernas ficavam fortes e a cabeça leve. Um dia tive absoluta certeza disso quando, pela primeira vez, ouvi alguém falar da lei da gravidade, que nos mantinha presos ao chão. Pensei, então quem fica em pé não obedece essa lei. Eu estava ficando cada vez mais desobediente. Por isso a Mãe ralhava comigo de vez em quando, porque percebia que eu queria ficar mais tempo em pé.
Mas precisava encontrar um lugar onde pudesse arrumar um jeito de ficar em pé sem ter que ficar mudando. “Difícil. Muito difícil”, pensava. Foi isso que o Pai procurou a vida inteira e acabou indo para a outra vida sem ter conseguido o que buscava. A mãe pensava que era o destino dela e também o nosso. Comecei a pensar que ninguém sabia com certeza qual seria o seus destinos. Precisava descobrir um caminho, mesmo se não soubesse exatamente onde iria parar, pois nesse percurso era possível que encontrasse um bom motivo para ficar em pé. O Pai, de vez em quando, ficava cismado e arrastava a gente para algum lugar onde pudesse parar de andar. Não teve sorte ou não conseguiu enxergar a chance. Fomos para naquela fazenda porque disseram para ele que o governo estava dando terras para quem tinha vontade de trabalhar. Era uma cilada. Isso também aconteceu comigo quando vim para a Área Continental. Achei que era uma cilada o boato de que tinha terrenos grandes, sem dono, que estavam sendo retalhados e ocupados sem nenhum impedimento. Quando fiquei com vontade de ver como estava acontecendo tudo isso tive também aquela sensação de medo e de voltar a sonhar com as cobras. Mesmo assim decidi enfrentar o medo e resolver tudo em pé.
Em pouco tempo tudo estava resolvido. Estava morando num lugar que escolhi, que podia dizer onde estava morando e que poderia decidir nele quanto tempo eu quisesse. Vi também que muitas pessoas caíram em ciladas e tiveram que sair correndo dali exatamente como nós quando saímos da fazenda. Ficava com dó, mas não podia fazer nada, porque aquelas pessoas não conseguiam se manter pé. Tiveram que fugir da Fazendinha, o nome do novo lugar onde foram morar as pessoas que não eram de lugar nenhum, como eu. Nas conversas com os novos vizinhos sobre as nossas histórias e caminhos, sempre me lembrava da fazenda da qual fugimos, talvez muito maior do que todas as cidades da região, comparada com esse lugar que passei a chamar de Fazendinha. O apelido pegou. Não perdi a mania de querer ajudar. Sempre que posso, mando fazer uns panfletinhos para distribuir no centro da cidade, no início da noite, para os que estão no chão, prontos para dormir:

“LEVANTE-SE. FIQUE EM PÉ.
Pelo menos por um dia, tente ficar em pé o máximo de tempo possível. Fique no chão apenas quando for dormir ou descansar. Levante e ande sempre que puder, de cabeça erguida. Se desanimar, olhe para o Alto e peça forças para suportar o peso do seu corpo e da sua prova. Conte o dia e as horas que conseguiu ficar em pé. Cada vez e cada dia que você fica em pé é um grande passo e uma grande vitória em sua vida”.

*Relato baseado na história de uma amiga que, depois de passar por tudo isso, se tornou mãe, avó e educadora profissional.

XVIII
GRADES


Também na região central de São Paulo, como em muitas cidades do Brasil e do mundo, surgiu o fenômeno cracolândia, uma população de rua com características específicas, que se aproximou e reuniu por afinidade e tendência social de convívio e proteção. São dependentes químicos, diferenciados dos alcoolistas e outros vícios menos conhecidos, que buscam ali exclusivamente o consumo de drogas. Todo ser humano que entra em crise social tem um forte componente de desorganização emocional e consequente desequilíbrio mental. Os habitantes da cracolândia não são diferentes de nós. A única diferença está nos interesses. Enquanto nos interessamos por conforto, comida e privacidade e fazemos disso um propósito único em nossas vidas, eles se interessam por drogas, que é para eles um ponto de fuga essencial para suportar uma realidade que não conseguem enfrentar. Quem fuma, sabe que fuma não somente porque é elegante e gostoso. Quem bebe também. Quem faz compras desnecessárias ou esbanja dinheiro com qualquer outra coisa, sabe que as coisas não estão muito organizadas dentre de si e que essa situação um dia poder graves consequências quando não houver mais controle ou disponibilidade de recursos. A diferença é que a cracolândia é um hospício a céu aberto, aos olhos da sociedade e das autoridades impotentes, porque não sabem ou não querem aprender a lidar com aquela situação. Solução ou alguma forma paliativa tem, mas parece que não é conveniente. Quem não se lembra da cena da guarda usando a força dispersiva para limpar a cracolândia e alguns dias depois constatar que o grupo se reuniu com a mesma facilidade com que se dispersou. Claro que o extermínio passou e passa pela cabeça de muita gente como “solução final” do problema. Mas sabemos que é mais uma falácia dos que ignoram a lei de causa e efeito. Pouca gente se lembra de que a população das cracolândia já fez parte da população carcerária ou manicomial. Prisões de corpos não significa a mesma coisa que aprisionar mentes. Uma solução não começa pelo efeito do problema. Ninguém quer manter, muito menos libertar corpos criminosos. Mas é possível libertar mentes. Sempre há uma possibilidade e um caminho nesse sentido e que funciona para muitos que ingressaram no crime e conseguiram transpor honestamente os portões das prisões. Pequenos gestos e estratégias de ação podem fazer a diferença e desmontar aos poucos algo de aparência monstruosa, mas que na realidade é apenas um coletivo de muitas coisas pequenas mal conduzidas e que se acumulam com a nossa indiferença e pessimismo. A educação social feita com inteligência pode compreender e melhor oferecer soluções sóbrias e mais responsáveis. Oportunidades bem geridas e conduzidas podem gerar transformações muito positivas. É claro que nem tudo é perfeito e que há sempre algo que não dá certo e que não funciona, mas sempre existe outra via e também outra etapa a ser cumprida na existência e no convívio humano. Não há portas definitivamente fechadas e trancadas para sempre.

XIX 
ÍNDIOS 

Numa ocasião estávamos visitando uma exposição de objetos indígenas no salão da A.A. Epitaciana e tivemos uma experiência muito curiosa: uma mulher de uns 25 anos de idade, com fortes traços indígenas percorria o salão falando sozinha, pronunciando frases aparentemente desconexas. A pessoa que estava conosco reclamou que estava sentindo um sono incontrolável e nós mesmos não parávamos de bocejar. Enquanto isso a mulher reclamava em voz alta, na língua tupy, e fazia gestos de indignação. Percebemos, então, que não se tratava de uma pessoa com problemas mentais. Na exposição havia objetos funerários de cemitérios indígenas encontrados durante as obras da CESP na região e recolhidos por pesquisadores. A mulher provavelmente estava mediunizada e, de forma agressiva, protestava contra aquela exposição, para ela uma violação de coisas sagradas do seu povo. Lembramos que alguns anos antes, quando esses objetos foram encontrados e levados pelos pesquisadores da Unesp, escrevemos no jornal local um pequeno artigo sobre o fato reclamando que os objetos deveriam permanecer em Epitácio. Na época fomos repreendidos por algumas pessoas que achavam que não havia necessidade para tanta hostilidade com os pesquisadores. Entendemos, naquela exposição, o que estava acontecendo. O mundo espiritual e mágico dos índios ainda estava bem vivo e fazendo cobranças sobre o desrespeito com as suas tradições. O sono e os bocejos não eram efeitos do acaso. Objetos sagrados e antigos possuem saturações magnéticas poderosas, produto psíquico dos cultos e crenças que ficam impregnados sobre os mesmos. Sempre temos esse tipo de sensação quando entramos em sebos de livros, antiquários e museus. Móveis usados e roupas de brechós também possuem essas cargas magnéticas, sobretudo peças de pessoas que já desencarnaram. Várias pessoas já nos confessaram ter a mesma impressão. Naquele dia tivemos receio de que poderia acontecer algo parecido com o caso dos arqueólogos ingleses que violaram o túmulo de Tutancâmon, no Egito. Eles foram sendo misteriosamente mortos por doenças contagiosas, talvez causadas pelo fato de terem alterado magneticamente suas defesas naturais. Pensamos, para nos tranquilizar: deve ser somente um protesto.
Ainda continuamos convictos que, mais cedo ou mais tarde, toda essa dívida dos colonizadores deverá ser resgatada. Uma enorme legião de espíritos silvícolas que no passado foram violentamente expulsos de suas terras, em todo o Brasil, em diversas épocas, agora faz parte de um grande movimento social de reocupação de seus antigos territórios assaltados pelos antigos posseiros e “bugreiros”. Os descendentes dos posseiros, hoje também organizados em entidades ruralistas, se reencontram com antigos inimigos para ajustar velhas contas que não foram pagas. No estado de São Paulo essa trama cármica está concentrada principalmente no Pontal do Paranapanema, antigo cenário dos violentos massacres (Dadas) dos posseiros ali introduzidos pelos conquistadores mineiros no século XIX, como foi o caso de José Theodoro de Souza. Antigos contendores como fazendeiros, missionários, bugreiros, funcionários públicos e líderes indígenas hoje estão reencarnados em diferentes papéis e posições como fazendeiros, juízes, promotores, políticos, líderes dos MST, cada qual cobrando o que lhe é devido ou resgatando seus antigos débitos. Recentemente, por meio de notícias mediúnicas dadas por uma guia espiritual, atuante nessa região, fomos informados de que a construção de presídios no Pontal, os conflitos fundiários e jurídicos, a formação de quadrilhas de criminosos para explorar a prostituição, as drogas, extorsão, roubos ao patrimônio público e privado, fazem parte de um grande processo de reajuste cármico de Espíritos, índios, caboclos e aristocratas rurais que ali cometeram graves crimes em outras épocas. O mesmo tem ocorrido no Paraná, Santa Catarina, Mato Grosso do Sul e região Norte e deverá ocorrer com mais ênfase onde se efetivaram os genocídios históricos. Alguns desses compromissos cármicos são mais antigos, com no caso da grande região de Guarapuava (PR). Na época imperial, em 1811, o governador da capitania de São Paulo, António José da Franca e Horta (responsável pela comarca de Paranaguá – o Paraná não havia sido criado) implantou uma política sócio-educativa judicial que incentivava e até impunha o casamento misto entre os condenados e índias, já que havia uma enorme desproporção entre homens e mulheres naquela vasta região. A ideia da medida era povoar o mais rápido possível esse território disseminando as famílias sertanejas. Assim, a cidade recebia degredados brancos (a maioria homens mestiços) e estes, sem opção de parceiras sexuais, contraíam vínculos afetivos e matrimônio com adolescentes indígenas, passando a formar famílias miscigenadas. Muitos desses degradados entravam em confrontos violentos com índios que não aceitavam essa imposição e se tornaram membros de grupos de bugreiros. Chamou particularmente a nossa atenção nessa trama geopolítica o caso de oito desses degredados, relatado pelo historiador Fábio Pontarolo (Homens de Ínfima Plebe). Eram militares que se rebelaram em Santos (SP), em 1821, por causa dos baixos soldos e que haviam promovido uma quebra-quebra na cidade. Condenados, foram obrigados a residir nessa então isolada e distante colônia paulista. Eram em sua maioria analfabetos e tinham em torno de 19 anos de idade. Curioso lembrar que nessa região (Cantanduvas) foi construído recentemente um importante presídio federal, destinado a abrigar criminosos de alta periculosidade, considerados como verdadeiros inimigos públicos. Espiritualmente, pela lei de afinidade, os presídios funcionam como escolas de reajuste tanto para condenados como para os que ali trabalham direta ou indiretamente em função deles.
É fato que muitos espíritos criminosos (indígenas e brancos) já voltaram e ainda voltarão “reencarnados” nas boas famílias da região, em posições socialmente invertidas, para acertar essas contas com as pessoas e com a sociedade que lhe causaram prejuízos materiais e morais. Esse fenômeno também vem acontecendo nas três Américas, quando muitos indígenas maltratados e corrompidos pelos colonizadores voltam como filhos problemáticos das mesmas famílias que os prejudicaram no passado ou então como imigrantes. Muitos deles se tornam criminosos em ações contra o Estado ou contra as instituições que os humilharam. Geralmente são autores de tragédias terroristas e ações violentas em estabelecimentos públicos. Na América espanhola foi registrado os conhecidos casos dos caudilhos, ditaduras militares, revolucionários marxistas e mais recentemente os célebres guerrilheiros que se tornaram narcotraficantes, com foi o exemplo do grupo indígena Sendero Luminoso, de antiga tradição indígena. Ernesto “Chê” Guevara foi um típico “branco” de alma indígena destinado a lutar até morte pelos seus ideais socialistas, porém intimamente vibrava nele um sentimento de vingança contra as injustiças cometidas nos tempos coloniais. Os mais célebres criminosos dos EUA eram antigos líderes africanos e indígenas reencarnados entre os imigrantes irlandeses e sicilianos radicados na América do Norte.
A presença de descendentes diretos dos colonizadores portugueses na ocupação dessa região também não foi uma coincidência. A nossa ligação com São Vicente também não é produto do acaso. Era de lá que partiam as primeiras expedições bandeirantes em busca da riqueza do interior. Como a maioria dos habitantes de Epitácio, sou descendente de migrantes nordestinos (negros e mestiços) e imigrantes europeus. Meus pais casaram-se em 1954. Em 1955 nasceu meu primeiro irmão, Carlos Maurício; em 1957 nasceu o segundo, Hélvio; em 1958 nasceu o terceiro, Guilherme; em 1959 nasceu o quarto, Nilton. E finalmente, pelas mãos da velha parteira espanhola de Santo Anastácio, Dona Dolores, foi a minha vez: em 23 de agosto de 1961, às 5:30 da manhã, há apenas alguns horas antes da famosa renúncia de Jânio Quadros.
Minha mãe teve cinco meninos, em casa, sem frescura e sem cesariana. Nossas parteiras foram Dona dos Anjos, migrante do sertão de Minas; e Dona Dolores, espanhola de Santo Anastácio. Em 1973 nossa família adotou um menino, Natalino, vindo de uma numerosa família de ribeirinhos do antigo Porto XV, do lado sul-mato-grossense do rio Paraná. Coisas do “destino”. Todos esses nascimentos foram supervisionados pela “Madinha Manoela”, bem como os primeiros e melhores anos de nossas existências. O Dr. Alberto era o médico da família, aliás, de todas as famílias. Era pioneiro na cidade e um excelente clínico geral, de boa memória. Perguntava pra gente quem eram os pais, deduzia quem eram os avós e dava o diagnóstico.
Maurício Xavier Duque e Carlos José dos Santos, meus avôs, eram negros. Maria Pesqueira Duque era descendente de portugueses e índios; e Verônica Szucs imigrante húngara da Colônia Arpad. Próximo a Caiuá, a 16 quilômetros de Epitácio, existiam várias colônias européias. Na colônia Arpad as Igrejas também eram diferentes, uma ortodoxa e a outra romana. Meu bisavô paterno, Marcus Szucs, era comerciante, dono de armazém e de um alambique. Gostava de uma boa cachaça e também era músico. Nessa Colônia húngara aconteciam bailes nas noites de sábado, frequentados pelos meus dois avôs frequentavam. Meu avô Maurício, baiano de Malhada, tinha fama briguento e sempre arrumava muita confusão nesses bailes. O “carioca” Carlos dos Santos (tinha sotaque porque havia vivido no Rio por alguns anos) era um gentleman, sempre vestia ternos de linho branco impecáveis. Era culto, político e sempre atento aos acontecimentos que geravam oportunidades. Foi juiz de paz, vereador, proprietário de um cinema em Tibiriçá e articulista de jornal. Foi ele quem iniciou nossa família no Espiritismo. Na casa dele, onde se faziam reuniões mediúnicas, tinha uma estante com livros de Allan Kardec e muitas outras publicações espíritas, distribuídas na região pelo ativista João Pitta e também por João Machado, de Santo Anastácio.

XX
GONZAGA


Quando tranquei pela última vez a porta da casa da rua Rio de Janeiro para ir ao trabalho ou para a faculdade, não me lembro, senti uma profunda solidão e tristeza. Tínhamos morado ali durante dez anos. Não lembro também se levei a chave ou deixei com algum vizinho. Os momentos dolorosos, quando humilhantes, são muito difíceis de lembrar. Já estava com um apartamento alugado em Santos, na pequena rua Pereira Barreto. Nessa época ainda não existia o Shopping Praia Mar. Era um apartamento de um dormitório, no décimo andar, cuja vista da sala era o entorno do canal 2 na direção dos morros. Nessa janela, mastigando um quibe e tomando um refrigerante, senti pela primeira vez estava só e precisava aprender a me virar sozinho.
Na rua Marechal Deodoro tinha uma drogaria que já era muito moderna para os padrões brasileiros: uma loja de conveniência e com um restaurante. As pessoas achavam aquilo tudo muito estranho, inclusive eu, talvez porque era tudo meio escondido, sem janelas para a rua. Fui uma ou duas vezes almoçar lá e fiz amizade com o único cozinheiro da farmácia. A solidão dele e o nossos papos produziam grandes e saborosos filés que não estavam no cardápio. Algum tempo depois a conveniência fechou e voltou ao ramo dos remédios.
Mas foi também um período de alegrias e descobertas. Estudava à três quadras, na antiga sede da Unisantos, na rua Euclides da Cunha. Era o segundo ano do curso. Uma turma maravilhosa, muitos jovens misturados com adultos, alguns já idosos, buscando conhecimento e alguma realização pessoal. A presença dos adultos dava um tom diferente no tratamento que recebíamos dos professores e da direção da faculdade. Fiz amigos que até revejo com alegria e ótimas lembranças. Alguns já faleceram, pois era bem mais velhos do que nós. Curso que dos colegas mais jovens e mais alegres faleceu no apogeu da sua carreira. Chamava-se Nero, o imperador do riso e das piadas. Era sobrinho do prefeito da cidade. Foi muito bom enquanto durou. Na passagem para o terceiro ano tive que abandonar a turma.
Tudo era novidade, numa época das primeiras transformações científicas e tecnológicas. Ainda não havia computadores no mercado, nem CDs. Os discos de vinil ainda iriam durar muitos anos. O trabalho na fábrica de Cubatão e muito cansativo, todo braçal, chegava em casa esgotado e morto de sono. Mesmo assim, nas horas de folga, curtia tudo que havia de bom e ao meu alcance no Gonzaga: os cinemas, as lojas, os eventos na praia, as lanchonetes. Tudo sozinho. Parecia que os amigos antigos haviam sumido e ainda não sabia lidar com os novos. Na verdade aqueles amigos também estavam passando por crises e mudanças e deviam também estar sofrendo de solidão. Essa vida meio deslocada e solitária foi em poucos meses me deixando perturbado. Percebi que uma nova crise estava surgindo. A fábrica começou a me cobrar um desenvolvimento que não era da minha natureza e do meu projeto de vida. O que um universitário – na época um status raro e difícil de alcançar- esperava daquele universo industrial, completamente diferente da área que havia escolhido para estudar e trabalhar? A pressão exigia um posicionamento urgente, com a definição de um cargo fixo na empresa e que era muito disputado pelos iniciantes. Aquilo não me agradava. Meus colegas estava ficando noivos, casando, constituindo família e formando lares. Me tratavam bem, porém me olhavam com um jeito estranho, misto de admiração e desconfiança. A repetição mecânica do serviço me incomodava e me fazia cometer erros básicos. Pensei, repensei. E decidi jogar a toalha e partir para o meu destino original: faculdade de História, não mais em Santos, mas em São Paulo.
Fiz as últimas provas e subi a Serra, não sem antes passar por uma situação muito desagradável, porém engraçada. Ao terminar a última prova na faculdade fui para a rodoviária e lá tive uma ingrata surpresa. Estava sem dinheiro suficiente para a passagem. Já eram quase dez horas da noite e não tinha como pedir ajuda a nenhum conhecido. Entrei numa banca de jornais e souvenirs e pedi ajuda para um cliente que olhava as revistas. O dono da banca, pensando o que para ele era óbvio, saiu aos gritos comigo me expulsando do local. O cliente ficou tão espantado que sugeriu que saíssemos juntos. Me deu o dinheiro que precisava e me desejou boa sorte. Ufa! Antes que ônibus chegasse na Serra fui tomado por outra surpresa: como iria chegar na casa minha mãe, já que o dinheiro que tinha recebido só era suficiente para o ônibus? Peguei a carteira no bolso na vã tentativa de achar algum a mais que poderia não ter visto naquela confusão toda. Nada. Mas tinha um bilhete múltiplo do Metrô.
Consegui terminar a viagem, mas ainda apreensivo com a última etapa. Desembarquei no terminal Jabaquara e segui até o terminal Sé ou Bandeira (não lembro se já existia), mas lembro ter subido a Ladeira da Memória até a rua Xavier Toledo, onde ficava o ponto final do ônibus municipal Boa Vista, que já conhecia de outras vezes que visitei minha mãe. Parei na calçada, olhei o relógio e vi que já se aproximava da meia noite. O movimento na rua foi diminuindo rapidamente, pois o Mappim já estava fechando as portas. Fiquei estático. Estava traumatizado. Já tinha até pensado na possibilidade de dormir ali, próximo de uma escada rolante. Uma sensação de agonia e medo. Dois motoristas conversavam alegremente em frente ao ônibus. Se despediram e um deles se dirigiu ao ônibus no qual eu precisa entrar. Era o último daquele turno. Minha barriga esfriou de vez. Foi então que tive a intuição de mostrar a ele o bilhete do metrô e explicar o que tinha acontecido. Ele nem olhou o bilhete e disse: “Sobe aí”!



XXI
CASA DE MAÇOM


Como é a experiência de morar na casa de pessoas estranhas? Pessoas amigáveis, mas estranhas? Minha mãe passou por isso.
Aos 12 anos mudou-se de Tibiriçá e foi estudar em Santo Anastácio, uma cidade fundada e colonizada por espanhóis no oeste paulista. Piada velha, porém ainda válida para quem não conhece o lugar. Quando alguém da região diz que é espanhol ou conhece algum espanhol, logo é questionado: “ Mas é espanhol da Espanha ou de Santo Anastácio”? Uma cidade católica, conservadora e também componentes anarquistas, do tipo “Hay gobierno? Soy contra! Também não acreditam bruxas, mas tem muitos que afirma que elas existe sim. Lá também tinha espíritas e maçons. Foi na casa de um deles que a minha mãe foi morar. Seu João era daqueles espíritas antigos, cultos e que via a doutrina como uma conspiração dos céus para mudar o mundo e as pessoas. Era grão mestre da maçonaria. Não se sabe se Allan Kardec era maçon , mas recebia cartas de maçons de vários lugares do mundo, inclusive do Brasil. Isso está registrado na Revue Spirit, publicada no século XIX. Minha Madrinha Manoela dizia: “Daqui até Baurú não tem ninguém maçom com grau igual ao dele”. Seu João também gostava de política, para humanizar um pouco sua difícil vida de celebridade espiritual e esotérica. A esposa aceitava tudo de bom grado e com respeito, menos a política. Quando chegava a época da eleições ela já ficava preocupada e nervosa. Minha mãe descobriu isso quando alguém passou em frente da casa deles e gritou com toda força: “ João de merda”!!! Era uma tentativa da oposição em desmoralizá-lo na vizinhança. Estratégia baixa e inútil , pois todo mundo o conhecia e muitos o admiravam e entendiam que era somente política.
Por que a mudança para Santo Anastácio?
Minha mãe tinha mediunidade desde pequenina. Via Espíritos, geralmente de s velhos barbudos sorrindo e dizendo as coisas que ela deveria saber e fazer. Conversava com eles e presenciava fenômenos físicos como luzes fortes e vidraças estilhaçadas. Dona Manoela, com que morava, era católica fervorosa, de irmandade mariana; e seu marido, Guilherme Borges, era muito medroso com essas coisas, evidentemente porque também era médium. Dois idosos que perderam uma filha jovem criando uma criança com poderes paranormais. Isso não seria um problema grave se ela fosse ajudada e instruída. Foi então que eles se lembraram do amigo João, que era representante de revistas e jornais, e também divulgador de obras e publicações kardecistas. Ele era também amigo do meu futuro avô paterno, Carlos José, que também era espírita. Daí surgiu a ideia de levá-la para estudar em Santo Anastácio, numa escola pública, e receber as primeiras noções doutrinárias de espiritismo no centro espírita frequentado pela família do Sr. João. A casa dele era repleta de livros e símbolos da iniciação maçônica. Apesar e ainda ser uma criança, seu João chamava minha mãe de “Dona”. Após as refeições ele olhava para a pequena hóspede e dizia, olhando para o monte de louças e talheres sobre a mesa: “É, Dona, é nessas horas que os filhos estranham os pais”!
Minha mãe conta que este foi um período muito bom, de boas lições e excelentes amizades. Conviver em lugares estranhos e com pessoas que não são da nossa esfera familiar, diz ela, nos obriga a mudar de pensamentos e sentimentos sobre as coisas, e principalmente de hábitos. Não aprendeu muito da doutrina naquela época, por falta de maturidade, mas saiu daquela casa sabendo que sem estudos e disciplina nada funciona. Quando chegasse a hora da verdadeira iniciação ela saberia identificar a oportunidade. As iniciações dos núcleos espirituais e esotéricos geralmente são muito parecidas e primam pelos mesmos princípios: o iniciado precisa vencer seus medos e superar sua limitações por meio de provas morais, provadas pelos mestres ou pela própria vida, por meio dos testemunhos. A maturação e depuração do discípulo acontece por meio de regras de conduta: silencio, sigilo, olhar, alimentação, obediência e serviço ao próximo. Tudo isso promove gradualmente a sua iniciação, na qual ele se transforma em fases ou graus que revelam sua purificação e desprendimento do mundo dos sentidos: a Lama (desejos), a Água (esforço para não se sujar) e finalmente a Luz (libertação). Ela recordou que, lendo certa vez uma reportagem sobre uma novidade doutrinária na Federação Espírita do Estado de São Paulo chamou sua atenção a fotografia de um velhinho falando com gestos dramáticos a aplicação de passes magnéticos ensinados em aulas especiais para iniciados. Era o Coronel Edgard Armond explicando o funcionamento da Escola de Aprendizes do Evangelho. Armond era mestre-maçom e diretor da Federação. Essa ainda não era a oportunidade esperada. Ela só iria acontecer muitos anos mais tarde, em São Vicente, quando uma vizinha a convidou para assistir uma aula inaugural da Escola de Aprendizes do Evangelho, dada por Jacques Conchon, falando do tema “Os Exilados de Capela”. Jacques também foi fundador e um dos diretores do CVV-Centro de Valorização da Vida, que naquele ano de 1977 iniciava sua expansão pelo Brasil. Era o início da nossa iniciação espiritual e também de engajamento na luta pela prevenção do suicídio.


XXII
CIGARRO DE VACA


Os mendigos e andarilhos são pessoas muito interessantes, cheios de tiradas engraçadas e declarações extravagantes. Não têm eira nem beira e não se importam com isso. Alguns são filósofos natos e os restantes são apenas pessoas comuns que cometeram suicídio, como todos os outros. Suicidas vivos, que romperam os laços com a vida pessoal, familiar e social. Disseram adeus para suas vidas e não querem mais saber de nada, de ninguém e principalmente de si mesmos. Andam sem rumo e sem a mínima noção de tempo e espaço. Às vezes para. Olham para o céu, para os lados e seguem em frente num caminho que nunca termina. Não gostam de olhar muito tempo para os rostos e olhos alheios e logo desviam os olhos, porque têm medo de se verem no outro. Certa vez, em frente na casa do meu sogro, em São Paulo, vi rapaz andarilho, trajando restos de um terno e descalço. Barba e cabelos enormes. Sorria, cumprimentava, mas não gostava de conversar. Vendo minha admiração, meu sogro comentou esse rapaz era gerente banco, trabalha numa agência ali na Lapa. De uma hora para outra ficou assim. Fez tratamento, tomou remédios, mas não adiantou nada. Seus pais moram aqui perto, mas vive na rua. Some por uns tempos e depois volta, mas não entra dentro de casa. Sempre dorme na rua. Vendo esta cena, lembrei de quando morávamos em Epitácio, na época que ainda existiam os trens de passageiros.
Às 21 horas toca o apito do último trem da Sorocabana. Era o BG, bagageiro, com vagões de última classe, trazendo para estações os indesejáveis da Capital e todas as estações que antecediam a de Presidente Epitácio. A Estação do Porto, como era conhecida, era última daquele ramal. Fim de linha. Fim de mundo. Eram os passageiros que trafegavam com passes da assistência social. Gente de todos os tipos, famílias de retirantes, trabalhadores pobres, alguns caixeiros-viajantes que tinham que fazer suas economias; e dezenas de indigentes que eram empurrados de cidade em cidade, esperando-se que desaparecessem e nunca mais voltassem. Desembarcavam na estação em situação de despejo do trem. O chefe da estação nessa altura da noite já estava dormindo e nem tomava conhecimento do que acontecia, a não ser numa excepcionalidade. Só o bar da estação permanecia aberto, na esperança de vender algumas doses de pinga para uma clientela já conhecida. Esse grupo descia do tempo e fica parado por algum, desorientados, aguardando algum tipo de ordem ou informação. Aos poucos eles iam se dispersando, procurando algum tipo de acomodação, geralmente os bancos do jardim ou então seguia pelas ruas na direção do Albergue do Centro Social São Pedro, que ficava na Estrada Boiadeira Sul. Ali poderiam tomar bando, alimentar-se e talvez ser encaminhados para as fazendas onde tinham colheitas de algodão ou serviço de capinagem de roça e que aceitavam alguns colonos. Não eram todos. Parte deles nem ia para o Albergue porque já sabia que não tinham capacidade para o trabalho. Preferiam ficar esmolando pelas ruas. A maioria queria ficar e outros preferiam seguir na direção da ponte e conseguir carona para o Mato Grosso. Eram atraídos pela selva, como se ali pudessem consumar suas mortes nessa vida perdida e suicida.
Nesses horários de chegada de trem as famílias ainda estavam acordadas, conversando nas varandas ou nos bancos de madeira em frente das casas, enquanto as crianças aproveitavam o fim da noite para brincar de pique-esconde ou um jogo de bola. Era nesse momento que surgiam pelas ruas essas pequenas hordas de pedintes, suplicando comida e atenção. Uns traziam malas e roupas amarrotadas, tentado manter um pouco de dignidade. Outros eram maltrapilhos que já haviam desistido de tudo, carregando sacos com coisas que ganhavam ou achavam. Outros só carregavam o corpo. Os primeiros gostavam de conversar, mostrar suas habilidades e suas ideias, lembranças dos últimos botecos em que foram proibidos de entrar por absoluta falta de dinheiro e de argumentos. Esses paravam em frente das casas, batiam palmas, faziam suas saudações e pediam um prato de comida ou o tradicional pão velho. Lembrei da mãe de um amigo nosso, Dona Remédios, que sempre atendia essa pessoas com respeito e carinho. Preparava uma farta refeição e aguardava para recolher de volta o prato e o talher, que guardava só esse fim. E ouvia pacientemente as histórias que eles contavam. Nós à vezes brincávamos com os mais alegres, debochando dos seus trejeitos e ideias. “The house, the house”, dizia um jovem alto, magro e barbudo, demonstrando habilidade de falar inglês. E sabia mesmo muitas palavras e expressões, que pronunciava com um tom aristocrático, do qual ríamos inconsequentes. Uns tinham o pavio curto e transbordavam mal humor. Oferecíamos cigarros de palha com fumo amarelinho, que aprendemos a fazer com a Tia Teodora e que fumávamos escondido. Eles aceitavam a novidade, tragavam e aguardávamos as reações de agradecimento e também de crítica: “Cigarro de vaca esse heim”, reclamou um deles bem nervoso. E quando rimos, saiu xingando e cuspindo. E um dos meus irmãos, ofendido, discutiu com ele: “Além de ganhar ainda que exigir”? A Madrinha Manoela não gostava dessas brincadeiras, ficava sentida, mesmo rindo de algumas das reações mais estranhas. Ela aproveitava essas situações para nos ensinar coisas importantes da vida. “ A gente não poder tratar essas pessoas desse jeito, porque a gente nunca sabe quem eles são. Pode ser um ladrão, um assassino, uma pessoa infeliz que não deu certo na vida, coitados. E pode até ser Jesus. É, às vezes Jesus se disfarça de mendigo, para ver como a gente se comporta”. Era a forma que ela encontrava para desconstruir aquela cenas deploráveis nas quais pessoas chegam ao fundo do poço e ela não aceitava que aquela pudesse existir. Quando ela percebia que estávamos enfraquecendo os argumentos dela com os nossos olhares de deboche, ela logo reagia com um história dramática sobre Jesus causando alguma surpresa muito grave ou então uma onça que atacava as famílias e roubava as crianças. “Certa vez, disse, ela, “Jesus chegou disfarçado de mendigo numa casa e pediu abrigo, chovia e fazia frio. A dona da casa, desconfiada, consentiu mas colocou-o num chiqueiro no fundo do quintal, forrado de palhas de milho. Ele aceitou a oferta e ali dormiu profundamente. Acordou tão cedo, que não poder nem agradecer. Só deixou um sinal de cruz na porta do chiqueiro. Muito anos depois a mulher ficou doente. Tinha um caroço no seio e soube que iria morrer. Orou para que Jesus a salvasse e que lhe desse um sinal de cura. Naquela noite ela teve um sonho idêntico a visita do mendigo. Na despedida do outro dia, ele olhou para um dos seios dela e viu que estava inchado e vermelho. E disse: “Vá até o chiqueiro e faça uma lama com a terra que está sob as palhas onde dormi. Esfregue a lama e seu seio vai ser curado para sempre”.


XXIII
TAÇAS DE SANGUE


A casa da rua Curitiba era todas de madeira, mas tinha de aspecto aristocrático. Foi feita com a intenção parecer a casa de alguém importante, um pouco acima do terreno, assentado sobre uma base de tijolos. Se tivesse feito com as tábua horizontais teria fica bonita e mais imponente, pois tinha uma pequena varanda com muretas de tijolos, onde sempre tinhas duas ou três cadeiras de fio coloridos de nylon. Varanda para receber visitas nas estações quentes e ver o movimento da rua. A madrinha Manoela recebia ali suas amigas e afilhados para longas conversas. Também dali nos repreendia quando havia excessos nas brincadeiras de rua e provocações aos andarilhos e mendigos que vinham da estação em direção ao Albergue Noturno. Mas o construtor preferiu a posição vertical das tábuas, para acentuar a impressão de que ela tinha a altura dos palacetes. Era bem construída, mas não conseguiu se impor como moradia aristocrática como desejava o primeiro morador. Foi uma casa de muitos donos e muitos moradores e agora pertencia a um comerciante espanhol, proprietário de dezenas de casas de aluguel espalhadas pela cidade e que lhe rendiam um bom dinheiro. Nos fundos tinha um alpendre bem espaçoso e aberto, protegido por treliças de ripas do piso até o teto, que também tinham a função de garantir a ventilação nos meses mais quentes. O alpendre tinha tanque e varais de arame, que eram mais baratos e resistentes, separa a cozinha de dois quartos de dispensa enormes, tão grande que somente um deles era usado por nós, ficando o outro sempre vazio. Era nesse que eu sempre arrumava um jeito de transformá-lo em um banco, uma oficina de consertos de roupa e sapatos e escritórios diversos. Lembro que tinha um quintal com árvore, mas gostava muito. A cerca de um dos vizinhos era de tijolos, mas a outra era de ripas pontiagudas, feitas de sobras de madeira das serrarias, deixando expostos os dois quintais.
Foi nesse quintal ao lado que aconteceu uma coisa muito estranha. Varrendo sob as árvores e juntando as folhas caídas das árvores a vizinha encontrou junto a cerca alguns objetos que lhe causaram espanto e medo, parecendo peças de um trabalho de feitiço. Eram, segundo ela recipientes que lembravam taças de rituais de magia, contendo um líquido vermelho que parecida sangue de porco ou galinha. Não tinha velas, porém sob as folhas que se acumularam sobre a terra havia colheres de chá, ainda brilhantes e que não teve coragem de tocar. Afastou-se assustada concluindo que aquilo tudo estava ali há muito tempo, pois estava impregnado de areia barrenta. Não contou para o marido, para deixá-lo preocupado.
Passado alguns dias, ainda intrigada, ele chamou minha mãe, quando esta voltava, no final da tarde, da nossa loja de cosméticos. Pensou ante disso: ela é espírita e poderá explicar melhor o que isso e ajudar-me a procurar ajuda, para não ofender a quem quer fosse e que tinha feito aquilo, sabe por qual motivo. Também não queria forçar o marido a ter que mudar para outra casa, pois moravam ali há poucos meses. A casa tinha ficado vazia durante muito tempo e então aproveitaram para fazer aquilo que estava lá, próximo da nossa cerca. Por isso, também ficou na obrigação de alertar minha mãe. Depois de relar tudo para minha mãe convidou-a para ver o que passava. Aproximaram-se da cerca e percebeu que a expressão facial da mãe mudou rapidamente. Parecia estar transtornada, chegando a dar umas gargalhadas, o que deixou a vizinha ainda mais intrigada e com medo. Depois de alguns segundos de concentração, minha mãe comentou decepcionada:
- Então foi isso. Agora entendi. Não acredito que isso realmente aconteceu.
E veio a tão esperada explicação.
As taças eram realmente taças de plástico verde, com fundo branco. Tinham desaparecido misteriosamente da minha casa há algum tempo. O líquido vermelho não era sangue e sim restos de gelatina de cereja, que derreteu com a chuva que havia caído há dois dias e encheram as taças com água vermelha. As colheres também tinham desaparecido, sem nenhuma explicação. O mistério das taças de sangue estava resolvido, para alívio e alegria da vizinha. O material do feitiço foi recolhido e reconduzido para o seu lugar de origem, para servir de prova para uma nova investigação. Era preciso descobrir quem foi o autor do delito. Já adianto que na fui eu. Não teria coragem de fazer essa patifaria. Minha vó Maria diria que era uma grande cachorrada. Na verdade minha mãe já sabia de quem se tratava, pois o leniente havia cometido o mesmo delito na loja durante o período em minha mãe viera em casa para almoçar. Pediu desculpas, despediu-se da vizinha e entrou em casa disposta a desmascarar a farsa. Todos reunidos na sala, menos meu pai, que nunca se metia nos negócios educativos da minha mãe. A curiosidade da sobre o assunto da reunião era intensa, pois quando acontecia algo daquele naipe certamente iria rola uma surra espetacular. Em pé e de chinelo na mão ela dirigiu olhar para o meu irmão mais velho e perguntou com voz firme: “Cadê o dinheiro do caixa que eu deixei na loja hoje manhã. Ele não respondeu, mas tremeu nas bases, arregalando os olhos. “Vou repetir só mais uma vez: cadê o dinheiro”? “Também quero saber onde estão as minhas taças e colheres de gelatina que sumiram aqui de casa”?
Dessa vez ele já estava deitado no chão chorando e implorando para não apanhar: “Eu confesso, eu confesso”. “O dinheiro eu paguei coxinha e refrigerante pra todo mundo no bar do Bernardino”.
Depois de duas chineladas bem fortes, ele afrouxou e veio a outra confissão:
“Eu comi todas as gelatinas e joguei no quintal da casa aqui do lado”.
O assunto foi encerrado com mais algumas chineladas marcantes e uma ordem irreversível para ir para o banheiro e ficar lá até a hora de dormir, com a luz apagada.
Todos sabiam que ele morria de medo de defunto e escuridão. Tava armado o complemento do castigo. Não tive dó. Afinal, ele fez a mesma coisa comigo depois que, numa noite, eu fiquei perturbando todo mundo fingindo que estava passando e tendo falsos soluços. Disseram pra eu parar e não parei. Fui para o banheiro, levado cruelmente por ele. Fiquei lá um tempão. Não tinha medo do escuro e naquele dia não lembrei de nenhum defunto.


XXIV 
VELÓRIOS 

O pior de todos os medos e o medo dos defuntos. Esse é um medo que dói, dizia minha mãe. Ficar sabendo de uma pessoa que morreu porque já estava doente não dá medo, mas de peoas que morrem de forma súbita ou trágica é diferente. Causa uma impressão forte em nosso espírito e algumas pessoas ficam perturbadas, à vezes por dias e meses. Dizem que essas pessoas são médiuns e essa impressão acentua a sensibilidade natural deles, passando as captar mentalmente as impressões dos outros também a agonia dos que morreram.
Na infância eu não resitia de curiosidade ia aos velórios observar tudo o que estava acontecendo, em detalhes. Quando começava a escurecer, ao entrar no banheiro para tomar banho, já ia ficando transtornado, pois sabia que a noite em claro ia ser longa. Não conseguia pregar os olhos e fica revendo as cenas do velório e a imagem do morto com os olhos fechado dentro do caixão. Minha mãe percebia, ficava brava , mas logo vinha me socorrer.
Meu irmão mais velho era pior do que eu, pois ele ficava impressionado com todo mundo que morria, gente da cidade e gente famosa que aprecia nos jornais. “Mais que diacho, o homem tá longe e nem sabe que você existe”, dizia minha vó tentando consolar ele, mas não tinha jeito. O chacra gástrico começava a girar tão fortemente, aumentando a sensação de frio na barriga e todo fica em estado de desequilíbrio.
Tinha umas simpatias ousadas para resolver esse problema, como levar o medroso ao velório e fazer ela tocar no defunto e dizer umas palavras,etc. Mas no caso dele parece que isso só piorou. Eu nunca fiz isso. Eu heim!
Hoje perdi o medo, sei me controlar, mas não vou em velório. Quando vou, não entro na Câmara Ardente (olha o nome do lugar). Se tiver que entrar, entro e não olho na cara do sujeito. Nessas horas sempre tem uns cretinos que chegam perto da gente e falam: “Você viu a cara dele? Tá escura”. Puta merda.
Mas os enterros são interessantes, menos agressivos, psicologicamente falando. O silêncio dos passos e das vozes das pessoas andando pelas alamedas da necrópole, as sepulturas curiosas e tal. Evito ir também.
Os antigos ensinam que, depois de um velório, o melhor é passar em algum lugar antes de volta pra casa; ir numa praça, numa loja, para apagar as impressões negativas das cenas fúnebres. O bom mesmo é não ir.
Na minha casa só teve um velório, o da minha Madrinha Manoela. Foi tranquilo, na sala. O problema é que fiquei um seis meses sem passar sozinho por ali, ou passava correndo, acendendo as luzes.
Realmente não posso ir nesses lugares. Já tive várias vezes a impressão de sentir um cheiro forte de rosas e também de carniça. Têm pessoas que morrem e não sabem que morreram e ficam pedindo ajuda aos medrosos, pois sabem que nós são os únicos que levam eles à sério.

XXV 
JANELA PAULISTANA 

Da janela do meu quarto eu tinha uma visão panorâmica da zona sul de São Paulo, começando pelo Butantã, Pinheiros, jardins América e Europa, parte do Morumbi e finalmente a Avenida Paulista, no alto de Cerqueira César, com suas torres de concretos e antenas transmissoras de rádio e tevê. Era o terceiro piso de um sobrado na rua Embaixador Cavalcante de Lacerda. Em frente ao reservatório de água da Sabesp, na Vila Gomes. Eram duas visões completamente diferentes: a do dia, mais nítida e cheia de detalhes, como a vegetação e as milhares de edificações espalhadas nos bairros; e a noturna, difusa, onde só se enxergava sombras, silhuetas e infinitos brilhos e tons de luzes. São Paulo não tem céu nem estrelas, escondido pela neblina e pelo reflexo das luzes amarelas da iluminação púbica. Tem também um barulho que não se ouve, mas que é a soma de todos os ruídos que existem na cidade. Esse barulho é subliminar, oculto, e permanece gravado na memória auditiva de todos. É ele que faz com que o paulistano, de forma inconsciente, sofra uma saturação e esgotamento permanente. Daí essa necessidade constante de sumir (escapar), de consumir, se divertir e principalmente comer, como forma de alívio.
Ficava olhando aquela paisagem gigantesca e não me conformava que tudo aquilo um dia foi um planalto vazio, com pouquíssimas casas, rodeado de riachos e florestas. Tudo desapareceu sob o asfalto e construções.
Na minha época paulistana a cidade ainda desconhecia os computadores, a internet e as redes sociais. Não havia celulares. O telefone era caro e caro. E mesmo assim as pessoas se comunicavam. Para saber das coisas gerais, as pessoas contavam com os jornais, tv e rádio. Mas para saber mesmo das coisas tínhamos que ir até os lugares onde as coisas estavam acontecendo. Todos tínhamos um telefone de recado e os recados demoravam par serem dados. Até mesmo quando inventaram o BIP, sinal de que deveríamos ligar para alguém dos orelhões ou cabines telefônicas. Por isso acreditávamos que era necessário andar em busca de informações. Tudo girava em torno de informações. Ainda não havíamos ingressado na chamada Era da Informação nem do Conhecimento, mas havia uma forte convicção de que não era possível viver sem isso. As bancas de jornais eram repletas de produtos informativos: revistas, fascículos, livros e fitas K-7. Nas bancas da Paulista tinham jornais do Brasil inteiro e também das principais capitais do Mundo. As locadoras de vídeo ocupavam os melhores pontos comerciais. As salas de cinema ainda eram altamente frequentadas, não como nas décadas anteriores, mas ainda fazia parte dos nossos hábitos. Antes do advento do “laser” havia muitas lojas de discos de vinil. As livrarias e sebos eram o destaque e também estavam espalhadas na cidade, principalmente nas faculdades e nos arredores. Naquele tempo São Paulo era visualmente suja e poluída. Não havia a lei da cidade limpa e realmente as edificações viviam escondida por trás das placas e out-doors de publicidade. Quando voltava para casa, geralmente depois das 21 ou 22 horas, tudo que queríamos era um banho, uma roupa limpa, uma refeição, um pouco de televisão e uma cama. Não conseguia ler nada antes de deitar. Dispensava a TV. O que tinha mais preciso no meu quarto era um aparelho de som – receiver - com duas pequenas caixas de som. Não era para ouvir discos. Era só para ouvir rádio. Rádio Eldorado. Rádio USP. Rádio Cultura. Vivíamos a era das FMs. Para dormir, preferia a Scala FM, emissora do grupo Diário Grande ABC, que tinha um prefixo espetacularmente aristocrático e relaxante. Impossível dormir em São Paulo sem ouvir a voz de Danielle Licare cantando os famosos monossílabos (à scat singing ) do concerto Pour Une Voix, de Saint-Preux. Como levantava às 5, não tinha tempo para os programas jornalísticos da manhã. Assim era São Paulo nos anos 80-90, a qual percorria portando sempre, por segurança climática, um pequeno guarda-chuva e um colete de lã. De vez em quando subo a serra para alguma reunião ou evento e aproveito para matar as saudades. É um conforto saber que São Paulo está bem perto. Por isso voltei e não mudo do litoral.


  

Espíritos nas Escolas - Vivências” são relatos de escolas e lugares que não ficam em nenhum lugar específico, porém existem em quase todos os lugares. São histórias do mundo paralelo e oculto escritas no inverno de 2023 que ilustram os conteúdos publicados no primeiro volume publicado em 2011. Seus personagens têm nomes fictícios, porém suas vivências são muitos semelhantes às das pessoas com quem convivemos.  Quando olhamos para elas, imediatamente nos enxergamos num grande espelho humano. Puxam de dentro de nós muitas semelhanças que nos causam espanto e admiração. Vivem situações aparentemente sem explicação e que a maioria de nós não consegue perceber, por falta de conhecimento e sensibilidade. Todos temos esses registros de experiências transcendentes. Mesmo assim, ainda não nos sentimos preparados para desvendar as causas e os efeitos dessas vivências. A solução para esse impasse é reler as histórias, contá-las aos outros, pedir que leiam para nós enquanto fechamos os olhos, enfim, tudo que é possível e necessário para alcançar o nosso despertamento.  O Autor

 *

 

1

O tempo de Gil

2

Ana Clara precisa ir embora

3

Aurora que não desperta

4

Zé Ricardo procura e acha

5

Ronaldo de outro mundo 

6

Renato está angustiado

7

Dona Antônia tem visita

8

Rita não tem medo

9

Alice no País das Grávidas

10

Gil no mundo da Lua

11

Júlio e o Arco Íris

12

Paulo precisa voltar.

13

Carlos têm a Palavra

14

Rachel precisa mudar

15

Afonso ensina a ouvir

16

Luciana quebra o silêncio

17

Sidnei choveu na horta. 

18

Fabiano ensina a não engolir o choro.

19

Cláudio desvenda a mesa e o labirinto

20 

Wanderley e a tempestade

21

Ricardo reencontra Rosalinda

22

José Renato foi no Céu

23

Fernando encontra os Sobreviventes

24

Flávio e Débora são sonâmbulos

25

Josué pesquisa o destino dos suicidas

26

Juliana e Claudio na Torre do Tempo

27

Fernanda e  Rafael na Cidade Maravilhosa

28

Ricardo em outras praias

29

Olavo e Paulo Henrique se lembram do padre

30

Milton, pressa e papo reto.

31

Claudio conversa com Anjos da Guarda 

32

Luiza e Joel tiveram um encontro

33

João Paulo, Gilson e a Torre Eifell

34

Gabriel , Jerônimo e o ônibus veloz.

35

Susana sonha e vê o futuro

36

Lauro "Francês" e o vizinho "Pablo"

37

Vicente em Dé javu

38

Vicente reencontra Vicenzo

39

Vicente redescobre a Bicicleta

40

Vicente fala, lê e escreve coisas estranhas 

41

Ave Maria

*

 

 



1

O tempo de Gil

 

Gil já foi o mais novo professor da escola. Hoje é o mais antigo. Em 15 anos de permanência, foi vendo alguns colegas se aposentarem enquanto aguarda sua vez de encerrar seu trabalho docente. Alguém disse para ele que tem que cumprir 9.125 dias de trabalho para ter direito à aposentadoria. Ficou com esses números na cabeça, porém prefere esquecer essa contagem por algum tempo, para evitar anseios e expectativas. Quando se aposentam, a maioria dos professores e funcionários geralmente não retornam à escola. Preferem manter distância  e assim afastar lembranças ruins dos dias de trabalho cotidiano. Gil prefere não tocar no assunto. Vive dizendo que vai morrer na sala de aula. Morte súbita. E, rindo de si, imagina como seria a reação dos alunos e dos colegas... 

Enquanto a morte e a aposentadoria não chegam, Gil busca fugir da rotina criando e recriando formas de estar próximo dos alunos, sem transtornos e fantasias pedagógicas.  Sempre dá um jeito de causar alguma mudança. A última delas foi, depois de quinze anos, trocar para o período da noite, como se o período da manhã tivesse tido morte súbita. Nunca tinha passado por essa experiência. Um funcionário até perguntou o motivo e  ele respondeu simplesmente que apenas queria mudar de ares. Estranhou a mudança. Ficou com um frio na barriga que, apesar da sua longa experiências com situações novas, persistiu por algumas semanas. Ficou preocupado em alguns momentos, temendo não se adaptar. Não pensou que seria assim, mas achou tudo muito estranho, mesmo julgando que eram coisas da sua cabeça. Mas não eram.  

No primeiro semestre da mudança, aconteceram algumas coisas muito diferentes do comum e também coisas corriqueiras. As últimas serviram para manter a normalidade das coisas. Já as primeiras serviram para tirar sua tranquilidade e aguçar seus instintos. 

Como sempre fazia de manhã, Gil continuou andando pela escola nos momentos em que se sentia entediado.  Era uma forma de fazer o tempo passar mais rápido. Sorte dele que no período noturno tem duas aulas a menos do que as sete do período matutino. À noite é bem diferente.  Depois do intervalo e da merenda, instala-se um silêncio e uma espécie de sonolência na escola inteira. A cozinha e a cantina fecham as portas, os banheiros vão esvaziando, algumas turmas vão sendo dispensadas, a secretaria também vai diminuindo o ritmo de trabalho. Somente equipe gestora permanece de prontidão, para tomar as últimas medidas do período. Isso facilita as andanças de Gil pela escola. Ele faz várias incursões, sempre muito rápidas, sem que suas aulas sejam interrompidas:  vai ao banheiro, que fica na sala dos professores; vai até algumas salas nas quais as classes foram dispensadas; anda pelo pátio; vai até a sala de leitura, que está sempre fechada e volta para sua sala. Antes dessas incursões, sempre avisa alguns alunos que ele confia, para ficar de olho na turma. Olha rapidamente para eles e, com um gesto facial já conhecido, avisa que vai sair e voltará em breve. Assim, Gil observa tudo que é rotineiro e também o que não é comum.  Alguns funcionários acham que estão sendo espionados. Mas ele não tempo nem como explicar para eles as suas saídas e retornos. Encontra muitos alunos e com eles trava conversas rápidas, umas triviais e outras muito curiosas. Faz perguntas inesperadas e surpreendentes. Assim as respostas vêm de forma espontânea e é dessa forma que ele fica sabendo de muitas coisas. É uma intimidade e ao mesmo tempo uma cumplicidade com alguns colegas professores, alguns funcionários e principalmente com os alunos. Esses também possuem segredos que só Gil sabe. Outros não falam nada. Apenas passam por ele, cumprimentam e aproveitam esse momento para fortalecer os laços de silêncio. Gil já se acostumou com o período da noite, cheio de segredos e mistérios.  

 

*


2

Ana Clara precisa ir embora

 

Depois do primeiro intervalo, às 20:30, o pátio esvazia-se aos poucos e as salas de aulas recolhem os primeiros alunos que retornam após a agitação da merenda. Ana Clara já retornou, mas permanece em pé no seu lugar de sempre. A mochila está sobre a mesa. Ela olha para todos os cantos da sala. O professor observa os poucos alunos que chegam e vão se acomodando. Estão sorridentes e tranquilos e trocam olhares sem conversar. Ana Clara não está tranquila. Com uma das mãos, segura uma das alças levantando e abaixando a mochila repetidas vezes. Olha para o quadro branco e confere se deixou de anotar alguma coisa do resumo da aula. Quando isso acontece, os alunos usam o celular para fotografar os tópicos. Quer dizer alguma coisa para o professor e este então se levanta e vai rapidamente até ela.

- Já fotografei a parte que não tinha copiado...

- Ah, legal!, será que alguém apagou alguma parte? pergunta o professor, querendo puxar assunto. 

- Não, eu que pulei o final quando descemos para a merenda. 

 - Está tudo bem com você? 

Antes de responder, Ana Clara repassa os olhos pela sala como se tivesse buscando alguém ausente e demora alguns segundo para explicar por quê está em pé e o que está acontecendo. São segundos que parecem uma eternidade. Ela tem um olhar vago e ao mesmo tempo triste. A mão ainda segura a alça da mochila aguardando a decisão de ir ou ficar na sala. A respiração se acelera e em alguns instantes parece estar ofegante. Ela põe a outra mão no peito e logo retira para fechar o punho e mover o braço de um lado para o outro. É um movimento ao mesmo tempo brusco e lento, forte e delicado, denunciando uma agonia.   Não é a primeira vez que isso acontece. Agora, com o professor esperando uma resposta, as coisas se complicaram. Não tem mais como esconder a sua esquisitice nervosa. Ela então, num gesto final, antes da revelação íntima, olha para o teto da sala e se volta para o seu interlocutor.

-Vou embora!

- Aconteceu alguma coisa (claro que que sim) ?

- Acho que vou ter uma crise de pânico, professor...

O professor não diz nada. 

Ao perceber que a sala começa a ficar cheia, Ana Clara toma a decisão de sair. Põe a mochila no ombro e caminha rapidamente na direção da porta.

Ela se volta para o professor, agradece com um sorriso, envergonhada, e vai embora. 

Duas semanas antes, professor havia colocado no quadro um resumo um tanto diferente dos temas da sua disciplina. Percebendo um certo desinteresse pelas aulas comuns, ele quase sempre quebra a rotina e toca num assunto de interesse mais pessoal ou de curiosidade tecnológica e profissional. É uma prática transversal muito conhecida entre os educadores, para romper o senso comum e provocar novas dúvidas e descobertas. Às vezes funciona, outra vezes simplesmente fracassa. Depende do dia e do momento. A intuição pode acertar ou não. A receptividade é sempre uma incógnita. Mas ele sempre arrisca. Joga a semente e espera germinar. Afinal, os alunos são diferentes entre si  no quesito maturidade e nunca estão no mesmo ritmo de tempo interno - “kairós”. A maioria, mesmo as meninas, que despertam mais cedo para as coisas da vida,  flutuam em “kronos”, o tempo exterior.  Nesse caso funcionou. 

A fuga de Ana Clara não foi por acaso. Ela tomou uma decisão que muitas vezes foi adiada e que provocou nela dores insuportáveis diante de uma tormenta interior indescritível. Não foi uma fuga de covardia e sim de coragem. Decisão pensada e refletida, para evitar o pior. Não foi por impulso. Saiu da sala e foi avisar a direção, para sentir-se melhor, mais segura e tranquila. Uma decisão trabalhosa, mas que valeu à pena. Ela não gosta de faltar nem de ir embora. Foi porque precisava.  

O professor havia abordado um assunto que pesou na decisão e atitude de Ana Clara. Ele falou sobre saúde mental. Mostrou estatísticas de suicídio nas faixas de idade. Mostrou com funciona a mente e as vivências humanas. Uma abordagem simples, muito curiosa revelando que esse dispositivo que comanda o cérebro é responsável por tudo que fazemos nas 24 horas nas quais estamos em vigília e também quando dormimos. Pensamos, agimos e sentimos as coisas simultaneamente, de acordo com as nossas preferências e necessidades em cada um desses três campos mentais. Nossa sociedade cobra muito o pensamento e as ações, supervalorizando essas duas vivências ao sucesso, porém despreza o sentimento, associando ao fracasso. Nessa visão racionalista, pensar e agir seria força; e sentir seria fraqueza. Um engano grave fingir que pessoas que pensam e agem muito não têm emoções e não sofrem. Eles têm, sim. E sofrem também. O problema é que elas escondem as emoções, negam os sentimentos e esse comportamento de fingir e aparentar força e resistência apenas aumenta o sofrimento, levando ao desequilíbrio com gestos impulsivos e perigosos. 

"Vivemos numa sociedade doente (vejam o número de farmácias espalhadas no comércio) e contraditória (vejam o número de pessoas atingidas por epidemias de ansiedade, depressão e distúrbios alimentares). Muitos ainda passam fome.  Uma sociedade que não vai mudar se não mudarmos antes, individualmente". 

 O professor deu muitos outros exemplos desses desequilíbrios e também  sobre como podemos mudar nosso comportamento frio e indiferente diante das emoções, adotando uma postura de autocuidado e também de ajuda aos outros.  Lembrou da importância de ouvir e expressar sentimentos antes de tomar decisões.  Falar sobre sentimentos e emoções pode ajudar a compreender melhor os nossos sofrimentos  e também descobrir as mudanças que precisamos nos momentos de crises.

Poucos prestaram atenção na aula, embora copiassem a matéria do quadro. Ana Clara também copiou, rapidamente, mas teve coragem de perguntar e depois dizer ao professor que o assunto a ajudou muito.  

O tema da saúde mental gerou um incômodo e até irritação em alguns alunos, não por ignorância, mas por tocar em feridas abertas e escondidas que todos temos. Não são apenas os cortes no corpo que denunciam os ferimentos da alma. As reações agressivas e irônicas, gestos de inquietação ou mesmo o silêncio, revelam situações e dores que ainda não conseguem ser compreendidas e devidamente comunicadas. 

 Na memória de Ana Clara, diferente da maioria dos colegas, ficaram gravadas as palavras-chave de apoio e disponibilidade para ajudar pessoas com dificuldades emocionais:  aproximação, aceitação, compreensão e respeito.

 

*

 

3

Aurora que não desperta

 

Ninguém é de ferro. Prova disso é a nossa reação de espanto e mal estar quando vemos alguém chorando. Tentamos de todas as formas entender o que está acontecendo, mesmo disfarçando com ironia e indiferença. Uma pessoa chorando próxima de nós ativa os dispositivos da memória e, inconscientemente, lembramos das situações nas quais tivemos que chorar. 

Aurora apareceu chorando após o intervalo. Não estava envergonhada por estar chorando. Caminhava de um lado para o outro tentando encontrar seu lugar nas fileiras. Não conseguia lembrar exatamente onde tinha sentado pela última vez. Uma colega, rindo da situação confusa, indicou o lugar exato e, assim que sentou começou uma outra batalha de reconhecimento: encontrar na mochila o material de estudo. Localizados os apetrechos, inicia a busca da matéria folheando rapidamente o caderno, tentando encontrar as lições parecidas com a que estava resumida no quadro branco. Confere várias vezes e não encontra nada semelhante. Indecisa, olha para os lados e pergunta e voz baixa qual é a matéria. Quase ninguém sabe responder.  

Novamente a colega que havia indicado seu lugar a salva do constrangimento repetindo a palavra “itinerário” e também, por duas vezes, o nome da professora.

 “Eu sei nome dela, mas qual é a matéria”? 

Ninguém respondeu. 

A professora estava atenta, observando o choro e o comportamento confuso de Aurora. Aproveitando a confusão, já que não era apenas Aurora que estava perdida nesse assunto.  Colocou no quadro a palavra “Itinerário”, o eixo temático e também seu nome. Era Flávia, um rosto conhecido na escola pelo bom humor, mas também pelas reações de rigor disciplinar, mistura de braveza e afeto. Cabelos curtos, óculos fundo de garrafa, roupas simples, tênis, a professora estava sinceramente preocupada com a situação.  Permaneceu em pé por alguns instantes e logo voltou para sua mesa avisando que iria conferir a chamada da primeira aula. Mesmo perdida, Aurora decidiu copiar os tópicos sobre Sustentabilidade numa parte qualquer do caderno, abundante de folhas em branco. Mesmo ocupada com essa tarefa incomum na sua rotina, continuava chorando e, algumas vezes, ia até o quadro, no qual colocava as duas mãos, conferindo algumas palavras e voltava para o seu lugar sob os olhares atentos de Flávia. 

Não era somente a professora que estava incomodada. Alguns colegas revelavam expressões de angústia e temor vendo Aurora naquela situação. Aquilo que, para a maioria, parecia algo banal, para eles era a dor de um sofrimento contido. Sabiam perfeitamente o que estava acontecendo. E trocavam olhares de compaixão sabendo que não podiam fazer muita coisa diante de um conflito pessoal que só Aurora poderia resolver. O que poderia ser feito numa situação como essa, na qual somente a pessoa que sofre pode desatar o nó dessa angústia?  A colega que riu e indicou o lugar e a matéria não riu de Aurora, mas da situação. A professora, preocupadíssima, logo entendeu o que se passava e trocava olhares com alguns alunos compreendendo que Aurora estava sendo devastada por um dilema pelo qual todos eles já tinham de certa forma vivenciado ou também ainda estava em curso em suas existências. 

O professor de Filosofia era o mais lembrado nesses momentos e seu nome era pronunciado em meio à risos que lembravam os conceitos por ele expostos em algumas aulas. Quando isso acontecia, alguém logo fechava a cara para lembrar que Aurora estava em sofrimento.  O único jeito de ajudar era permanecer em silêncio compreensivo, dizendo sem palavras ou gestos, apenas com olhares, que estavam por perto, dispostos a dar um abraço ou travar uma boa conversa, daquelas em que um fala e o outro apenas ouve. Ou então os dois ficam próximos na mesma postura silenciosa e compreensiva. 

Aurora estava, como eles, despertando para a vida. 

A indecisão não era um erro, mas fase dolorosa de um longo caminho íntimo e solitário. Muitos não suportam essa solidão e sucumbem. Não resistem aos julgamentos nem à vergonha da exposição. 

Aurora está perto deles, mas continua sozinha. 

Sorte dela é que vem aprendendo a arte de estar sozinha, consigo mesma. Se desliga do mundo. Abandona o relógio e adota a bússola. Nesse instante vem à sua mente a imagem confusa das noites frias do polo norte. A névoa toma a forma de ondas luminosas de cores diversas nas quais predomina o verde espantando a escuridão e depois desaparecem no céu infinito. É o Kairós.  É a Aurora. 

É hora de encerrar o período. Uma inquietação sonora toma conta dos corredores, embora estejam vazios. O som de alvoroço vem das salas de aula. A inspetora bate à porta e entrega um cadeado aberto para Flávia. É o aviso de que essa é a última aula.  Muitas vezes o cadeado chega antes do horário normal de saída. Nesse caso o alvoroço aumenta. Poderão sair sem ter que voltar com pressa para casa. Poderão ficar nas esquinas, sentados na calçada ou encostados no muro sem serem incomodados. É o melhor tempo da escola. 

*


4

Zé Ricardo procura e acha

 

Todo mundo conhece José Ricardo. É talvez o rosto mais conhecido e lembrado da escola.  Sua fama local é inegável e ninguém ousa superá-lo porque somente ele tem coragem de explicar o motivo de ser tão conhecido, temido e respeitado (exagero de linguagem).

Pois bem. Todas as salas de aula do andar superior possuem nas portas um pequeno visor de vidro e em todas elas os alunos mais altos colocam o seu rosto para dar o ar da graça. José Ricardo é o recordista nessas aparições. Enquanto maioria dos alunos têm dificuldades para serem vistos, ele simplesmente tem que abaixar a cabeça. E quando isso acontece arranca gargalhadas dos colegas que estão na classe. Os professores nem ligam mais porque já sabem quem é e do que se trata. José Ricardo virou moda e exemplo para os alunos que gostam de vagar pelo corredor.  Então, para fugir desse desgaste de ter que dividir a fama com muitos alunos, ele adotou a estratégia de sumir e reaparecer somente quando os corredores e o pátio estão vazios. Ele percebe o silêncio e sempre dá um jeito de desaparecer da classe e ser visto em outros cantos da escola. Lembrando que esse é o período noturno e que o seu horário de ação é logo após o intervalo, nas duas últimas aulas. Enquanto as aulas seguem o seu curso, José Ricardo segue na sua trajetória de aparições. Às vezes pula uma ou outra sala, com receio de alguma hostilidade, vaia ou da repreensão de algum um professor que está de pavio curto. Sempre encontra uma boa desculpa ou explicação por estar fora da sala. Não vem todos os dias na escola. E não explica o motivo das faltas. Desaparece nos dias de semana mais frequentados e reaparece nos demais, que são apenas duas noites.  Na sala dos professores volta e meia José Ricardo é lembrado. A professora Roberta, sempre com semblante sério,  relata em tom de medo que descobriu o motivo dessa mudança de frequência, pois antes ele não faltava. 

Numa sexta-feira chuvosa e fria, quando se dirigia para uma das salas dos fundos do térreo, ela encontrou José Ricardo. Vinha caminhando rápido e, quando a viu, parou e aguardou que se aproximasse. A professora percebeu que duas pessoas, que ela não souber identificar, também caminhavam rápido na direção oposta desaparecendo de vista ao se dirigirem para o corredor dos banheiros, que aliás estavam fechados. José Ricardo estava desfigurado, pálido e com os olhos esbugalhados. Não disse uma única palavra. A professora pensou que se tratava de alguma negociata mal resolvida e seguiu em frente. Foi quando então José Ricardo decidiu falar.

- Professora, não vai por aí. Dá um tempo!!!

- Aconteceu alguma coisa? 

-  Aconteceu...

- Quem são aqueles alunos?

- Não são alunos, professora.

-Como assim, como eles entraram?

- Não sei.

- Foram para o banheiro. Vou ter que avisar a Dona Ruth (inspetora).

- Não faça isso.

- Não entendi. Ou melhor, já entendi.

- Não é nada disso que a senhora está pensando...

- Não tenho nada a ver com o que você está fazendo, mas se trata da nossa segurança. Essas pessoas não deveriam estar aqui.

José Ricardo fechou os olhos colocando a cabeça entre as mãos.

- Eles não são alunos...

-Eu sei que não são. Nunca os vi na escola. 

- Não sei quem são, professora,  mas uma coisa eu sei: eles não são desse mundo.

- Ah, com certeza não são mesmo... Ha, ha, ha !!!

-É verdade, professora. Não brinca com isso. Eu vi os rostos deles. São horríveis...

- Não me diga que...

- É isso, professora. Não viu as roupas deles?  E o cheiro, nossa.... 

Chocada com a explicação de José Ricardo, a professora vasculhou rapidamente sua memória e reviu as duas pessoas caminhando. Era um casal de jovens. Embora estivessem de costas, deu para ver nitidamente que seus cabelos estavam enormes e desgrenhados.  E as roupas e os tênis...que estranho... eram trajes que não via há muitos anos...

- Como eles conseguiram entrar no banheiro se não vi ninguém no bebedouro e no pátio? 

- Não sei, professora. Mas eles ficam sempre lá. Só saem à noite. Acho que...

- José Ricardo, fique calmo. 

Eu já estou mais calmo, professora. E a senhora, está bem?

- Vamos fazer uma oração e voltar para a classe!!

- Vamos, sim, professora.

 

*


5

Ronaldo de outro mundo 

 

Andando pelo corredor, segundos antes de entrar na sala de aula, Ronaldo já percebe a inquietação: conversas, gargalhadas e o arrastar das cadeiras. Aparece na porta, entra com passos firmes, porém olha tranquilamente para todos, como se os olhos estivessem saudando pessoalmente cada um dos alunos. A sala não fica totalmente em silêncio, porém o barulho geral vai diminuindo aos poucos até que cessem a maioria das conversas. Ele cumprimenta a todos com saudação típica que já conhecem e que, nos primeiros encontros, acharam engraçada, por ser totalmente fora de época: 

“ Fala, rapaziada! Tudo bom com vocês? ”. 

A saudação logo é seguida de alguns cumprimentos isolados e espontâneos, que de certa forma falam por todos os presentes, pois não tiram os olhos do professor. As reações são diversas. Uns contentes pelo retorno, outros espantados, outros curiosos, alguns intrigados e ainda alguns desconfiados daquela figura diferente e cativante. 

Ronaldo destoa dos demais professores. Ele é substituto e entra nas salas eventualmente. Não entra em todas as salas. Geralmente prefere as salas do piso superior. Brinca o tempo todo, principalmente quando os assuntos das aulas são pesados e desagrada a maioria. Ensina matemática, física e química. Explica de forma muito diferente, rápida, como se fosse um youtuber. As aulas não duram mais do que dez minutos. É incrível. Todos ficam perplexos e fascinados porque simplesmente entendem o que ele fala. Diz que tem um canal no Youtube, mas não é verdade, porque ninguém encontra os vídeos. Quando diz que os conteúdos estão no Youtube todos riem porque já sabem que é uma piada ou uma forma de dizer para prestarem mais atenção. 

Ronaldo sempre chega assim, de boa, sem alarde. Dá o recado bem rápido e sai da sala dizendo outra frase muito estranha para os alunos da geração atual: 

“Saída pela direita!!! 

E vai embora. 

Ronaldo não fica na sala dos professores nem no pátio. Às vezes é visto na secretaria, sempre calado, encostado em um dos arquivos ou sentado próximo à uma das mesas desocupadas. Outro lugar onde também é visto com frequência é no auditório, sempre lendo algum livro ou mexendo no seu celular. Ele dá as aulas nos períodos que antecedem as provas e entrega de trabalhos. Parece saber quais os assuntos que estão incomodando e reconhece os alunos que se preocupam mais com as notas: 

“Já sei o que tá pegando...” 

Numa das salas tem uma aluna que se senta perto da porta, muito discreta. Faz parte do grupo dos curiosos e desconfiados. Ela acha muito estranho um professor eventual fazer o que ele faz, mas este não é o problema, já que todos sabem como são geralmente os eventuais. Quase ninguém percebe que ele só dá aulas nas salas do piso superior. Lembra o nome de todos os alunos, mesmo o dela que nunca abre a boca, nem para responder chamada. Como ele sabe o nome dos alunos? De alguns ele sabe até coisas que ninguém sabe. Um dia ele olhou para um aluno e, do nada, disse para ele não se preocupar porque a mãe estava bem e que tinha deixado um recado no telefone da secretaria. O aluno estranhou porque a mãe não tem telefone e nem gosta de falar em telefone; estava internada em estado grave no hospital e iria passar por uma cirurgia de risco. Chegou em casa e recebeu a notícia de uma tia que a mãe realmente estava fora de perigo. 

Ronaldo dá boas dicas de memorização e toques para cada uma das disciplinas, sobretudo as consideradas mais difíceis. Um detalhe: as dicas incluem o gosto pessoal e preferências dos professores dessas disciplinas. Prestando atenção nesses detalhes alguns os alunos começaram a ter bons resultados e muitos outros começaram a aderir. 

Alguns professores estranharam a mudança dos alunos e ficaram intrigados, porque eles próprios não mudaram em nada o estilo das suas aulas. As mudanças aconteciam durante as atividades valendo pontos. Um desses professores, desconfiadíssimo, começou a questionar essas melhoras. E se aproximou dos alunos, como ele, desconfiados. Ouviu cada detalhe. Só não perguntou o nome. E os alunos durante a conversas com ele não pronunciaram uma única vez o nome de Ronaldo. Aquela aluna desconfiada, que senta perto da porta, ouviu tudo e não disse nada. Ficou mais intrigada ainda. Ela tinha visto o Ronaldo na calçada da praia. Estava sozinho em um banco de concreto olhando para o mar. Ela não achou nada estranho alguém estar olhando para o mar, porém, em um segundo de distração, olhou e não viu mais Ronaldo. Tinha sumido. Ela pensou que talvez estivesse se escondido atrás de um quiosque, mas o banco estava bem longe do mais próximo. Sumiu mesmo. 

O ano passou rápido. No final do terceiro bimestre, Ronaldo desapareceu da escola. No lugar dele veio outro eventual. A menina que tinha visto Ronaldo no banco da orla também não deu mais notícias dele para os colegas. Quer dizer, até tinha uma notícia para dar, mas achou que não seria muito legal falar sobre isso. 

Logo depois das festas de Natal e Ano Novo, ela e um grupo de amigos passavam pela rua da escola, já no final da tarde. Era sábado e escola estava fechada. Mas, em cima de uma das muretas do portão de entrada, alguém estava com o corpo inclinado para observar o movimento da rua, tentando enxergar também o movimento no calçadão da praia. Olha para o grupo e acena para ela. Era Ronaldo. Sorriso no rosto e o mesmo olhar tranquilo. A menina acena de volta dizendo pra si mesma: “Ele vai desaparecer”! E Ronaldo foi desparecendo, como uma imagem de nuvem que por alguns segundos parecia algo bem definido e depois se desfaz antes que alguém pudesse definir e explicar  o que estava vendo há poucos segundos. Ela só teve tempo de gritar : “Olha, é o Ronaldo”. 

E alguns colegas soltaram gargalhas dizendo: 

“Nossa, tá chapando”!!!  

 

*


6

Renato está angustiado

 

Noite chuvosa e fria. Poucos alunos na escola. Normalmente alguns deles gostam de ficar nas outras salas para fugir das matérias que não gostam e têm dificuldade para entender.  Ou então vão por inúmeras outras razões do que essas meras desculpas. Nesses momentos estão atrás de amigos para conversar e ficar mais à vontade. Hoje essa opção é mais difícil. A inspetora já conhece quem é quem e, na contagem dos presentes, já ordena que cada um volte para o seu quadrado. 

Renato teve que voltar para sua sala. Não está satisfeito, porém não reclama da disciplina. Obedece. Sua sala está vazia e alguns dos seus colegas que estão em outras salas ainda não foram vistos pela inspetora.  

A professora Ruth está na sala conferindo a lista de chamada e lançando as faltas. Renato está sentado sobre uma das carteiras olhando o celular. Incomodada, Ruth pergunta se está tudo bem. Renato responde que sim. Alguns segundos depois, com o olho fixo no celular, muda a resposta:

- Estou angustiado, professora...

Ruth puxa uma cadeira da fileira próxima e pede para Renato sentar-se de frente para ele. Estão da direção da porta da sala, que está aberta. No pátio estão duas funcionárias conversando. Ruth deixa a porta aberta, apesar do vento frio. Certifica-se de que todas as janelas estão fechadas e volta a abordar Renato:

- O que está acontecendo com você?

- Chateado, professora. Não consigo cumprir com a minha obrigação. Sou o filho mais velho e tenho que ajudar em casa. Não consigo comprar as coisas que preciso. Olha essa minha blusa de frio: está velha, quase rasgada.

- Não consegue arrumar trabalho. É isso que te deixa angustiado?

- Faço bicos, arrumo uns trocados, mas as coisas não andam. Meus amigos me ligam oferecendo emprego onde eles trabalham, mas só contratam quem está com a reservista na mão. Tenho vontade de servir no quartel, mas o tempo não passa. Não consigo servir nem trabalhar direito. Fica nessa enrolação. Não consigo resolver nada.

- Essa fase é realmente angustiante. Está sem paciência né...

- É porque as coisas não se definem. 

-Compreendo.

- Eu sou de boa, não arrumo treta com ninguém, sou cristão.  Mas hoje não consigo  estar seguro. Quero ter as minhas coisas. 

-Está insatisfeito com você mesmo.

- Sou um cara legal e, ainda assim, não consigo cuidar de mim.

- Se sente sozinho, sem alguém que goste de você...

- Também, mas assim nem tenho condição de ter alguém. Olha a minha roupa...

- Acha que as pessoas dão importância só para a sua aparência...

- Não é isso. Mas, querendo ou não, isso pesa...

- Você não se sente uma pessoa atraente...

- É isso, professora. As garotas me tratam bem, mas fica só nisso. 

- Gostaria de ser diferente do que se sente hoje...

- Ah, sim. 

Ruth olha para ele querendo falar um monte de coisas sobre o que realmente a mulheres pensam sobre os homens, mas se contém. Pensou: “Essa é uma descoberta que ele tem que fazer por si mesmo”. 

- Acha que suas qualidades não são qualidades de verdade...  

Renato vira os olhos para cima e depois tenta olhar rapidamente para Ruth. Abaixa e levanta a cabeças duas ou três vezes. Fica pensando se deve ou não responder e continuar falando sobre si. Está com os olhos úmidos. 

- Você tem questionado se vale a pena ser alguém legal e acha que isso é ruim e te impede ter um relacionamento com alguém. 

- Eu não sou assim um modelo de beleza né...

- Não sei o que dizer, Renato. Isso é tão contraditório. Engana muito esse negócio de aparência.  Mas é um sentimento seu. E você não está conseguindo lidar bem com isso. 

- Então estou errado. 

- Nem certo nem errado. Está confuso e inseguro. 

- Verdade. Estou confuso. É isso que tem me deixado angustiado...

Ruth teve vontade de falar coisas animadoras para Renato. Mas se conteve novamente. Percebeu que já tinha provocado algumas reflexões e descobertas que precisavam amadurecer naturalmente nele. 

Ficaram em silêncio por alguns instantes até que, por impulso, Renato passa os dedos nos olhos e rapidamente enxuga no moletom. Olha para Ruth e sorri. Está triste, porém não está mais angustiado. 

Parece que a tristeza funciona também como um banho para limpar a alma. O choro, ainda que contido, foi um sinal de confiança na professora e também alívio. Ruth também sorriu e disse a ele que o mais importante de tudo é a chance de conversar e compreender o que se passa dentro de nós. 

- Você se sente fraco, Renato.

- Não professora. Não acho que eu seja fraco. Sou emotivo. Emocionado!!! (risos). Isso não é defeito né...

- Tenho certeza que não.  Na verdade, podemos ser fortes, mesmo aparentando ser francos. 

Na medida que a noite avança, o frio e a chuva aumentam. Dá para ouvir o barulho dos pingos sobre a cobertura de alumínio do pátio. Ruth puxa outro assunto e isso deixa Renato mais solto e alegre. Renato vai até a porta ao notar o movimento de alunos no pátio. No balcão da cozinha já tem uma fila à espera da merenda. Ruth libera-o para sair dizendo que vai fechar a sala. É a hora do intervalo.

 

 *


7

Dona Antônia tem visita

 

No último mês do semestre  a frequência  de alunos começa diminuir. . É sempre assim na última semana de junho e de novembro. Tem dias que é preciso juntar os alunos numa sala só. Então surge um novo horário improvisado no qual os professores vão se sucedendo até a última aula. As salas de sextos e sétimos anos querem brincadeira e diversão, mas alguns professores, impacientes com essa situação, preferem dar aulas de revisão. Outros passam filmes e outros apenas conversam e contam histórias.

Paulo entra na sala, senta-se e logo convida os alunos para juntar suas cadeiras em torno da sua mesa, no que é atendido rapidamente. Os alunos já sabem que que “ficarão de boa” nessa aula. O professor faz as perguntas de rotina sobre como estão e sobre os alunos que desapareceram da escola. Não são apenas os alunos que desaparecem, alguns professores também somem sem deixar rastros. Aparecem, cobrem algumas aulas de colegas que estão em licença e “nunca mais dão as caras”. Disso surgem as lembranças mais interessantes dos “desaparecidos”, suas aparições e aparências, características, reações inesperadas, confusões graves e outras somente engraçadas. “Do nada”, Paulo lembra-se de uma aluna que teve quando dava aula para uma turma de adultos. E conta o que aconteceu: 

"Ela ficava semanas sem vir para escola e sempre justificava as faltas com explicações muito estranhas. Quando ela voltava a sala já ficava curiosa para  ouvir  suas histórias do tipo “nem te conto”.   Dessa vez parece que a coisa foi grave. Parecia estar muito desconfiada, inquieta, sempre olhando para a porta e para as janelas. Como ninguém tinha coragem de perguntar o que tinha acontecido, Paulo tomava a iniciativa. Enquanto colocava a lição na lousa, ia se inteirando da vida dos alunos. Eles já sabiam qual era a intenção do professor e respondiam rapidamente para que chegasse logo a vez que todos esperavam.

- Então, Dona Antônia. Finalmente a senhora voltou heim. Está tudo bem, tudo paz?  O que aconteceu dessa vez?

- Tudo bem, professor. Graças a Deus. Nem te conto...

Era o momento mais aguardo da noite. A classe inteira parava por alguns segundos  e, fingindo olhar para a lousa, abriam os olhos e os ouvidos, dependendo do lugar onde estavam.

- Professor, eu tenho o costume de rezar antes de deitar. Mas às vezes eu esqueço. E sempre que esqueço, pode contar, sempre acontece alguma coisa ruim. Mas eu não aprendo. Quando lembro, já deitei... Da última vez, nem gosto de lembrar, já deitada, levantei para apagar a luz do banheiro. Na volta, não sei o que deu mim, fui olhar embaixo da cama. E sabe o que aconteceu, professor? 

- Não , Dona Antônia...

- Tomei um tapa no meio da cara!!!!

- Eita!!!, exclamou alguém no fundo da classe seguido por reações de espanto e gargalhadas.

- Seis tão rindo né, porque não foi com vocês. 

Paulo lembrou que ficou estático olhando para Dona Antônia, segurando pra não rir.

- Dona Antônia do Céu...  Quem foi que deu essa tapa na senhora? 

- Não sei professor. 

- Coisa do Demônio...

- Ricardão. 

- Gente, foi surpresa do Dia dos Namorados...

 

Paulo  lembra que encerrou as anotações na lousa, para conter os comentários mais provocantes, tentando dar uma de curiosidade paranormal.

- Mas a senhora mora sozinha né Dona Antônia. Teve algum pressentimento ruim? 

- Tive sim professor, quando fui apagar a luz já tive a impressão que não estava sozinha e já fiquei com um pé atrás... Sentei na cama, recolhi os pés, mas não me contive e fui olhar... Foi um tabefe tão  forte que quase desmaiei. 

Nesse instante as gargalhadas foram diminuindo até que o silêncio tomou conta da sala. 

-  A intuição da gente nunca falha – disse Paulo- é só prestar atenção. Mas a gente nunca lembra de colocar em prática.

- Não sei o que me deu naquela hora. Fiquei encolhida na cama até passar um pouco a dor e depois tomei coragem. Levantei e fui acender a luz do quarto. Acendi todas as luzes. Voltei pro quarto e fui direto pra a cama. Ergui o colchão. Não tinha nada. Mas quando fiz isso, escutei bater o portão do corredor. Bateu bem forte. Corri na janela, sem medo; e só consegui ver que o portão continuava aberto. 

- Pode ter sido um gato... disse um dos colegas de classe. 

- Foi não. Gato não tem como bater o portão com aquela força. Pra mim era alguma coisa que não é desse mundo e estava com muita raiva. 

A culpa foi minha. Não rezei aquela noite...  

- Alguém aqui reza antes de dormir? Perguntou Paulo aos alunos que estavam ao redor da mesa. Quase todos levantaram a mão. Mas todos disseram sim balançando as cabeças. 

O assunto agora era saber do que tinham mais medo. Todos tinham medos comuns, medos incontroláveis e até inconfessáveis, daquele do tipo “não gosto nem de lembrar”. Paulo encerou a conversa lembrando que tinha medo de defunto. Quando era criança, vivia frequentando velórios, até de gente quem nem conhecia. Depois não conseguia dormir, lembrando do rosto desses mortos. Mais histórias, lembranças e soluções para driblar os medos. Até que surge a última solução antes de acabar a aula:

- Eu corro e vou dormir com a minha mãe... KKK   

 

*


8

Rita não tem medo

 

Destemida, elétrica, impaciente. Essa é a Ritinha, que seu antigo professor do sexto ano chama de “Fininha”. Faz todas as lições rapidamente para ficar observando e provocando os colegas, querendo chamar a atenção.  Está no terceiro ano do ensino médio. 

“Continua do mesmo jeito”, lembra o professor Heitor. É um dos que adora contar história sobre fantasmas. Sua história preferida é o estranho caso de Clotilde, que finaliza com um grito de susto e pegar os alunos distraídos. Todos gritavam assustados no final dessa história, menos Ritinha. Ela ria, ria, ria tanto que o professor precisa gritar para ela parar de rir. Ela obedecia, mas ficava soluçando, para que o professor a deixasse sair da sala pra tomar água e dar uma volta na escola. 

A primeira vez que  ouviu a história de Clotilde Ritinha ficou triste. Não teve medo, apesar do tom dramático dado pelo professor:

“Clotilde, sempre que podia, ia ao cemitério visitar a sepultura do pai. Tinha morrido quando ainda era bebê. Conheci-o somente por uma fotografia de documento (3X4), já amarelada, que achou no lixo quando mudaram e foram morar, ela e a mãe, nessa casa onde vivem hoje. Escondia a foto da mãe. 

Sempre que podia também, conseguia ir ao cemitério visitar a sepultura do pai. Cemitério daqueles antigos. Ia sempre escondida e sozinha porque nenhuma amiga tinha coragem de ir com ela. 

Certa vez, já quase na hora de fechar os portões, Clotilde decidiu entrar para uma visita rápida. 

Já do lado da sepultura, fica olhando para ver se os portões ainda estavam abertos. Era época de frio e já estava escurecendo. Quis colocar a foto antiga do pai embaixo da placa do túmulo. Olhou novamente para os portões e ao voltar-se deparou-se com o pai em pé e encostado numa cruz de pedra da sepultura vizinha. 

Assustada, Clotilde ficou estática e muda. O pai se aproxima e arranha o rosto dela, deixando uma pequena marca de corte. 

E avisa: “Se você contar para a sua mãe e vou te buscar hoje”!!! 

Clotilde olha novamente para os portões e vê que estão sendo fechados por um funcionário. Corre, sem olhar para trás e consegue, aliviada, chegar antes que a corrente juntasse as duas partes do grande portão de ferro fossem travadas por um cadeado. O funcionário não estranhou. Já Conhecia Clotilde e torcia para que ela não voltasse à tempo. 

Chegando em casa, encontrou um bilhete sobre a mesa da cozinha. Era de sua mãe dizendo que tinha ido ao mercado comprar um lanche e avisava que estaria de plantão no hospital, cobrindo a falta de uma colega, também enfermeira. Clotilde foi lendo bilhete enquanto acendia as luzes da casa. Tomou banho e procurou esconder o arranhão secando bem o rosto com pó de arroz. Não teve jeito. Ao voltar do mercado mãe percebeu que estava nervosa e fez a pergunta que ela tanto temia:  

“Quem fez isso no seu rosto”? 

Sem deixar  que ela respondesse, a mãe desvendou o mistério: 

‘Foi seu pai né.. Eu sabia... lembra que eu te avisei pra você não ir lá’???  

‘Preciso ir para o hospital, já tô atrasada’, disse a mãe. 

O coração de Clotilde começou a sinalizar o perigo de ficar sozinha. Nunca tinha tido medo e agora já estava tremendo antes que a mãe saísse”.

 

Rita também estava atenta à história que Heitor contava e esperou calmamente até que professor surpreendesse os colegas, depois de descrever, em voz baixa, como o defunto saiu do cemitério... veio andando pelas rua escuras... abriu o portão... a porta da sala... e finalmente entrou no quarto e gritou : “CLOTILDE!!! 

A gritaria de susto seguidas das gargalhadas dos colegas  foram intensas e demorou alguns minutos até que voltassem ao normal. Heitor tinha triunfado no seu plano de, mais uma vez, assustar seus alunos. Rita até teve um pouquinho de medo e também gritou, mas foi apenas por farra. O professor percebeu essa reação dela e ficou olhando-a intrigado.

Vendo que tinha sido descoberta, Rita resolveu falar:

- Professor, eu já vi uma pessoa morta. 

- Morta de verdade?  Reagiu Heitor.

- Morta de verdade... Foi minha tia. Ela apareceu pra mim no corredor da minha casa, já era bem tarde... Estava com o vestido todo ensanguentado. E pediu pra eu avisar a minha mãe. 

Heitor e todos ali ficaram quase em choque. 

E Rita explicou como tudo aconteceu:

- Não sei o que deu em mim, levantei do sofá e fui até o corredor. Ela já estava lá me esperando e pediu ajuda. Ela foi assassinada, professor. E foi naquela mesma hora que ela apareceu pra mim. Fiquei muda. Não senti medo. Senti pena dela. Muita pena e vontade de chorar. Quando voltei para a sala, minha mãe também estava chorando, sem entender o motivo. Disse que  estava com um aperto no coração... Então contei pra ela o que eu tinha visto.

   

*


Alice no País das Grávidas

 

Alice teve um sonho muito estranho, esquisito. Aconteceu durante uma festa, quando ela se afastou de todos e começou a buscar algumas coisas que ela não sabia exatamente o que era, mas que se sentia atraída. Ela estava sendo observada por um coelho enorme. De repente, Alice está sob uma grande árvore e diante de uma toca, buraco na qual ela cai e penetra num um do completamente diferente da realidade que ela vivia. Alice entrou no País das Maravilhas, composto por coisas estranhas, regido por leis naturais desconhecidas e habitado por seres esquisitos, uns humanos, outros não. Terminada a sua aventura sonambúlica, Alice despertou modificada, pronta para tomar as decisões mais importantes de sua vida. Voltou para a festa e foi conversar com um empreendedor sobre explorações e negócios. Alice estava pronta para viver outra realidade que ela desconhecia e o empresário com quem ela foi conversar era ninguém menos que o pai do homem com quem ela ia se casar. Ele percebeu que Alice seria melhor como sócia do que como nora. Alice percebeu que poderia ser livre, não ficando presa a um casamento, para poder viajar e explorar outros mundos,  ganhar muito dinheiro e realizar-se. Isso significa que os sonhos nem sempre são acontecimentos imaginados durante o sono. Eles são muito mais vivos e reais do que a gente imagina. 

Voltemos ao sonho de Alice, da Professora Alice. 

Conta ela que estava num lugar completamente desconhecido e diferente.  Era uma escola que ela conhecia, mas não se lembrava de onde. A escola não tinha alunos. Só professores. Ela caminhava rapidamente para reconhecer os espaços e não conseguia estabelecer uma lógica geográfica de onde estava e para onde ia. Antes de entrar naquele prédio, tinha passado por lugares que parecia ser uma cidade, mas que não era uma cidade comum. Não conhecia os caminhos, as ruas, os lugares, mas conseguiu chegar onde pretendia, que era essa escola. Não era um lugar bonito. Era uma escola antiga, com traços modernos, dos anos 70-80, com cores fortes, azul e amarelo. Estava apressada porque sabia que não ficaria ali por muito tempo. Ou seja, sabia que poderia ser acordada a qualquer momento.   Na medida que ia explorando a escola e seus compartimentos, encontrava outros professores e parava para observar o que eles faziam ali.  Encontrou vários deles, cada um com características próprias, de aparência e comportamento. Todos conversando entre si e falando sobre suas vidas, seus projetos, suas dificuldades, enfim, pessoas comuns como ela. Chamou sua atenção a conversa entre dois professores.  Um estava em pé e o outro sentado, próximo a uma enorme mesa de reuniões. Conversavam sobre números e valores. O que estava sentado era magro, franzino, usando um camisa xadrez, azul e branco, de mangas compridas. Ele explicava ao colega os cálculos que tinha feito sobre o tempo no qual tinha trabalhado, detalhando os segundos, minutos e horas e seus respectivos valores financeiros. O outro escutava atentamente e, além de concordar, acrescentava dados que poderiam ampliar a tese que estava sendo exposta em várias folhas de papel. Este que estava em pé era grandalhão, ruivo, com cabelo e barba grandes. Cruzava e descruzava os braços enquanto ouvia a explanação do colega. Interessante que eles não perceberam a presença de Alice. Ou então ignoraram. 

Havia uma grande movimentação na escola, mas Alice só conseguiu prestar atenção em duas situações: nessa que acabou de descrever e noutra  que lhe pareceu muito mais estranha. 

No canto de outra  sala na qual entrou, estava uma professora com um bebê no colo. Parecia estar muito incomodada por estar ali, mas não podia sair.  Ao perceber a presença de Alice, olhou com certa hostilidade, mas logo lembrou que precisava ser cortês e mudou rapidamente sua fisionomia com um sorriso. Alice não conseguiu ver o rosto do bebê, porém prestou muita atenção no rosto da professora, que deveria ser a mãe. Mulher branca, de cabelos castanho-claros, crespos e volumosos. Roupas estravagantes, coloridas, de estilo hippie. Nesse instante passam por perto duas pessoas, que pareciam ser os responsáveis pelo local. Uma delas descrevia cada uma das pessoas que estavam visitando a escola e a outra ouvia enquanto ia tecendo alguns comentários sobre o que deveria ser feito para aproveitar a presença de todos naquele lugar. 

- Esta é a professora da qual lhe falei, disse a mulher que fazia as descrições. 

- Ah, sim, é a professora que planta pés-de-banana no fundo da escola...

- Ela mesma...

Ouvindo isso, Alice percebeu que a mesa estava repleta de pedaços de fibras do caule e das folhas de bananeiras; e alguns objetos inacabados, todos feitos com esse material.   Alice, que parecia estar ansiosa e  completamente deslocada naquela lugar, foi ignorada pelas duas mulheres, que continuaram seu percurso de identificação. Ao voltar os olhos para a mesa, Alice percebeu que a mulher de aparência hippie não estava mais ali. Os objetos eram outros, completamente diferentes. Ali estava agora uma mulher negra, alegre, com um vestido de listras coloridas. Era bem gorda e seu bebê era idêntico a ela, uma menina, mas que, mesmo bebê, já conversava como se fosse adulta. Comia um biscoito e falava com a boca cheia. Mãe repreendeu a filha, mas não encontrava a palavra e a expressão que definia aquela situação. Alice disse, então: “É feio comer assim, de boca aberta”. A mãe discordou dizendo que não era para dizer essa palavra e que não gostou dessa fala. Percebendo a decepção da Alice, a menina colocou mais um biscoito na boca e, virando o rosto para a mãe,  revidou: “´É feio sim”!!! E deu uma gargalhada, tão gostosa que a mãe não resistiu e riram as duas.  

Alice ficou meio confusa e logo se viu num outro lugar. 

Estava dentro um carro em movimento e que parou  ao ver um amigo descendo de outro carro e entrando num edifício de muitos andares. O prédio era tão alto que ela só conseguiu descrever a altura lembrando do prédio mais alto que existia em sua cidade. O amigo estava vestido como se fosse um executivo.  Tinha cabelos escuros, os mesmos de quando o conheceu quando eram jovens. Hoje ele tem cabelos brancos. Subindo a escadaria de acesso ao prédio, ela percebeu que o amigo estava com um quipá sobre a cabeça e que segurava uma maleta em das mãos. Ele olhou para cima e, antes de entrar no prédio, tirou o quipá e guardou na mala. Alice viu essa cena e foi embora. Foi quando acordou.   

Ao acordar, Alice tenta recompor a memória de algo que aperta o seu coração. Fecha os olhos e tenta lembrar para onde foram as duas mulheres que passaram por ela e a reconheceram. Dorme novamente. Em poucos segundos seu corpo está dormente e se vê indo atrás delas quando se depara com um grande quintal, cheio de bananeiras, muito altas e com cachos roxos. Elas passam por esse bananal e Alice as segue, observando que o dia vai se tornando noite. Alice olha para o céu e vê a Lua, que está esplendidamente alaranjada. E segue os passos das duas mulheres em direção desconhecida. Não está com medo e sim muito curiosa. Olha para o chão e vê que o solo, como muitas folhas secas, está iluminado. Ouve um vozerio de crianças e também de gente adulta que logo cessa num profundo silêncio. Alice tem à sua frente dois prédios redondos, em forma de tendas, cobertos com folhas secas de bananeiras. As paredes são brancas e têm janelas grandes, abertas, sem nada que impeça a visão de quem está de fora. Aproxima-se da tenda à esquerda e debruça sobre uma das janelas.  É um grande salão redondo. Não tem nenhum tipo lustres ou lâmpadas em nenhuma parte. A luz é difusa e varia constantemente. Alice fica intrigada e logo percebe que a luz daquele ambiente sai das pessoas que ali estão, umas menos e outras mais iluminadas. Elas estão sentadas, em círculo, em cadeiras simples, que parecem feitas de madeira, mas não são. Uma das duas mulheres que Alice seguiu está no centro dessa roda, em pé. Nesse salão só tem mulheres. A maioria delas têm aparência de meninas entre 13 e 15 anos.  Todas  estão grávidas. Isso causa uma impressão muito forte em Alice. Umas estão alegres, felizes e outras nem tanto. Algumas parecem preocupadas e algumas estão visivelmente contrariadas. Em cada uma delas destaca-se um cordão luminoso, prateado, quase imperceptível e que se projetam pelas janelas. Os cordões também estão onde Alice está debruçada. A mulher em pé está dizendo algumas palavras e olha para o alto. Alice acompanha esse gesto e vê que o salão está a céu aberto, pulverizado de estrelas. Em seguida a mulher aponta para a Lua e repete algumas palavras. Nesse instante ela fecha os olhos e ajoelha-se no centro do círculo. Está chorando parecendo recordar algum episódio marcante da sua vida, ocorrido num passado muito remoto.  Algumas meninas grávidas imitam aquela que parecer ser uma instrutora especial e ficam de joelhos, enquanto outras, confusas, permanecem nas cadeiras olhando para o alto  tentando enxergar algo que para elas parecia estar distante; porém, fecham os olhos em sinal de respeito. As últimas palavras da mulher emitem um som forte e ao mesmo tempo delicado e cheio de ternura. “Aos pés de Maria”.  Alice nota que os cordões se tornam mais visíveis e vibram de tal forma que espalham pedaços de luzes, como se fossem pétalas de rosas, que caem sobre as grávidas e depois apagam ao atingir o chão. Algumas meninas, rindo como crianças,  levantam das cadeiras e tentam pegar essas fagulhas que se movimentam no ar  tentando tocá-las  ou de tê-las entre as mãos. 

Alice está muito incomodada e cada vez mais curiosa. O prédio à direita também está inquieto e ela constata que os cordões luminosos estão em todas janelas, de onde se ouvia  diferentes conversas. Alice corre para ver o que acontece no outro salão e fica ainda mais impressionada ao ver que os cordões são umbilicais e estão presos em cada um dos que ali estão. 

Diferente do salão onde estavam as meninas, neste as cadeiras estão ordenadas em fileiras. A intensidade da luz é menor. A instrutora está em frente à uma grande tela que flutua no ar, como se fosse uma cortina transparente. Ela está de olhos bem abertos e ali projeta de si imagens enquanto fala pausadamente.  Conhece todos e chama cada um deles pelos nomes. Alguns estranham e reagem quando alguns desse nomes são pronunciados, enquanto outros riem lembrando que os nomes pelos quais foram chamados também soaram estranho em seus ouvidos. “Sou eu” ?, “Sou eu” ?, pergunta os que se sentiam deslocados do grupo que ali estava. “Sim, são vocês”!!! responde a instrutora, apontando o dedo para o outro salão.  “Esqueceram”?   Os cordões ligados à eles se agitavam quando  ouvia-se nitidamente as meninas gritarem nomes que elas haviam escolhido para os seus bebês. Esses gritos de chamamento ressoavam nos ouvidos de todos e causava uma agitação silenciosa em todas as fileiras. 

Alice voltou rapidamente ao primeiro salão e encontrou apenas uma menina conversando com a mulher  que havia apontado para o céu. Esta encerrou a conversa dizendo: “Agora vai, termine sua noite de sono. Não se preocupe. Vai dar tudo certo. E não esqueça da sua Lua”. 

Alice volta o ao salão que ainda está agitado. Ela agora está de mãos dadas com a mulher que dispensou a última menina, que tira uma dúvida incômoda naquele momento:

“Todas aquelas meninas são como você. Vieram aqui durante o sono. Pensam que estão sonhando. Você não está grávida, está” ?  “Não”!!! responde Alice, rindo. “Não tenho mais idade para isso”. 

Enquanto penetram no salão, ela e Alice vão percorrendo os espaços entre a fileiras, sem que fossem percebidas pelos que ali estavam. Alice não conseguia distinguir se eram homens ou mulheres. Eram fisionomias diferentes, bem acentuadas em suas características particulares, umas bem jovens, outras bem maduras  e ainda outras no meio termo. Usavam roupas de diferentes épocas, mas reconhecidamente da moda das últimas três décadas. Algumas tinham manchas nas roupas, sinais de ferimentos e pareciam perturbadas. Foram vítimas de abortos. Outras pareciam calmas e davam sinais constantes de alegria. Outras ainda demonstravam dúvida, apreensão, revelando sentimento de culpa. Alice olha para a mulher que segurava sua mão, aguardando uma resposta diante do que acabara de ver. “Isso não novidade para você. Já passou por isso várias vezes; apenas não se lembra. Muitos desses já renasceram, mas ainda estão dormindo aquele sono que os impede de cair em si. Logo entrarão num sono ainda mais profundo e só vão acordar quando enfrentarem as primeiras provas da vida. Outros só vão acordar quando aquelas meninas que você viu derem à luz. Esses ainda estão dormindo no ventre delas”.  

Alice abriu os olhos e viu que estava em seu quarto. Era uma manhã de sábado. Acordou com a lembrança do rosto da mulher com quem conversou por último. Tinha um nome na cabeça: Maura. Da outra mulher, que orou ajoelhada, não conseguia lembrar do rosto nem do nome. Mas nunca vai esquecer uma cena que lhe causou um choque íntimo e que não teve  a coragem de perguntar para Maura. Quando fixou seus olhos nos rostos daquelas pessoas que inicialmente não sabia definir se eram meninos ou meninas, viu em algumas delas os rostos dos seus alunos, de várias turmas. Achou que era apenas uma associação mental. Mas não, era real. Tanto não era que sentiu um aperto no peito e vontade de chorar. E esta não era uma sensação ruim. Era um sentimento de afeto e que dava significado para as coisas que não compreendia e sentido para sua vida.   

*


10

Gil no mundo da Lua

 

O pequeno portão da escola, que fica no meio do portão maior, já está aberto.  Duas funcionárias aguardam o sinal da última aula do período da tarde. São 18:20. Já está escuro e isso aumenta o anseio dos alunos para sair rapidamente da escola. Logo forma-se uma aglomeração no corredor de saída, apesar de ser largo e comprido. Essa saída restrita e controlada é para evitar a presença de estranhos na troca de períodos. Os alunos com bicicletas aguardam para sair por último. Os professores  geralmente esperam os alunos se dispersarem até que o portão maior possa ser aberto para a passagem de automóveis. Outros professores saem com os alunos. É o caso de Gil, que anda apressado até o ponto de ônibus. Nesse percurso de duas quadras ele sempre observa a caminhada festiva dos alunos, em pequenos grupos e também dos que estão sozinhos. 

 “Até amanhã, Professor Gil”!!!, gritam os alunos que o reconhecem e ele acena com a mão devolvendo a gentileza: “Até amanhã”!!!

 Hoje, excepcionalmente, recebeu muitas despedidas, certamente porque ficou olhando bastante tempo na direção deles. Mas não era para eles que Gil estava olhando. Logo que saiu da escola ele olhou para o céu é viu a Lua em formato crescente. Abaixo dela  estava, bem reluzente, a estrela, que na verdade é o planeta Vênus. 

Em meio às despedidas e acenos, ele não resiste e aponta para céu, gritando para os alunos: “ Olhem a Lua e logo abaixo o planeta Vênus”. 

De onde estavam não era possível ver o céu, mas alguns alunos viram quando estavam saindo da escola e responderam confirmando a observação do professor, embora não se mostrassem tão impressionados quanto ele. 

No ponto de ônibus,  Gil teve mais tempo para apreciar o céu  e pôde contemplar com mais calma, embora sua visão e tranquilidade fosse ofuscada pelas luzes dos postes e pelo barulho dos carros. Assim que entrou no ônibus escolheu um lugar para sentar e ali ficou pensando no motivo da sua atração pela Lua e suas impressão com a visão de Vênus próxima a ela. “Será que alguém que está no ônibus  viu o que eu vi”?  Será que alguém está comentando algo sobre isso. Embora o ônibus não estivesse cheio, pois trafegava no contrafluxo do trânsito, Gilberto não conseguiu identificar esse assunto em nenhuma das muitas conversas que aconteciam entre os passageiros. Fechou os olhos para selecionar o teor das falas, mas não ouviu nada sobre a Lua. Tentou olhar pela janela, mas logo percebeu que a Lua e Vênus não estavam visíveis naquela perspectiva. Desistiu desse pensamento e voltou os olhos para a paisagem repetitiva que via pela janela até que chegasse no seu ponto de desembarque. Antes disso, o ônibus foi se esvaziando na medida que se aproximava do centro da cidade até tomar o rumo da  orla, onde tinha seu ponto final. Gil desceu antes. Também queria chegar em casa o mais rápido possível. Não havia motivo para essa pressa. Na rápida caminhada até sua casa tentou novamente ver o céu e não conseguiu, impedido pelos edifícios. Talvez se fosse até a praia... 

Desistiu da ideia. Estava com fome. Tinha algo para fazer, mas não se lembrava exatamente o que era. Fez algumas incursões pela internet e ali começou a bocejar, apesar não passar das 20 horas. Instantes depois foi tomando por um sono incontrolável. Já deitado no sofá, não conseguiu ouvir até o fim a música que tinha selecionado no Youtube. Apagou. Dormiu pouco menos de uma hora. Foi um sono profundo, embalado pela harpa de Lavínia Meijer. Quando acordou ainda estava sonolento. Teve dificuldade para lembrar o sonho que tivera. A última cena que ficou gravada em sua mente foi uma viagem de lancha por uma canal marítimo, cuja água parecia um espelho luminoso, apesar da escuridão noturna. Procurou a Lua em vão. Ela não estava no céu. Mas Vênus estava lá, enorme e dez vezes mais brilhante que a Lua. Em seguida, já estava numa grande avenida que ia dar em uma praça gigantesca na qual se via altas cúpulas de vidro.  Dentro delas haviam muitos compartimentos, todos transparentes e ornamentados por uma vegetação abundante. Enquanto caminhava parecia estar acompanhado, porém não conseguia ver com quem caminhava. Entre essas cúpulas circulavam trens que flutuavam sobre trilhos que pareciam fios metálicos. Também flutuantes. Se movimentavam  em várias direções e desapareciam na escuridão, mantendo sua forte luminosidade. Das cúpulas de vidro emergiam uma luz verde azulada, em formato de vertical ondulado, lembrando a aurora boreal. Olhando na direção oposta essas mesmas  luzes tinham a cor roxa. 

O acompanhante de Gil, embora invisível para ele e sem usar emitir nenhum som, revelava pensamentos que recomendavam que ele não fixasse os olhos para as luzes roxas, para evitar impressões e energias negativas.  Estavam agora em frente e muito próximos de uma tela altíssima, de material vibrante impedindo que avançassem. Os fios vibravam e emitiam luzes ao captar a presença deles. Com essa claridade emitida pela cerca, Gil conseguiu ver o seu acompanhante, sem nenhuma reação de espanto. 

- Onde estamos? 

- Na Lua. 

- Na Lua? Então estou sonhando.

- Não está sonhando. É por isso que só enxerga Vênus. 

- E a Terra?

- Está do outro lado da Lua. Estamos na fronteira do lado escuro. Daqui para frente a entrada é proibida. 

- Proibida?

- Sim, só entra que está autorizado. 

- Você tem autorização?

- Ainda não. Estou em treinamento de Choque Anímico.

- O que é isso?

- São cargas magnéticas para suportar vibrações pesadas.

- O que tem naquela direção das luzes roxas.

- As prisões. 

- Quem está preso lá?

- Os opressores. Os que desviam e escravizam consciências. 

- De onde eles vieram. 

- Da Terra, em sua maioria. 

- Eles sofrem ali. 

- Sim, muito. Só se acalmam e descansam quando absorvem as vibrações de piedade de quem ora por eles.  

- E por que continuam sofrendo?

- Culpa. Ainda alimentam ódio e vinganças. 

- O que acontece se entrarmos lá?

- Seríamos envolvidos por vibrações que nos deixariam completamente perturbados e ficaríamos submissos, sem poder de vontade. 

- Como isso acontece?

- Pelas nossas fraquezas e inclinações. 

- Qual delas é pior para nós?

- O medo.

-  Como assim?

- O medo desorganiza todo o nosso sistema de defesa e proteção e nos expõe como presas diante dos predadores. 

- É possível controlar o medo? 

- Sim.

- Como?

- Treinando.  Este é um jogo de dominação e submissão no qual não se pode demonstrar fraqueza diante do adversário ou da situação ameaçadora, mesmo estando em desvantagem. Essa resistência provoca irritação e desconforto em nós e também em quem está se opondo à nós, porém faz o inimigo recuar, embora não se sinta derrotado. 

- Como se treina para ter coragem? 

- Enfrentamento e ao mesmo tempo agindo com cautela se for necessário recuar. Os inimigos também agem assim.

- O Choque Anímico não protege?

- Sim, mas o controle de sentimentos e  das emoções é o que nos governa. O choque é uma proteção externa. 

- Todos aqui tomam Choque Anímico?

- Alguns não precisam mais. Possuem forças próprias, adquiridas com o tempo. Mas todos estudam a si mesmos, identificando os sentimentos e as emoções mais vulneráveis.

- E o pensamento?

- O pensamento é raciocínio, não revela nossas fraquezas nem as forças. Os sentimentos, sim. Não mentem.  

- Como conseguiram, apenas treinando?

- Orando e vigiando. Orar é treinar esvaziando o frio que se instala no ventre. Vigiar é cuidar para que o frio não retorne. Quando o frio diminui, o coração se aquece e altera a pressão e o calor sanguíneo. 

Assim mantemos o equilíbrio.  

- O que me trouxe aqui?

- Seu pensamento e sua vontade, influenciada pela impressão que teve ao ver a Lua e Vênus.

- Podemos conhecer Vênus?

- Sim. Se a sua impressão ao vê-lo for suficiente. 

- Pode me levar?

- Posso, mas ficaria sonolento e confuso.

- E se eu for sozinho?

- Sozinho você nunca vai estar. Mas é preciso estar se sentindo atraído.

Nesse instante Gil abre os olhos, acordado pelo barulho vindo da rua. Seus olhos procuram o teto e as paredes tentando se situar. Isso vai levar apenas alguns segundos. Como despertou bastante impressionado, vai lembrar de quase tudo que viu. E pensou: 

“Isso não foi um sonho. Não pode ser apenas um sonho...”  

 

 

11

Júlio e o Arco Íris

 

Júlio chega na escola às 6:30. Sai de casa meia hora antes. Apesar da distância de 15 quilômetros percorridos de carro, consegue chegar a tempo. 

De manhã, tudo acontece muito rápido. São apenas quatro classes e o mesmo número de professores dão conta do período, frequentado por adolescentes do ensino médio.  Júlio, Celeste e Catarina dirigem a escola e se revezam nos três períodos e contam com a secretaria Joana, que reside perto da escola e trabalha na secretaria. O período da tarde é o mais agitado e barulhento.  São crianças que ainda seguem uma tradição de começar as atividades com uma oração coletiva e rápida no pátio antes de irem para suas salas. Nem precisa dar voz de comando. Basta o olhar de um do professor em uma das quatro filas e alguém puxa em voz alta a declamação, logo seguido por todos:

 “Boa tarde Jesus querido, as aulas já vão começar...” concluída com pedidos e agradecimentos. 

Nem todos chegam a tempo e, vendo o portão de entrada fechado e o pátio vazio, comentam entre si: “Nossa, já foi o Boa tarde Jesus querido...E agora”? Ficam aguardando até que alguém da direção venha abrir o portão. Explicados os atrasos, cada um vai para sua classe com a recomendação de pedir licença ao professor. 

No fundo da escola passa uma rodovia,  e logo depois dela avista-se um morro bem alto, pedaço da Serra do Mar e da Mata Atlântica.  Em cada época do ano o morro tem, dependendo dos horários, uma aparência diferente. O mais comum são os contornos de neblina no seu topo, dando a impressão que ali começa o céu.  Em dias de chuva, a mata realça a sua cor verde e , quando a luz do sol penetra entre as nuvens tentando dispersá-las, forma-se um imenso arco-íris, geralmente no meio da manhã ou então no meio da tarde. Um espetáculo sempre contornado pelo cheiro de barro, de vegetação molhada e também da maresia, pois, no lado oposto à serra, bem perto, está o Oceano Atlântico. Quando acontece esse fenômeno, Júlio vai rapidamente até  a cerca da escola e ali permanece deslumbrado até que a natureza encerre essa rara sinfonia de luzes, cores , cheiros e aromas. 

Entre o final das tardes e início das noites, o silencia toma conta de todo o entorno. Não se ouve  barulho de carros na estrada, muito menos nas ruas, que estão sempre vazias. Nesse intervalo de períodos, Júlio está sozinho no prédio da administração. Até a merendeira dá uma fugidinha até sua casa, depois de preparar a refeição da turma da noite. Algumas vezes, mesmo concentrado nos seus afazeres, Júlio é interrompido por um zumbido em um dos ouvidos., seguindo de ligeiras perturbações de no pensamento e também no batimento cardíaco. Não sente medo nem desconforto físico algum. Tem também alguns tremores no rosto. Em alguns casos, tem sensação de tristeza. Em outros fica com vontade de chorar, mas sem estar triste. É uma emoção difícil de entender e também de explicar. Quando isso acontece percebe que não sozinho. Sai da sala de trabalho e vai até a cerca, no mesmo local de onde observa o arco-íris. Não vê ninguém, porém ouve conversas, que no começo julgava ser da vizinhança. Não era.  Instintivamente olha para o morro. Alguém grita em tom de alerta e euforia: 

“Pessoal, hora de partir. Todos de olhos bem fixos no alto do morro. Estão nos esperando. Temos que estar atento para o sinal de comando". 

Alguns segundo depois a mesma voz grita:

 “Alvorada, Alvorada Nova"!!!  

Júlio não resiste e tenta unir-se ao coro em movimento. Nesse instante seu coração se acelera e  um enorme variedade de perfumes o envolvem provando uma sensação de alegria e também de entorpecimento do corpo. Para manter o equilíbrio, Júlio esfrega seguidamente as mãos, os braços, o peito e depois a fronte . Abre os olhos, olha para o céu acima do morro e  volta para sua sala com uma incrível sensação de bem estar.  

Antes de entrar vê que alguém abriu o portão principal de entrada. É a policial da Ronda escolar, que veio assinar o livro de presença diária. 

Logo em seguida vem a merendeira, pedindo desculpa pelo atraso, pois os alunos já aguardavam o jantar servido antes da primeira aula. 

-  Aproveitei para dar uma passadinha na Casa Espiritual para ouvir a preleção da tarde”. 

Vendo a dúvida e o interesse de Júlio, ela explicou: 

- “Sim, a Casa Alvorada Nova, aqui pertinho. Inclusive, seu Júlio, a Dona Vitorinha, a dirigente da casa, pediu para eu agradecer o senhor pela ajuda que deu hoje para as almas perdidas que foram levadas para a colônia”, apontando o dedo para o morro. 

- Colônia?

- “Colônia Espiritual Alvorada Nova, professor. Cidade espiritual enorme, aqui em cima e que vai até no final de Santos. Qualquer dia levo o senhor lá”.

- Na Colônia? perguntou Júlio espantado e vendo a merendeira rir da sua confusão.

- Não, seu Júlio, na Casa Espiritual. Ainda não chegou a sua hora. Continue ajudando, viu... 

*

 

12

Paulo precisa voltar.

 

 São quase nove horas da noite. Da sua sala, Júlio escuta alguém abrir o portão e logo em seguida fechá-lo com o trinco. A escola foi construída um metro e meio acima do chão, talvez prevenindo a invasão das ondas do mar, que fica bem próximo.  São quatro lances bem largos e de meio metro cada um deles. Júlio sabe que é alguém que conhece a escola, mas não espera o anúncio de chegada. Vai até à porta de acesso ao bloco da administração e cumprimenta a visita inesperada. É o Paulo, negro, de uns trinta anos, de olhos grandes, quase calvo e  com  barba.  Júlio logo pergunta se está tudo bem. Paulo responde com um  “É, mais ou menos... Preciso conversar com o Senhor”. Ele vinha faltando nas aulas do EJA (supletivo de jovens e adultos) há mais de duas semanas. Sua aparência é de cansaço e esgotamento. O sorriso aos poucos vai se desfazendo e seu rosto dá sinais de desânimo e tristeza. Está com o uniforme de trabalho e com o crachá pendurado no pescoço. Faz instalação e manutenção de telefonia e internet. Júlio convida-o para acompanhá-lo até sua sala onde iniciam a conversa com as desculpas de Paulo pelas suas faltas.

- Não se preocupe. Isso tem como resolver sem muitos problemas. Mas, como anda a vida? Me conta, você estava trabalhando até essa hora... que barra heim..

- Nem me fala... é assim todos os dias, das 7 da manhã até à dez da noite. Só B.O. e muita reclamação, dos clientes e da empresa. Eles nunca se entendem e sempre sobra pra nós. 

- Está desanimado né...

- Muito, professor. Bastante desanimado. É um trabalho que só começa e não tem fim. As coisas não andam, não se resolvem. 

- Não faz sentido pra você...

- Eu faço por fazer, tenho minha contas pra pagar, mas sabe quando você começa a perceber que tá dando voltas e não avança, não melhora, não tem mais pra onde ir e não enxerga mais nada na sua frente?

- Imagino.

- Eu estou exatamente assim. Tento mudar, mas não consigo. É muita cobrança e não tem nenhum retorno. Daí, pra piorar, lembro que a culpa é toda minha. Não tenho como reagir porque me sinto incapaz  e derrotado. Me perguntam por que estou estudando nessa altura do campeonato. Isso me põe mais para baixo. Sei que perdi meu tempo com bobagens porque não tinha maturidade. Achei que as coisas seriam fáceis para sempre.

- Está pensando em desistir da escola...

- Da escola e de tudo.  

- Chegou no seu ponto decisivo.

- Sim, na minha travessia. Não aguento mais. Vim agradecer a ajuda de vocês, a paciência. Vocês são pessoas muito boas, querem o bem da gente, mas eu não consigo me ajudar. Fico com vergonha de estar aqui na sua frente falando tudo isso e , ainda assim, não consigo fazer nada por mim. 

- Chegar nesse limite não é fácil... É assustador né...

- Não tenho medo. Tenho raiva, de mim mesmo.

- Está decepcionado.

- Muito, com tudo e comigo principalmente.

- A escola não fez bem pra você?  Acha que pode continuar.

- Não, quero dizer, sim, fez muito bem. Vocês são maravilhosos. 

Paulo  não se contem e põe a cabeça entre os dois joelhos  e chora convulsivamente. 

- Meu Deus, que vergonha...

- Você se sente decepcionado, mas aqui ninguém está decepcionado do com você. Tudo continua igual. A única coisa que mudou é estamos mais preocupados com você. 

- É mesmo, onde eu teria chance de chorar sem ser incomodado, KKK (rindo e enxugando os olhos). Ai, meu Deus. Preciso ser mais forte (passando a mão no peito). Ah, que alívio!!!

- Quer assistir as duas últimas aulas e rever os colegas? Se não quiser, não tem problema. Vamos lá só dar um alô. Eles vão ficar contentes. Vai ajudar eles também. Gostam de você, te admiram. Sabe que é verdade. 

Paulo topou a proposta e foi até a sala cumprimentar os colegas e o professor. Finalizou dizendo que estava passando uma fase difícil, mas que voltaria para finalizar o semestre. Pediu ajuda de todos e teve muito apoio. Parecia um menino. 

Na hora de ir embora Paulo reforço a promessa feita  aos colegas. Júlio disse que respeitaria a decisão dele, qualquer que fosse. “Mas venha tomar um café, quando quiser”.

Júlio ganhou um bom aperto de mão e também um abraço. 

Paulo desceu  as rampas, abriu e fechou lentamente o portão. Acenou para Júlio e  foi embora sorrindo. 

*


13

Carlos têm a Palavra

 

Depois de muitos anos lecionando em escolas particulares, o professor Carlos resolveu seguir o exemplo de um colega. Prestou concurso para se efetivar no Estado. 1999 tinha sido um ano muito difícil. Estava desempregado. Um ano antes fez as provas e conseguiu a vaga. Levou uma lista de escolas para escolher na sessão de ingresso, mas logo constatou que não havia as vagas que pretendia. Sua salvação foi uma funcionária da Secretaria da Educação, uma senhorinha de origem japonesa, que confirmou o fim das vagas da sua lista. Mas prometeu ajudá-lo. Perguntou onde estava morando e, checando rapidamente as vagas restantes nos mapas de controle, voltou com três opções, todas segundo elas, ótimas escolas e de fácil acesso. Escolheu. E ali iniciou sua carreira na escola pública, que tanto temia e  agora tanto necessitava. Uma bênção. Aquela senhorinha era um Anjo disfarçado, só podia ser.   

Quando foi conhecer a escola, a primeira cena que o marcou e que ficou gravada na sua memória foi um retrato de um senhor barbudo, colocado sobre o guichê de atendimento da secretaria , sempre visível para  quem entra no prédio. Não era o patrono da escola e sim uma figura caridosa muito conhecida na história paulistana. Era o benfeitor Batuira, imigrante português que casou-se com uma jovem paulistana e juntos realizaram essa conhecida obra assistencial na rua Lavapés.  Algum tempo depois ele ficou sabendo que o retrato havia sido colocado por uma antiga professora já aposentada e, desde então, ninguém o retirou, talvez achando que era o patrono. Carlos achou estranho, mas não disse nada sobre o que sabia daquela personalidade e pensou consigo: "A escola está protegida". Tinha a nítida impressão que já conhecia Batuira, mas não se lembrava de onde. Será que tinha influenciado sua escolha e passagem pela escola?  Foram seis meses de permanência antes da primeira remoção, deixando vago o cargo que ocupava. A segunda foi , dois anos depois, quando saiu da Freguesia do Ó, removido para o litoral sul. 

Nesses seis primeiros meses, iniciou seu período probatório, que acabaria na segunda remoção. Ali entendeu finalmente a diferença entre ensino e educação, que só sabia em teoria.  Trabalhou nos três períodos, sempre entusiasmado,  também tomando diariamente um choque e curioso banho de realidade. O diálogo a seguir aconteceu no período da tarde, com um aluno de sexto ano. Sentava próximo à sua mesa, para poder enxergar melhor os resumos e desenhos feitos à giz feitos na lousa.  Terminado o resumo, Carlos  foi lavar as mãos no corredor e voltou para fazer as anotações no diário de classe, que aliás nunca tinha usado:    

- Professor Carlos, o senhor têm a palavra...

- É mesmo?

- O senhor é evangélico né?

- Não sou, mas tenho a minha fé.

- O senhor fala igual ao nosso pastor.

- Que legal. E como ele fala?

- Assim do seu jeito, explicando com as mãos e com a voz forte.

- Interessante.

-O meu pai quer ser pastor. Está aprendendo para pregar a palavra.

- Não é difícil. Se ele gostar do que está lendo, vai aprender bem rápido.

- Senhor já leu a Bíblia?

- Sim, na faculdade. Precisávamos entender melhor os governos de Israel, os patriarcas, juízes e reis. Então o nosso professor sugeriu que estudássemos um documento  que melhor pudesse falar sobre isso.

- Que documento?

- A Bíblia.

- Ah, sim. Não sabia que e a Bíblia é um documento.  Sei que é um livro sagrado.

- Um documento sagrado. A história dos hebreus, o povo de Deus.

- E os alunos da sua classe gostavam desse estudo da Bíblia?

- A maioria achava apenas curioso, mas não ligava para os ensinamentos. Só queria saber das intrigas, das guerras...

- Meu pai era assim, nem queria saber de Bíblia. Vivia no erro.

- É mesmo?

- E sua mãe?

- Ela acompanha ele e leva a gente na Igreja. Minhas irmãs não gostam. Mas têm que ir. Meu pai não quer que elas se percam. O senhor dá aula pra elas. São daquela classe nova, lá no fundo do corredor.

- Sei, da Aceleração. São quantas?

- São três, mais eu.  Elas não são muito parecidas. Cada uma é filha de uma mãe. O meu pai era do crime, professor. Todo mundo tinha medo dele. Ninguém tinha coragem de mexer com a gente lá na favela. Ele tinha várias mulheres. Foi minha mãe que tirou ele desse erro. Levou para a Igreja e ele gostou. Estava cansado daquela vida. Juntou todos nós e disse que iria criar todos embaixo do mesmo teto, com a minha mãe.  Sabe aquela Kombi velha que para na frente da escola, na entrada na saída? É nossa. A gente trabalha com reciclagem. Com papelão e latinha.

- Vocês ainda moram lá?

- Não, meu pai tirou a gente e fomos morar nos predinhos do Singapura que têm lá perto. Não é muito diferente. Só mudou o tipo de casa. São as mesmas pessoas.

- Eles respeitam seu pai?

-  Meu pai hoje é um homem de Deus. É trabalhador. Mas ninguém mexe com a gente.

- E você, gosta dos seus irmãos e irmãs?

- Eu sou o único homem.

- É o varão da família.

- KKK, sou. O pastor sempre diz isso quando me vê...

- Tocou o sinal. 

- Deus abençoe, professor. 

- Assim seja.

 

 

14

Rachel precisa mudar

 

Raquel faz parte de uma classe para jovens e adultos que funciona no período da noite. Ela é jovem, mas sabe que essa juventude já está se esgotando e que precisa se organizar e preparar-se para as mudanças. Seu interesse pelas aulas e pelo saber dos professores é estimulante para outros colegas, embora a maioria não tenha muita noção do que está acontecendo. Sabe que é necessário estar na escola. A média de idade entre eles fica entre 20 e 40 anos. É comum ter nessas turmas pessoas com mais de 50 anos, mas nessa classe não tem. 

Raquel quer aproveitar o tempo perdido. Não é somente ela. Muitos abandonaram a escola para cuidar de prioridades e urgências e agora precisam voltar  e recomeçar onde pararam.  

As crises econômicas e o desemprego despertam o interesse dessa faixa etária pelos estudos. Em 1999 foi o pior momento delas, efeito dos famosos ataques nas bolsas de valores. Um ministro da economia da época dizia que o Brasil estava passado por uma tempestade muito parecida com o  Crack da Bolsa de Nova York, em 1929, e a crise arrasadora que veio logo em seguida. Muitos querem fazer cursos de atualização ou profissionalizantes, mas não conseguem por causa da defasagem escolar: leitura com interpretação dos textos, escrita de expressão e as quatro continhas ou operações matemáticas básicas. 

Essa história pode parecer atual, mas aconteceu no último ano do século XX. Milhões de pessoas ainda não tinham conhecimento de informática nem acesso à internet, que era muito lenta em com poucas opções de serviços digitais. No início do ano 2.000 os celulares eram raros e com muito problemas de contato. Mesmo assim, as pessoas já tinham noção de que estava em curso uma grande revolução tecnológica porque observavam as mudanças que aconteciam nas empresas. Tudo isso estava na TV, no cinema (que mostrava as novidades dos EUA, Europa e  Japão)  nos jornais e revistas. Em cidades grandes como São Paulo, essas mudanças vinham pelos aeroportos e se espalhavam rapidamente no mundo dos negócios e do consumo. 

Havia nesse contexto um grande interesse pela informação, ainda considerada a principal fonte do saber. Havia também uma incerteza e angústia nas pessoas mais simples, que se sentiam ameaçadas por não terem formação para ocupar vagas de trabalhos, que começavam a ficar escassas. Era um mundo totalmente novo que estava nascendo e que hoje conhecemos e sabemos como funciona. O reencontro com a escola era uma forma de aliviar essa insegurança e falta de perspectiva. 

Esse é o perfil da classe de Raquel. Mesmo demonstrando interesse pela escola, muitos não conseguem acompanhar o ritmo dos professores nem assimilar os conteúdos das aulas. Após o intervalo, a sala sofre uma fuga dos que não se adaptam ao curso, que é semestral e acelerado. A evasão é alta nas turmas regulares, mas nessas de suplência é muito maior. Os jovens defasados desaparecem.  Os colegas maduros e mais persistentes tentam segurar os mais frágeis, ajudando nas explicações e tarefas, mas não conseguem quando aparecem os primeiros resultados das provas. 

Raquel não é uma excelente aluna. Têm dificuldades. Mas se mostra animada e disposta a continuar. Pede ajuda nas tarefas, porém sabe que o ânimo e o entusiasmo é que garante a sua permanência na turma. Ela não fala das suas preferências pelas aulas e professores, mas têm alguns que ela gosta mais e comentava com os colegas, desde às primeiras aulas que tinha frequentado.  Isso era mais frequente nas aulas de Luciana, professora de Geografia;  e do Rubens, professor de História. Com a professora Luciana, talvez por ser mulher,  ela e as amigas conseguiam ter mais proximidade e compartilhar suas expectativas e dificuldades. Com Rubens acontecia a proximidade, mas era de forma diferente. Ele sabia que os conteúdos de suas aulas não teriam a utilidade direta e prática de mercado de trabalho e por isso se concentrava nas experiências vividas pela sociedade em época de crise. Numa das aulas ele descreveu uma notícia que havia lido sobre um lugar especial na cidade de Nova York. Era o local mais frequentado do momento na  Big Apple (Grande Maçã). 

Curiosos com essa história, os alunos ouviam atentamente Rubens falar das dificuldades das pessoas simples que moram em lugares frios nos momentos em que passam pelas tormentas das crises. A notícia era sobre a biblioteca pública de Nova York, sempre cheia de leitores fazendo pesquisas. Cada uma dessas pessoas tinha uma história de vida diferente, mas tinha em comum o desemprego e a busca de uma nova oportunidade. Rubens então deslocava o foco da aula para falar sobre como aproveitar as oportunidades que aparecem nas épocas de crises. “ A história é cheia desses exemplos de pessoas que só alcançaram o sucesso depois de grandes fracassos”.  Na medida que ia falando, olhava para alguns alunos e fazia algumas reflexões sobre como agir e reagir diante dos obstáculos. Eram os que estavam num grau de interesse mais acentuado e por isso chamavam a atenção do professor. Raquel dizia para as colegas: “Ele manda mensagens pra nós e elas se encaixam perfeitamente naquilo que a gente está passando. Incrível”. 

Foi assim que Rubens, mesmo sem a intenção de atingir determinados alunos, conseguia dizer exatamente o que eles precisavam ouvir. Diante de alguns colegas mais céticos  ou indiferentes, Raquel argumentava com entusiasmo: “Como ele poderia saber que eu estou passando por esse problema? Não disse nada pra ninguém”.  Certo dia Rubens foi questionado, de maneira alegre e amigável sobre esse seu talento. Respondeu dizendo que todos os professores  tinham mensagens muito valiosas e importantes nas entrelinhas de suas falas e aulas. “Prestem atenção e vão perceber que isso não é brincadeira. Nós professores funcionamos como as bibliotecas, com os livros que lemos”.   Ao ouvir isso Raquel encheu os olhos de lágrimas e apenas concordou balançando a cabeça.

Quatro anos depois, em 2004, o mundo já tinha superado essa crise. As coisas foram mudando rapidamente, como já era previsto. As crises também mudaram e, como sabemos hoje, tomaram novas formas e efeitos imprevisíveis, com essa que enfrentamos recentemente na saúde. O filme que mais fez sucesso naquele ano foi “Um dia depois de amanhã”, sobre uma catástrofe climática que  congelou Nova York e todo o hemisfério Norte. O caos tomou conta da cidade e o pânico atingiu as pessoas sobre a incerteza sobre a sobrevivência. Não é difícil lembrar qual foi o refúgio dos protagonistas dessa ficção nem qual foi o fator que mais pesou nas escolhas e tomadas de decisões dos envolvidos. O incrível é que as soluções mais práticas  e as lições de vidas mais influentes e marcantes não vieram somente dos livros e sim da experiência de um nova-yorquino  que vivia nas ruas. Sobre a incerteza do futuro e o fim do estoque de alimentos que havia na biblioteca onde estavam abrigados, ele  lembrou, dizendo para o seu cão e companheiro: “Vamos às latas de lixo. Nelas sempre têm o que comer”.    

 


15

Afonso ensina a ouvir

 

A rua estava deserta, apesar do horário, que era pouco antes das 9:00 da manhã. Afonso entra na escola que lhe havia feito um convite para uma palestra. Assunto delicado e que levou algum tempo  para que finalmente fosse decidida a sua presença. Tudo trancado por dentro e, do lado de fora, não se vê ninguém, com acesso livre, de carro ou à pé. O visitante se aproxima do guichê da secretaria e aguarda ser atendido. A sala também está vazia. Ele vai até a porta principal e toca a campainha. Alguns minutos depois surge uma funcionária.

- Oi, sou o Professor Afonso. Vim fazer a palestra sobre prevenção do suicídio.

- Ah, sim. Graças à Deus!!! O nosso diretor já vai atender o senhor. Vou abrir a porta. 

Afonso ultrapassa a porta principal e dá com um espaço enorme, que já conhecia de outras ocasiões.  Um prédio com muitas salas, nos dois pisos, intermediado por uma rampa de acesso com dois lances. O diretor não demora e quando aparece logo convida Afonso para um café na cozinha da cantina e ali iniciam uma rápida conversa protocolar, logo substituída por uma troca mais descontraída de impressões. O diretor está muito preocupado. Tinha demorado para retornar o contato e justificou sua atitude: “As mortes não aconteceram na escola , mas não quero que aconteça uma coisa dessas aqui”. Afonso concordou e se mostrou compreensivo com esse temor. Antes de irem para o auditório, o diretor confidenciou algo muito importante para Afonso: “O meu pai se matou. Não suportou a depressão”. Pediu desculpa por não poder participar do encontro e agradeceu muito a presença do colega educador. 

A sala escolhida para encontro ficava do outro lado do pátio. Foi conduzido pela coordenadora e ali foi apresentado a mais dois educadores encarregados de organizar o evento. Afonso havia solicitado que fossem escolhido um grupo especial de alunos: os mais fragilizados, que estavam sofrendo emocionalmente; os líderes colaboradores e com perfil mais humanitário; todos que tiveram contato mais próximo com os dois colegas falecidos e também, alguns pais. O encontro teria dois momentos diferentes. Uma rápida apresentação do expositor, da sua experiência pessoal com o tema, seu envolvimento e militância e um panorama sobre o suicídio e sua prevenção no mundo e no Brasil. Responderia perguntas no final dessa parte.   Num segundo momento ele abriria a reunião para ouvir todos os presentes falando sobre seus sentimentos e suas impressões.  O auditório estava cheio, tão cheio que muitos tiveram que sentar no chão. Afonso tem um jeito especial de apresentar-se: aproximava-se, sorrindo,  olhando direta e rapidamente nos olhos de cada um dos presentes. É um convite de atenção e oferta de amizade. Isso sempre funciona e também diminui o barulho , que aos poucos é vencido pelo silêncio. Agradeceu pelo convite e solidarizou pela perda dos dois colegas. Lembrou que em muitos países tem acontecido com frequência a morte de estudantes. Em alguns deles é estabelecida uma pratica de luto, para que o fato não seja esquecido nem negligenciado. Luto é uma coisa séria, uma cura de feridas que não podem ficar abertas. Nesses casos, fazem cerimônias memoriais e não permitem que os lugares onde os alunos falecidos sejam ocupados. Permanecem assim até o final do ano letivo. Bem diferente da nossas realidade, marcada pela informalidade  e uso múltiplo do espaço em vários períodos, impedindo essa interdição dos lugares. Mas acentuou que o luto pode e dever ser feito da forma que for possível.  

Na apresentação de Afonso os jovens são os protagonistas das histórias. A menina de 13 anos que, na  Londres dos anos 1940, havia se matado porque desconhecia a menstruação e também por temor dos pais; as estatísticas assustadoras do suicídio no mundo, que correspondia a cada ano ao desaparecimento de cinco cidades da região ( mais de 1 milhão de mortos), números que caíram para 850 mil após a adoção de Planos de Prevenção em muito países;  e finalmente, (apesar da redução do casos mundo),  os suicídios de crianças e jovens, que vinha aumentando a uma taxa de 8,5% das estatística mundiais. No Brasil, registrava-se um suicídio a casa 30 minutos. No mundo, um a cada 4 segundos. Não esqueceu de dizer que , durante a pandemia, um jovem da idade deles criou um serviço telefônico para apoiar mulheres que perderam o emprego e tiveram que ir morar nas ruas. Essa comunicação com os homens, por questões culturais, seria impossível. O jovem conseguiu reunir voluntários para conversar essas mulheres no período da noite, horário mais crítico de solidão e crises pessoais. O posto de conversação virtual foi denominado "Um lugar pra você", visando aliviar os sofrimentos dessas pessoas abandonadas à própria sorte.   Um silêncio absoluto reinava no auditório. Paulo então passou a relatar o surgimento dos serviços de prevenção, que colocaram de lado o ideal do salvacionismo e adotaram uma postura humanista e realista, por serem em sua maioria voluntários, pessoa leigas e comuns que ofertam amizade. Até os médicos e os bombeiros já entendem que o salvacionismo não funciona e nunca funcionou, pois representa se colocar contra os suicidas  quando deveriam ser  apenas contra o suicídio. Essa aparente contradição, quando compreendida, muda radicalmente a abordagem e o tratamento que se deve ao assunto. Essa mudança de postura demorou alguns anos para ser descoberta e colocada em prática. Os dois serviços de prevenção mais influentes do mundo mudaram de postura e conseguiram dessa forma ampliar sua oferta de ajuda, de forma simples e humana. As pessoas ligam e são ouvidas por voluntários leigos e anônimos. Falar e ouvir de igual para igual, sem conselhos e discussões. Conversa aberta e compreensiva, sem julgamentos e preconceitos. O alívio de uma dor íntima pode tirar alguém da situação de angústia. Um simples desabafo cessa o sofrimento e permite que a pessoas se reorganize e resolva seus próprios problemas. Não fácil tomar essa atitude numa cultura de falantes e solucionadores de problemas alheios.  Difícil abandonar essa postura  de superioridade diante de alguém que está sozinho e fragilizado. 

Afonso passa, então a ensinar como funciona a abordagem humanista de ajuda. Em poucos tópicos. Ele lembra de suas próprias experiências ao ter contato com pessoas em sofrimento psíquico - geralmente ansiedade, pânico e depressão -  em lugares como as calçadas, os pontos de ônibus, as filas de bancos e supermercados As pessoas, percebendo sua disponibilidade, se aproximam e passam a falar de si, do que estão passando, das suas dificuldades. Em questão de apenas alguns minutos elas desabafam, sente-se aliviadas e  se despedem cheias de gratidão após uma conversa de apenas alguns minutos. Coisas simples, que todos podem fazer. Por que não fazer na escola? 

Ao concluir essa primeira parte e responder algumas dúvidas, Afonso silencia o grupo e pergunta:

-“E vocês, como estão? Gostaria de ouvir cada um  falar de si, de como têm lidado com seus problemas e seus sofrimentos. Sei que não tem sido fácil. Mas é preciso falar. Falando a gente se alivia e aprende com a experiencia de que está ao nosso lado. Eu nunca consegui esquecer quando acordei de madrugada e vi minha mãe chorando ao saber que um tio nosso tinha da um tiro no ouvido. Ele era homossexual, numa época que quase ninguém aceitava pessoa nessa condição pessoal. Ele não tinha com quem falar”.  

Durante a sua fala , Afonso lembra de várias histórias sobre  a importância de ouvir. A mais curiosa foi a de uma senhora que foi atendida no Samaritanos em Londres, mas ninguém conseguia entender o que ela estava tentando dizer. Coisa muito complicada. Ela estava sendo atendida pelo Rev. Chad Varah. Só ele atendia. Era cansativo. Saiu da sala e foi convidada a esperar até que Chad atendesse todos  e voltasse nela para tentar compreendê-la. Ela concordou esperar e nesse tempo contou a história para um voluntario de apoio, que lhe servia café.  Contou duas vezes. No meio da terceira vez, deu um grito e saltou da cadeira, dizendo: "Olha, já sei o que está acontecendo comigo. Descobri agora conversando com você. Vou embora. Muito grata.  Agradeça também ao padre, que tentou de todas as formas me compreender. Mas com você foi mais fácil.  

Essa foi, talvez, a descoberta mais revolucionária do século no campo das relações humanas, a de que pessoas comuns podem ajudar outras pessoas em dificuldade, apenas ouvindo e lendo seus sentimentos: você está confusa, sente-se angustiada, está com receio de fracassar e ser criticada", etc. Foi assim que surgiu a prevenção pela escuta solidária.  Nesse instante, Afonso começa a explicar as regras para falar e ouvir. Falar apenas o que sente. Ouvir outro sem interromper ou refutar. Apenas ouvir em silêncio, de forma compreensiva. Ouvir os sentimentos. E propôs que todos falassem. Ao terminar a fala, todos deveriam dizer: "Ponto".  A reação foi imediata.  Quase todos os alunos falaram. Alguns precisaram ser contidos, para não monopolizarem a fala. Outros apenas choraram e falaram pouco em forma de palavras, porém muito pelas emoções. Alguns surpreenderam os colegas falando de coisas e situações que ninguém imaginava.  Respeito e sigilo foram lembrados como condição essencial desse tipo de experiência ajuda. Pessoal ou coletiva. Na medida que a reunião caminhava para o fim, muitos resolveram falar, reconhecendo que havia perdido uma oportunidade rara de se identificarem e reconhecerem. Afonso ressaltou que as reuniões deveriam ser programadas pelo menos uma vez a cada duas semanas, de forma permanente.  Lembrou que os voluntario dos serviços de prevenção são pessoas comuns e que também aliviam seus sentimentos e emoções fazendo encontros de acolhimento e compreensão. 

Hora de ir embora. Afonso agradece e se despede, sempre se colocando à disposição. Mas sabe que não retorna. Crê que a escola e os alunos sabem andar sozinhos, sabem como agir e conviver com seus problemas. É assim que funciona. É assim que a vida precisa ser vivida. Com solidariedade.

 


16

Luciana quebra o silêncio

 

- Professor, o senhor não está bem hoje...

Rafael iniciou a aula há mais de meia hora. Como de costume,  entrou na sala um poucos antes da sete horas da manhã, andou entre os corredores de carteiras cumprimentando discretamente os alunos e fazendo comentários rápidos sobre o clima e o tempo. O dia está nublado e frio. Luciana, que senta na carteira próxima da porta, foi quem fez essa observação sobre o professor. Rafael teve reação imediata olhando para ela, mas apenas fez uma careta balançando a cabeça. E ficou em silêncio. 

Luciana insistiu:

- Professor, o Senhor está triste. O Senhor não é assim. 

Rafael olha rapidamente para todas as fileiras e percebe que todos, sem exceção, estão olhando para ele e aguardando uma resposta. Não está constrangido. Percebe que a insistência de Luciana é de preocupação. Nesse instante, alguns alunos, fingindo estar com sono, colocam suas cabeças entre as mãos deitando-as sobre as carteiras, mas continuam atentos para ouvir o que Rafael têm a dizer. 

- Você está certa. Não estou bem. Tenho passado por alguns problemas...

- Ver alguém triste me deixa angustiada. Nem é curiosidade, me incomoda mesmo. 

- Acredito. 

- Logo que o senhor entrou percebi alguma coisa diferente no seu rosto. Achei que tinha brigado com alguém da escola. 

- É uma briga comigo mesmo que vinha adiando há muito tempo e essa semana não deu mais para segurar. 

- Chegou no seu limite...

- Por mim levaria mais algum tempo. Mas isso seria alimentar o sofrimento, meu e dos outros. 

- Deve ser difícil tomar uma decisão assim. 

- Pensei comigo, tenho essa mania de ficar adiando as coisas. E quando chega no limite não tem como recuar. Preciso parar de agir assim. 

- Não percebi que estava assim no início da semana. Mas hoje o Senhor apareceu muito contrariado.

- Nem dormi essa noite. Devo estar péssimo de aparência.

- Teve medo e pensou em recuar?

- Não tive medo, mas tive que encarar a realidade. Já ´passei por isso outras vezes. Mas dói, sempre dói. 

A classe parecia estar assistindo a uma cena de uma série do Netflix. Duas pessoas conversando e o restante aguardando o desfecho da história. Os rostos oscilavam entre o espanto e a piedade. 

Depois de uma pequena pausa, Rafael retomou a conversa:     

- Parece que me machuquei. Mas acho que vai passar. Até meio dia vou estar mais forte. Vamos trabalhar... 

- É isso, professor, você vai ficar forte.

Rafael continua escrevendo um longo texto na lousa. Mas seu olhar continua vago. Os alunos olham para na sua direção tentando decifrar como ele lida com essa situação. Não parecem curiosos sobre o problema que o atormenta  e sim o que ele faz para encarar essa situação. Eles perceberam que, em nenhum momento, o professor tentou disfarçar nem desviar a conversa que a colega teve com ele. Não escondeu seus sentimentos e admitiu que estava triste. Alguns poderiam interpretar esse gesto como uma fraqueza, mas a maioria sacou que, na verdade, ele teve muita coragem de falar.  Luciana tinha insistido na conversa observando que ele estava triste e isso provocava nela e nos demais um sentimento de angústia por ver que alguém está sofrendo de forma silenciosa. Luciana quebrou o silêncio. Teve a coragem de se colocar no lugar dele.  Foi por isso que ele disse acreditar nela e no que ela estava sentindo. Rafael poderia ter negado, disfarçado, mas preferiu falar de si. Não se sentiu ameaçado. Pelo contrário, ficou firme e se sentiu protegido naqueles poucos segundos de conversa. Um alívio que lhe deu forças para continuar trabalhando até o fim do período. Não foi uma fala apenas de otimismo verbal. Sentiu-se realmente mais forte. Luciana estava certa. Certíssima.    

Mas quem é Luciana? Quem são esses alunos? Quem é Rafael?

Luciana cursa o segundo ano do ensino médio. Ela está numa classe com algumas peculiaridades que as outras não tem. Os alunos parecem ser mais maduros e as meninas são maioria absoluta. Os poucos meninos não se incomodam com isso. Ela conhece todos  pelos nomes e informa os professores sobre o que acontece na classe e também com os próprio colegas quando algo incomum acontece. Hoje aconteceu algo incomum.  Eles gostam de Luciana porque, agindo assim, muitos problemas são resolvidos na própria classe. Rafael é um professor que sempre surpreende os alunos com novidades e reações inesperadas. “Si pá”, ele prefere parar a aula e conversar sobre algo que não tem nada a ver com o conteúdo da disciplina que ele ensina. Hoje ele não fez isso. Mas permitiu que Luciana conversasse com ele, como se estivesse conversando com a sala inteira enquanto escrevia na lousa. E foi isso que aconteceu.   

 

 

17

Sidnei choveu na horta. 

 

 Sidinei acredita que não é um bom professor. Vive dizendo isso para os colegas de escola. Reclama que os alunos não o respeitam. Ensina uma matéria considerada difícil e isso, segundo ele, afasta ainda mais os alunos do seu convívio.

Sidnei começou a semana com o pé esquerdo. Seu carro estava todo arranhado, vandalismo feito por uma aluna de uma outra escola, que usou um prego para danificar o capô do automóvel. Estava muito triste e aborrecido. 

O professor Fabiano, vice-diretor, percebeu que Sidnei não estava bem. Rosilda, a secretária, conhecia Sidnei há muito anos e ficou tão preocupada com ele que achou que poderia fazer uma besteira. “Eu já vi ele aborrecido, mas nunca tinha o visto assim tão triste”, comentando com Fabiano:

- Você podia conversar com ele. Ele gosta de você, te respeita.

- Ele é sempre respeitoso.

- E confia mais em você.

- Ainda está bem pra baixo. Já tive outra conversa com ele, sobre outro assunto. Parece que essa é uma boa oportunidade de retomar o que conversamos.

- Vê se consegue dar uma animada nele. Coitado.

Fabiano também estava preocupado com a segurança da escola. No fim de semana entraram na cozinha e   roubaram mantimentos da merenda. Não estragaram nada. Apenas roubaram os alimentos da dispensa. A porta que tinha sido arrombada precisava de conserto rápido. Nesse mesmo dia a empresa que havia feito um reparo de vazamento tinha deixado um enorme buraco próximo da caixa d’água. Fabiano teve que fazer esse trabalho, para evitar um acidente. Sidnei foi ajudá-lo. Depois de conversar alguns minutos, enquanto puxavam a terra para fechar o buraco, foram cuidar da porta da dispensa. Sidnei fez  o reparo sozinho, com material comprado pela escola. Foram juntos na loja de ferragens. Conversaram bastante sobre tudo o que estava acontecendo, com a escola e com eles. Fabiano fingia que também estava muito aborrecido e assim foi desvendando os problemas de Sidnei, que também desabafava, mas com mais emoção, pois não era fingimento.

- Eu tenho cara de palhaço. Não consigo me impor. Eles percebem que sou fraco...

Fabiano ficou estático com essa fala do amigo. Não sabia o que dizer. Nunca tinha visto alguém tão sem auto-estima. Sidnei aproveitou o momento para falar sobre os fracassos que vinham assombrando sua vida. Contou como tinha se tornado professor e o motivo pelo qual deixou a profissão que tinha escolhido antes e para qual tinha se preparado. Foi criado na área rural, num pequeno sítio arrendado pela família. Os pais eram agricultores. Sidnei fez o curso de técnico agrícola. Sabia lidar com a terra e aprendeu muitas coisas nesse curso. Nesse instante Sidnei mudou de expressão, como se tivesse lembrado de algo muito desagradável. Era foi mesmo:  Lembrou que, logo depois de formado, recebeu uma encomenda de um serviço de jardinagem para uma empresa de transportes. Fez o projeto do jardim, orçou os custos das plantas e do material de alvenaria para os canteiros, tudo como havia aprendido. A direção da empresa achou melhor fazer algumas modificações  e pediu que tudo fosse feito em vasos grandes. Era uma ideia bonita e bem ousada, muito mais cara. Perguntaram se teria algum problema e ele, com receio, disse que não. Nunca tinha feito daquele forma, sabia que era arriscado, mas não teve coragem de recusar a ideia. O resultado foi desastroso. Com exceção dos vasos, tudo foi perdido pelo ressecamento rápido e irreversível.  

Ao lembrar dessa experiência de fracasso, Sidnei estava boicotando a si e uma ideia que vinha alimentando há algum tempo. Fabiano, naquele momento,  intuiu essa reação de medo e desânimo e decidiu enfrentar também seus fantasmas de indecisão. Enquanto conversavam, os dois percorriam com os olhos o imenso terreno da escola e também a vizinhança de casas próximas. Foi então que Sidnei teve a coragem de falar  da ideia de fazer uma horta com os alunos. “Eles não gostam das minhas aulas de matemática. Quando disse pra eles que tinha cursado a escola técnica de agronomia, comentaram que poderíamos fazer uma horta e também um pomar aqui na escola. Achei a ideia muito boa. Será que a direção deixa a gente fazer”?  Fabiano ficou em silêncio por alguns instantes e logo em seguida perguntou sobre os custos desse projeto. Quis saber os detalhes. Sidnei explicou que as despesas eram baratas e que tínhamos mão-de-obra gratuita e voluntária. “Todos podem ajudar de alguma forma”.

“Podem sim”, concordou Fabiano. “Vou conversar com a direção. Acho que vão gostar. A escola precisa de um projeto desse para alavancar a Escola da Família, nos finais de semana. Está meio fraca. Se a direção concordar, você e os alunos fazem o trabalho de preparação durante alguns dias da semana, incluindo relatórios de cálculos e orçamentos, nos fins de semana, convidamos a comunidade para ajudar. As meninas da merenda também vão gostar da ideia. Uma delas mora aqui perto e pode ajudar".

Os olhos de Sidnei brilharam e ele se encheu de confiança e entusiasmo. A direção achou a ideia ótima e resolveu contribuir com a compra de fertilizante e outros produtos para preparação do solo. A terra era muito ácida e precisava de correções químicas, explicava Sidnei com ares de especialista. Era outra pessoa. Na semana seguinte seu rosto mudou e não se via mais nenhum vestígio de medo e lembranças ruins.

No mês seguinte também já se via uma nova paisagem naquela parte do terreno para o qual os dois olhavam durante as primeiras conversas. Ali se via vários canteiros, cercados, adubados e bem regados. Neles brotaram e cresceram cebolinha e salsa, manjericão, couve folha e flor, hortelã, alface, agrião, rúcula, alho,  tudo muito bem cuidado e com abundância. Ao redor dos canteiros, Sidnei plantou abóbora e abobrinha verde, que logo se esparramou. Todos ficaram encantados e muito impressionados com o resultado. Parecia um milagre. Era realmente um milagre. O pessoal da cozinha estava realizado com a diversidade de temperos que podiam usar no cardápio. Nos finais dos dois períodos das aulas, os alunos, visivelmente felizes,  levavam pequenas quantidades desses produtos para casa. Muitos pais passaram a trazer e buscar os filhos só para verem a horta que eles tinham ajudado a plantar e cuidar. Sidnei não falava muito sobre essa movimentação. Nem deixava transparecer o que se passava dentro dele. Mas o rosto dizia. Estava feliz. Estava curado. Fabiano também conseguiu superar alguns traumas de realização que guardava no coração.

“E a matemática”?  perguntava a diretora.

E Fabiano respondia:

“ A matemática continua ruim e os alunos não reclamam tanto. Mas a horta tá  boa demais heim”!!!

 

 

18

Fabiano ensina a não engolir o choro.

 

Fabiano recebeu um convite especial para falar sobre saúde mental e prevenção do suicídio numa escola particular. Convite feito por um ex-aluno da faculdade e que sabia da sua vivência nesse assunto. Perguntou a faixa de idade dos jovens  teve a informação que eram estudantes do ensino fundamental, dos sextos e nonos anos, portanto, entre 11  e 14 anos de idade.  Conhecia a escola pelo nome, pois tinha três colegas que lecionavam ali há alguns anos. 

Depois da recepção e apresentações foi conduzido até a quadra esportiva onde os professores aguardava as últimas salas se acomodarem para iniciar a palestra. O diretor agradeceu a presença de Fabiano e desejou que o encontro com os alunos fosse bastante proveitoso. Os alunos estavam todos sentados no piso da quadra. Alguns acenavam para ele cumprimentando-o de forma muito fraterna e ele rapidamente acenava de volta. Um caso raro e curioso de empatia. 

Fabiano saudou a todos, de forma hierárquica, e iniciou exposição falando, como sempre, da preocupação com a saúde mental das pessoas num mundo que desvaloriza esse aspecto humano. Repetiu a comparação que sempre faz nessa ocasiões sobre as vivências humanas básicas: pensamento, ação e sentimento demonstrando como as emoções e sentimento são reprimidos e desvalorizados. 

O palestrante fez uma rápida pausa e varreu os recinto com os olhos buscando sintonia visual com todos que ali estavam.  

Lembrou-se que, diante daquela plateia não poderia usar conceitos complexos e perguntou se alguém já tinha ouvido uma conhecida ordem vinda dos adultos: “Engula o choro”. Todos, incluindo os adultos presentes, ergueram os braços para dizerem “sim”, uns sorrindo, outros tristes e outros ainda com ares de indignação. 

Perguntou em seguida o que significava passar por isso, ter que engolir o choro numa situação de sofrimento. 

“Vocês todos, cada um da sua forma , entenderam bem como isso repercute dentro de nós. Toda pergunta merece uma resposta. Eu digo que para mim isso nunca foi bom. Obedecia, mas nunca aceitei isso como uma coisa normal e que me ajudasse. As pessoas aprendem que isso nos torna mais fortes, mas isso nem sempre é verdade. Engolir o choro significa que é proibido e inútil chorar. Será que a natureza está errada? As lágrimas e soluços de quem chora não significam nada além de fracasso e fraqueza? Quando choramos e depois nos sentimos aliviados por algum tempo das dores que estamos sentindo é uma experiência inútil e sem cabimento? Choro é sempre uma birra ou uma manha para fazer chantagem? Existe choro sem dor"? 

Para evidenciar a gravidade desse assunto, Fabiano alertou que os 8,5% de 850 mil pessoas de  pessoas que se matam todos os anos eram jovens como eles e que provavelmente tiveram que engolir seus choros e ou choraram escondidos antes de tomarem essa decisão desastrosa. E provocou: 

"Quem aqui quer falar sobre a liberdade de chorar e a imposição de engolir o choro"?   

Muitas mãos acenaram na plateia dos pequenos. Os adultos se recusaram a se manifestar. Fabiano propôs então uma postura diferente:

“Quem levantou a mão e está disposto a falar e certamente tem uma opinião formada sobre esse assunto, que aliás costuma se proibido, por ser inconveniente. Nossa ideia não é pensar nem debater. Isso já é feito nas aulas diárias. A ideia nesse momento é falar o que sentimos e não o que pensamos. Nosso objetivo não é discutir, concordar ou discordar e sim valorizar o relacionamento humano:  a aproximação, a aceitação, a compreensão e o respeito”.

Os braços e mãos continuam avisando que gostariam de falar sobre sentimentos. 

Fabiano foi chamando os depoentes para falarem ao seu lado ou, se quisessem, poderia fazer de onde estavam. Na medida que falavam, os jovens criaram uma atmosfera de liberdade emocional, sem radicalismo e exageros. Tudo muito espontâneo e respeitoso. Os que não quiseram falar, acolhiam ou eram acolhidos pelos colegas, que seguravam as mãos dos colegas ou simplesmente se abraçavam. Entre os adultos havia uma certa inquietação. A maioria estava constrangida e envergonhada. O diretor e alguns professores se sentiram no direito de chorar e foram solidários com os chorões. Estavam claramente surpresos e comovidos. Fabiano encerrou sua apresentação falando sobre a importância da amizade como gesto natural de amor e proteção humana.

 Na saída, quando se dirigia ao carro do ex-aluno que o levara até a escola, Fabiano encontrou com algumas mães, que conversavam animadamente.  Todas acenaram despedindo-se, algumas com sorriso de aprovação e agradecimento e outras balançando a cabeça,  com uma expressão de contrariedade amigável, porém muito preocupadas com o que ouviram. Seu ex- aluno sorriu e perguntou laconicamente: “Viu, professor”? 

- Sim. Ninguém pode dar aquilo não tem, nem ensinar o que não aprendeu.  

 


19

Cláudio desvenda a mesa e o labirinto

 

Cláudio entra na sala de aula logo após o intervalo das 9:30. O barulho e a inquietação é muito normal até que todos se acomodem. Mas, por incrível que pareça, nessa sala do 1D reina um clima de silêncio e tranquilidade. Uns cochichos aqui e ali, mas nada que incomode. Pelo e contrário, o professor fica curioso com o conteúdo dos sussurros que vem do fundo da sala. Ali, do lado oposto às janelas e cuja parede dá para o pátio coberto,  tem um pequeno grupo formando um círculo e no centro tem uma cadeira vazia. Nela tem um copo de plástico virado para baixo. Num primeiro momento o grupo fecha o circulo dando as mãos. Claudio já tinha apagado a lousa e agora bate na borda da lixeira um grande apagador revestido com feltro vermelho. É uma classe tranquila, bem diferente das demais. Por isso não estranhou a ausência de barulho nem os cochichos Alguns alunos estão em silêncio, aparentando desinteresse no que acontece no fundão. Curioso, Claudio vai até o fundo da sala e se aproxima do grupo. Fica em silêncio e observa o rito que já tinha sido iniciado antes da sua entrada na sala. As mãos já estavam soltas e dois alunos impõem as suas, com os dedos bem abertos, próximas e sobre o copo. Eles estão com os olhos fechados e bem concentrados no objetivo de fazer o copo se mover de um lado para o outro. Os demais permanecem com as mãos sobre as pernas, com as palmas viradas para cima dando a ideia de captação de energias pelas pontas do dedos. Ninguém se incomoda com a presença  próxima do professor. Sabem que ele não aprova, mas também não desaprova a ponto de proibir essa prática. Seus olhares são sempre de curiosidade e vigilância. Em reuniões anteriores a essa, Claudio alertou para o perigo dessa experiência. Eles se lembram da explicação dada por Cláudio, mas parece que ninguém liga para os riscos apontados por ele. Que perigo poderia ter uma brincadeira sem nenhuma maldade como aquela? Estavam apenas em busca de alguns sinais desse conhecido fenômeno entre os jovens. Claudio vai até sua mesa, confere o diário daquela turma, pega duas peças de giz e inicia seu trabalho com um resumo da aula já programada uma semana antes, conforme verificou em suas anotações. Os demais alunos o acompanham passando o resumo para seus cadernos.  Na medida que escreve na lousa, vai conferindo o movimento silencioso fixando os olhos no copo sobre a cadeira.  Para sobrar tempo para sua observação, Claudio escreve mais rápido. No meio da lousa ele traça um grande círculo e no centro escreve IDEOLOGIAS. Em seguida, a partir do que foi escrito ao centro, lança setas, em várias direções, que ultrapassam a margem do círculo e nelas escreve cada uma das ideias e movimentos  que marcaram a vida cotidiana do século XIX. Aponta primeiramente os grandes temas políticos das classes e categorias sociais da época e em seguida as sucessivas ideias e projetos consequentes dessas inquietações humanas daquele longo período de mudanças. Vai tirando da sua memória diversos grupos filosóficos e artísticos considerados menores, mas que tiveram presença marcante como culto e modismo. Ao direcionar seus olhos para o círculo do corpo, lembrou das  "tables tournantes” que agitavam Paris na segunda metade do século. As mesas não somente levitam sob as mãos dos magnetizadores, mas também respondiam perguntas oraculares, tentando desvendar os mistérios do Além. Foi exatamente nesse instante que Claudio ouviu um grito vindo do fundo da sala e o barulho de algumas cadeiras se arrastando tornando maior o círculo antes bem inibido. O copo havia se movido, provocando medo e mais curiosidade. Sucederam as perguntas sobre diversas coisas, solicitando que o copo se movesse em caso de um “sim” e permanecesse estático se a resposta fosse uma negativa. Isso aumentou o alvoroço no pequeno grupo que deu origem à brincadeira e despertou o interesse naqueles que estavam distantes, todos querendo saber detalhes do que foi questionado ao Invisível. É também nesse instante que Claudio aponta na última seta, em francês, a palavra “espiritisme”. Recorda o célebre encontro do Professor Rivail com seu amigo Carlotti, conhecido magnetizador, em 1856, enquanto caminhavam pelo “Boulevard des Italiens”. Os dois voltariam se ver numa reunião noturna na casa de Madame Plainemaison, cujos frequentadores seletos só compareciam mediante convite da organizadora das famosas reuniões de mesa parisienses. 

Tomando por um impulso indescritível, Claudio novamente se aproxima do círculo de alunos e desfecha na direção do copo uma,  pergunta desafiadora: 

“ Você me conhece” ? “Sabe quem sou”?

Para sua surpresa, e de todos que ali estavam próximos, o copo se moveu rapidamente para duas direções diferentes. Os dois participantes (duas meninas) que impunham as mãos sobre o copo permaneciam firmes e de olhos fechados.  

“Eu sou do Bem”?  perguntou Claudio.   

A resposta veio de forma imediata com o copo se arrastando para centro da cadeira. Em seguida, fez sua última pergunta, que foi a tentativa de identificar a inteligência e o caráter da força que ali se manifestava: 

“E você, também é do Bem”? 

O copo foi tombado, movendo lentamente, como numa dança, de um lado para o outro, até ser finalmente lançado ao chão, indicando que, para aquela pergunta, naquele momento, não havia resposta. Claudio então se dirige para as duas meninas, chamando-as por nomes que elas nunca tinham ouvido falar: Julie e Caroline. E, no entanto, mesmo desconhecendo tais nomes, elas obedeceram a ordem dada por Claudio para que despertassem daquele transe e copiassem o texto que estava na lousa. Para a maioria dos que estavam na sala e próximos do círculo, as perguntas e a ordem final de Claudio foi apenas um “estraga prazer”. Para “Julie” e “Caroline”, aquela foi uma experiência que estava apenas começando  e que teria outros desdobramentos além daquela simples brincadeira.

No dia seguinte Claudio acordou na terceira hora da manhã. Tinha dormido no sofá enquanto ouvia música. Tivera um sono profundo. Ao despertar ainda guardava na memória as cenas de uma visita que fizera a um lugar muito estranho, cercado por um bambuzal verde, cercado também por uma cerca alta de arame farpado. De longe avistou “Julie” e “Caroline” acompanhadas de alguns colegas da escola, mas que não eram da classe delas.  Todos riam descontroladamente  como se estivessem sob efeito de alucinógenos. Os colegas entraram no bambuzal utilizando uma passagem em forma de labirinto. “Julie” e “Caroline” viram Claudio se aproximar da entrada e recuaram imediatamente. Parados em frente ao labirinto, os três formam surpreendidos por uma música percussiva, com ritmo e som que nunca tinham ouvido. Era uma música monótona e repetitiva, animada por batidas em sinos de som agudo. Apurando mais a percepção dos ouvidos perceberam que a letra da música tinha gírias desconhecidas por eles, porém com forte conotação sexual e pornográfica. Foi só isso que conseguiu lembrar do sonho. Não revelou nada para as duas alunas. 

Tudo isso aconteceu no final de 1999.  

Dez anos depois, durante uma viagem ao Rio, Claudio e um amigo se dirigiam de taxi ao morro Santa Tereza. Na subida, o motorista avisou que estava vindo um bonde na deles. Pensaram que se tratava dos antigos bondes históricos do bairro. O motorista alertou para que não encarassem os passageiros. Era um carro esportivo vermelho, e os passageiros, todos muito jovens, exibindo fuzis, pistolas e metralhadoras. Claudio não se impressionou com as armas e sim com a música que estava sendo ouvida dentro do “bonde” vermelho. Era a mesma que tinha ouvido com “Julie “ e Caroline” na entrada do labirinto do Bambuzal.  

 

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Wanderley e a tempestade

 

  Wanderley dorme entre às 23 e 4 horas da manhã. Nesse período de sono seu corpo descansa e quando acorda está fisicamente revigorado. Nenhuma luz da sua casa está acesa. Todas as janelas estão fechadas. A temperatura no início do mês de agosto ainda está baixa, sobretudo na madrugada. A claridade dos postes de luz da rua ilumina todos os cômodos, mesmo os que estão com as cortinas também fechadas. Ele levanta, vai banheiro e volta para a cama. Ali, bem agasalhado, novamente pega no sono. Logo se vê num lugar agitado da cidade vizinha, a qual se vinculou a antigos moradores pesquisando a história da região. Está num lugar distante do principal centro  num edifício, onde parece estar acontecendo um evento político. Muitas pessoas ali se movimentam preocupadas com a organização e também em mostrarem seus projetos e talentos. Querem ser vistos  e têm em mente um alvo específico. Trata-se uma figura que se destaca entre eles, em todos os aspectos. Sua estatura não é comum e passa folgadamente dos dois metros.  Se movimenta o tempo todo percorrendo os recintos, sendo seguido efusivamente pelos participantes do encontro, sempre atentos às suas reações e solicitações. Sua aparência também não é comum. Wanderley vê nele uma mistura de elementos humanos, míticos e de um robô futurista. Parece que não têm uma das pernas, porém isso só se torna perceptível quando ele caminha. Lembra quelas figuras lendárias nórdicas, com cabelos loiros e compridos. Se exibe com trajes de combate. É uma figura impressionante que exala poder e carisma. Dá atenção à todos que o abordam, ouve suas ideias e observações e  rapidamente se desloca para conversar com outros grupos. Quase todos o enxergam como um gigante humano. É nesse momento que ele encontra Wanderley, que também está impressionado com o lugar e com a sua figura. Ambos se olham durante algum tempo e Wanderley diz a ele algumas palavras de reconhecimento. Ele ri alegremente e faz perguntas à Wanderley demonstrando curiosidade e vivo interesse em ouvi-lo. Conversam por alguns instantes mantendo os participantes bem afastados. Muitos tentam se aproximar e não conseguem. Para Wanderley o cavaleiro mítico é só uma figuração alegórica. Na verdade sua estatura é comum e tudo não passa de uma encenação. Esse é o motivos dos riso entre os dois. Mas Wandeley respeita a intenção do anfitrião.  Se despedem com acenos e o grande cavaleiro continua rindo, demonstrando muita satisfação com a aquela rápida conversa. 

Wanderley acorda. Levanta e vai até a janela para dar uma olhada na rua. Para evitar a friagem, fecha a janela - que havia esquecido aberta - e senta-se no sofá onde tenta lembrar-se das cenas e diálogos que tivera  durante o sono. Em poucos minutos seu corpo entorpece convidando-o a continuar o sono em sua cama. 

Wanderley agora se vê num edifício no centro da cidade onde mora. Muitas pessoas estranhas se movimentam dentro desse prédio enorme. Parecem estar perdidas. Ele também se sente perdido, mas não se incomoda com isso. Percebe que alguma mudança vai atingir a si e todas as pessoas que ali estão, mas que se encontram em agonia e se sentindo inseguras e impotentes. “Questão de tempo”, pensa ele. Continua sua busca pelo prédio e ingressa numa parte isolada, com aparência de abandono.  Ao abrir uma das muitas portas, se depara com uma cena surpreendente. A sala está inundada. Uma quantidade enorme de água escorre pelas paredes indicando que uma chuva muito forte atingiu as partes abertas do teto. Pela janelas ele observa que foi uma tempestade  repentina, pois o céu escureceu, embora ainda permanecesse com alguns tons luminosos de cor-de-rosa. A sensação de estar perdido e sem rumo volta ao seu coração em forma de angústia. Pensa em recuar, mas não consegue. É quando percebe que não está sozinho. Bem no centro da sala ele vê um jovem senhor. Está sentado apoiando a cabeça com uma das mãos no rosto e com o cotovelo sobre a prancheta de uma cadeira escolar, do tipo universitária. O jovem senhor está triste e introspectivo. Traja uma camisa xadrez de mangas curtas, calça blue-jeans e sapatos sem meias. Tem a impressão de que o conhece, porém não recorda exatamente de quem se trata.  

Ao acordar novamente, Wandeley observa que o sol já tinha se espalhado pelas paredes dos prédios vizinhos e pelas ruas. Vê que tudo está seco e claro. Sente-se aliviado. Lembra da figura quase mítica com quem conversou e em sua mente logo vem a lembrança de que no ano vindouro vão ter eleições renovadoras nas cidades. Lembra também do salão inundado e do jovem senhor triste sentado numa cadeira universitária e que não percebeu sua presença.  Alguns segundos depois, repassando as cenas gravadas na memória, diz pra si mesmo: “É o Waldir, o Waldir...”   

 


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Ricardo reencontra Rosalinda

 

Ricardo corre para o ponto de ônibus para não perder a condução que se aproxima e que pode levá-lo de volta para casa. Está em Praia Grande. Uma hora antes estava numa escola pública da cidade realizando um encontro com professores, pais e alunos. Na saída, já próximo ao portão, ouve a buzina de um carro ser acionada duas vezes em tom de saudação. Além da buzina, ele ouve seu nome ser pronunciado pelo motorista, que é uma antiga moradora do lugar, de família paulistana há muito tempo radica na cidade. Sempre que sonha com Praia Grande, Ricardo se vê no mesmo lugar, que é a divisa com São Vicente, próxima ao morro Xixová, na antiga avenida Tupiniquins. Ele se aproxima de um ônibus azul e, pela cor, sabe que vai para Santos. Não consegue embarcar. Ao tentar foi imediatamente surpreendido por uma mudança de cenário temporal. O ônibus azul não é mais o mesmo. Agora ele vê um exemplar bem antigo, dos anos 1950. O lugar mudou de cor e as pessoas que estavam no ponto não mais as mesmas. São agora moradores antigos, com aparência rústica, trajando roupas muito parecidas. O ônibus parte e Ricardo percebe que ao redor predomina um matagal cortado por ruas de terra quase sem nenhuma habitação. Em seguida, diante do ponto, estaciona um caminhão de carga, somente com a cabine do motorista, revestida de chapas de ferro. O motorista desce rapidamente e se dirige ao ponto. É uma mulher alta, de pele morena, cabelos negros bem penteados, logo reconhecida por algumas pessoas. Ela está vestida com um macacão de trabalho pesado, com mangas compridas e já bem desgastado pelo uso diário. Calça botas de couros no mesmo estado de conservação. Algumas pessoas vão na direção dela para cumprimentá-la, dando a entender que era alguém muito querida pelos operários. Apesar da reverência, ela se mantém séria enquanto conversa com eles. Ricardo lembra que já tinha visto essa cena numa fotografia antiga da Cidade Ocian, ainda em obras, na qual aparecem os operários  em frente a um caminhão antigo. São todos homens e estão vestidos com macacões já bem desgastados.  Um desses operários se tornaria prefeito da cidade após a emancipação, quando teve a oportunidade de ampliar sua experiência em obras de infraestrutura. Ricardo não conseguiu identificar a mulher que conversava com as pessoas que estavam no ponto, porém percebe que o assunto da conversa é política. Ela pedindo votos para uma eleição que vai acontecer nos próximos dias.

Ricardo não precisa mais de condução para trazê-lo de volta a São Vicente. Ele acorda do sono que teve pela manhã e fica pensando no motivo dessa experiência e logo vem a explicação. Antes de dormir tinha visto um mapa antigo da Companhia de Melhoramentos, datado de 1950. O mapa diz que a empresa de loteamento está em liquidação e mostra a região sul do antigo bairro continental de São Vicente  que se estendia até Itanhaém. Interessante que o mapa não cita a cidade de Mongaguá, embora os acidentes geográficos sejam todos dessa localidade. A rua São Paulo, artéria principal dessa cidade, já aparece rodeada por inúmeros lotes retangulares indicando que esses lotes compridos serão retalhados e vendidos em pequenos terrenos de uso residencial e veranista. Ricardo ainda está impressionado com a cena memorial e muito mais com a figura da mulher que dirigia o caminhão. Quem seria? Ainda vive? Tenta desvendar um mistério que ficou perdido no tempo há mais de 70 anos. Lembrou que o mapa poderia dar essas respostas. Como, se os dados nele contidos são tão poucos?  O original está num arquivo público na Capital. A cópia que viu foi publicada na página digital desse órgão e indica o autor do seu desenho técnico. Ricardo lembra que algumas pessoas conseguem penetrar na dimensão etérica dos lugares e objetos desvendando o tempo passado nos seus entornos, como se fosse uma gravação magnética e digital. É um dispositivo natural antigo usado pelos médiuns dotados dessa habilidade sensitiva. A Scothland Yard tinha o hábito de utilizar esse recurso psíquico para desvendar crimes de difícil solução. É uma habilidade rara denominada “psicometria” na qual o médium acessa a dimensão etérea dos lugares e objetos e enxerga as cenas que ali ocorreram. A maior dificuldade é identificar o rosto das pessoas envolvidas, pois nem sempre se mostram com clareza. Não se sabe se é um bloqueio natural ou um impedimento de força superiores que controlam os destinos dos envolvidos. Os hindus iniciados em ciências ocultas chamam esse fenômeno de Akasa (Éter) e Karma (ligação interexistencial). Complicado, mas é um recurso psíquico natural e obviamente conhecido, apesar de ser raro. Quem sabe mostrando o mapa a um médium psicômetro, com a descrição mental, as cenas e pessoas, vistas ou sonhadas, possam ser identificadas. É trabalhoso, porém não custa tentar. Ricardo conhece alguém que tem essa habilidade. Lembrou que essa pessoa conseguiu identificar a origem de uma pedra encontrada no fundo oceano pela tripulação científica do navio Professor Besnard, quando das suas incursões na Antártida nos anos 1980. A pedra, segundo relato dessa médium, era de uma vasta área territorial afundada há muitos séculos por um fenômeno telúrico. “É da Atlântida”, disse ela surpreendendo a todos. Ela desconhecia de onde viera a pedra trazida por um dos tripulantes. Vendo o mapa, poderia ocorrer uma revelação parecida. Dito e feito. Ricardo foi em busca da sensitiva e conseguiu ter com ela um contato muito produtivo. Embora já bem idosa, a médium não recusou atendê-lo. Foi direto ao ponto. Disse se tratar de uma funcionária de uma empresa de transporte máquinas pesadas que prestava serviços na urbanização de um antigo bairro de Praia Grande. Ela fazia o serviço do pai, que nesse período estava muito enfermo e impedido de trabalhar. Ela absorveu todas as instruções para lidar com os chefes e principalmente com os operários. Por isso decidiu usar o macacão de serviço, que era do seu pai. Rosalinda era seu nome.

Ricardo saiu muito feliz da casa da sensitiva. Não esperava que essa ajuda pudesse ser tão precisa e real. Ela só não disse se Rosalinda ainda estava vida e onde residia.  Isso só seria possível saber se encontrasse alguém que a conhecia. Lembrou imediatamente da pessoa que buzinou para ele quando saía da escola durante o sonho. Foi até o Museu da Cidade, no Palácio das Artes, onde essa pessoa trabalhava, no setor dos arquivos. Não disse nada a ela sobre o sonho. Mas ela ficou desconfiada, já que conhecia esse lado misterioso de Ricardo. Sabia que ela buscava algo, como sempre intrigante, e decidiu ajudá-lo. “ Esse mapa que você procura não está aqui, mas temos uma cópia lá no salão de exposições”. O mapa estava exposto numa redoma de vidro, como parte de uma exposição de época. Ricardo sabia que a simples observação do mapa não ajudaria em nada, pois os dados ele já conhecia. Mesmo assim acompanhou a amiga, para não decepcioná-la, pois tinha sido muito prestativa. Alguns minutos de conversa foi o suficiente para desvendar o mistério. No momento extado no qual Ricardo perguntava para a amiga se ela conheceu alguém que se chamava Rosalinda, uma voz forte vinda de trás deles respondeu: “Dona Rosalinda era filha do agrimensor da OCIAN. Fazia os serviço do pai , que estava muito doente. Era engraçada, quero dizer, era muito séria, mas ficava muito engraçada usando o macacão e a botas do pai. A gente segurava para não rir. Ela era muito boa e muito brava”.  E ficaram os três conversando sobre as coisas daquela época. Ricardo anotava tudo mentalmente. O informante surgido casualmente era um senhor de uns 90 anos de idade. Não aparentava ter essa idade. A voz forte  e a disposição física confirmavam essa impressão. Morava em São Paulo, na Vila Maria, e sempre visitava Praia Grande para matar a saudade de quando trabalhava como eletricista na mesma empresa. E finalizou a conversa rindo e despedindo-se: “Rosalinda... Era linda e brava...”      

 


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José Renato foi no Céu

 

José Renato entra num grande recinto cuja luz ofusca os olhos da maioria dos presentes. É um grande auditório onde estão acomodadas centenas de pessoas que, apesar de estarem alegres e cheias de curiosidade e expectativa, ainda se mostram entranhas ao ambiente incomum para eles. Foram trazidas ali durante o sono físico. Em alguns grupos os convidados portam roupas de dormir, o que desperta risos em outros que trajam roupas normais. Mas ninguém se estranha.  Todos acham engraçado. Para descontrair, alguns fingem estar com chupetas e mamadeiras, que  descobriram que podem materializar com a força do pensamento. Foram escolhidos pelas colônias de origem e trazidos por tutores existenciais. Fazem parte de uma coletividade que divulgam na Terra assuntos ainda desconhecidos no planeta e têm como tarefa voluntária difundir essas informações da forma que acharem mais conveniente ou por sugestão dos seus mentores. São chamados nessas esferas de "precursores", pessoas de todas as áreas profissionais, porém muito ligadas às artes e estudos filosófico educativos. São vocacionados para descobrirem e difundirem mudanças  em diversos setores. Todas as informações que aprendem nesses contatos são gradualmente compartilhadas em diversos formatos e expressões. Renato, por exemplo, vai transformar a experiência de hoje em palestras para seus companheiros de ideal religioso. Ele não estranha mais esses eventos. Porém, algumas vezes esquece os avisos sugeridos por seus mentores e é pego de surpresa, ou seja, de pijama. Só muda sua aparência quando percebe onde está e também porque já tem habilidade de criar sua roupagem mental.  

O auditório é tomado por uma música suave e todos vão silenciando suas falas e inquietações. Uma voz feminina, também suave, saúda à todos e agradece a presença dos convidados. Faz algumas considerações sobre o tema que será abordado citando um trecho do Novo Testamento lembrando que estão no Reino dos Céus porque comungam os mesmos valores, embora muitos ali tenham concepções diferentes de uma mesma verdade, que é a máxima “Na casa de Meu Pai há muitas moradas”. A voz se cala por alguns segundos e  pede que cada um agradeça a oportunidade desse encontro dirigindo-se à força Maior na qual acreditam e servem em favor dos seus semelhantes. Em seguida, inicia a exibição de um audiovisual sobre as colônias da crosta terrestre explicando suas características humanas, suas estruturas e histórico de suas idealizações e principalmente as coletividades culturais que abrigam. A narrativa lembra que as colônias funcionam pelo mesmo princípio universal dos reinos da natureza e dos seus seres em evolução. Confraternizam por intercâmbio permanente, assim como acontece entre os planetas e suas diferentes categorias de mundos. Recordar essas informações não causam estranheza nos presentes, porém o encantamento é geral, pelo tratamento visual e didático exibidos com imagens encantadoras, cheia de detalhes ainda desconhecidos no mundo carnal. Muitos que ali estão já elaboram estratégia de como vão difundir esse conhecimento imaginando a síntese e composição dos conteúdos. Se lembrarão do que estão vendo quando despertarem em seus leitos? Uns mais outros menos, dependendo grau e habilidade de memorização. Mas todos, de uma forma ou de outra, terão essa narrativa em sua memória mais profunda, disponibilizada segundo seus propósitos de revelação. Na oração de abertura a instrutora invocou a parábola do semeador para selar o compromisso de difusão da verdade que ali seria compartilha com os presentes. Mas grande revelação do encontro foi feita por um habitante de uma dimensão mais sutil do que aquela na qual todos estavam. O instrutor que agora fala e ilustra com cenas articuladas explica que a Terra está se tornando gradualmente um mundo feliz. Antes precisa conhecer a regeneração, que é a purificação coletiva e individual dos seus habitantes, obtidas pelas provas em curso. Ainda distantes da perfeição, porém muito próximos dos embates diários que marcam esse esforço moral, os habitantes da Terra irão assistir nos próximos oito ou nove séculos o desaparecimento dos umbrais profundos e a materialização gradual das colônias da crosta, as quais serão vistas a olho nu, flutuando entre as nuvens e nebulosas da abóbada celeste. Esse é um espetáculo muito comum em planetas já regenerados e felizes e cuja realidade mais próxima que temos como analogia é quando nos deparamos com o espetáculo dos arco-íris que aparecem casualmente nos céus, estimulados por fenômenos pluviais. Como eles, em multicores, surgirão nos céus outras montanhas, picos , serras, oceanos, gigantescas cidades e edificações, convidando-nos diariamente  a portar as túnicas nupciais luminosas e ao banquete celeste da eternidade. Ao invés de uivos e ranger de dentes, ouviremos em nosso entorno repetidas preces de gratidão e clamores pelos que ainda sofrem em mundo expiatórios com o nosso. Não raro, estaremos lá também ofertando a mão e pão espiritual que hoje recebemos dos irmãos maiores. 

Ao ouvir essa narrativa reveladora e cheia de esperanças, todos os presentes, sem exceção, se renderam às lágrimas recordando o quanto ainda teriam que caminhar para que tudo aquilo que estava sendo mostrado fosse alcançado definitivamente. A instrutora lembrou que as lágrimas ali derramadas cairiam com orvalho renovador sobre os lares de cada um deles e também no entorno dos seus abrigos terrestres. “Quando acordarem em seus leitos, muito se sentirão tristes e apagados, mas não esqueçam que isso é apenas uma impressão, fruto do choque entre a plenitude na qual estamos mergulhados agora com a escuridão terrestre que ainda nos causa dor, mas nos convida a sermos o sal de terra e a luz do mundo. Vão todos com Deus e com as bençãos do nosso Divino Mestre”. 

José Renato desperta dividido entre a melancolia  e a alegria que até pouco minutos ocupava seu coração. Porém e reage e recorda algumas cenas que vivenciou durante  o sono. Algumas falas ainda ecoam nos seus ouvidos, bem como as imagens, embora vagas, dos mundos felizes para as quais caminhamos num futuro ainda distante, mas que já experimentamos nas colônias próximas de onde viemos e frequentamos durante o sono.  Tudo isso serve para treinar a felicidade. José Renato senta-se em sua cama e sente a necessidade de orar. Vem em sua mente algumas bem-aventuranças do Sermão da Montanha. Não está mais dividido. Está alegre e disposto. E já faz planos de  como vai relatar essa Boa Nova aos que não tiveram essa oportunidade de ver e experimentar a Luz.   

 


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Fernando encontra os Sobreviventes

 

Fernando recebe pelo whatzapp o último alerta de chegada da sua carona. Se posiciona no local combinado e logo embarca num carro que sempre está cheio de caronistas.  Estão no carro um casal de educadores e dois jovens. Eles vão na direção Jockey Clube, do outro lado da cidade, onde vai acontecer um encontro. O caronista que entrou por último no carro é o convidado especial, autor do livro que foi estudado e discutido nas reuniões anteriores. Hoje é o encerramento, quando os participantes vão conhecer o escritor para tirar dúvidas sobre os personagens e situações que encontraram na leitura. Já aconteceram outros encontros como esse com outras turmas, porém são sempre diferentes. Contam com uma facilitadora e uma psicóloga voluntária. Dessa vez  prepararam o ambiente de forma um pouco diferente.  Elaboraram um mapa com as situações e dúvidas encontradas na leitura. Os participantes deram as informações e alguns deles ajudaram na construção do painel, que foi colocado na parede, de forma bem visível. Produção e cuidados à altura de um programa de TV. 

O  organizador do grupo dá mais duas viagens para trazer os últimos jovens participantes.  

Às 20 horas têm início a reunião. Primeiro, as apresentações e reconhecimentos. Os participantes, olham para o autor do livro que leram e, pelas expressões faciais, revelam que tipo de dúvidas têm. Uns estão sorrindo e conversando, outros introspectivos e observadores, mas todos muito curiosos com essa experiência conclusiva dos encontros. 

Quem é o autor e quem são esses jovens reunidos na ONG, que os acolhe? 

Fernando é o autor do livro “Estação Amizade- Dez jovens lutando contra o suicídio”, escrito há alguns anos com a ajuda de sua filha adolescente. 

Os participantes são jovens sobreviventes, membros de um grupo que  nasceu após o suicídio de um jovem. No enterro desse jovem,  o organizador do grupo  ficou chocado com comportamento dos colegas do rapaz morto, que demonstravam um certo fascínio pela partida do amigo. Uns diziam: “Gostaria de estar aí com você”. Essa e outras cenas de despedida deram início à busca desses e outros sobreviventes, quebrando o ciclo de um possível contágio de autodestruição.  

Reunidos os primeiros participantes, desse e de outros círculos de conhecidos, foi iniciado o primeiro encontro. Ali, todos têm muitas razões e motivos para estar e trocar experiências. Os relatos são vivos e cheios de nuances pessoais que os demais desconhecem ao ouvirem um colega descrevendo suas reações e seus sentimentos diante das situações que passaram e ainda convivem. Apesar da gravidade e tristeza de alguns relatos, as reuniões são sempre muito descontraídas e festivas, animadas pelos próprios participantes. 

A reunião de hoje logo é transformada num bate-papo com Fernando, que aproveita o momento para responder muitas perguntas dos participantes, sobre o livro e também colher as impressões deles sobre os personagens e principalmente sobre as transformações pessoais ocorridas durante e após os encontros. Ele mesmo se surpreende com algumas dúvidas e opiniões, que nem imaginava existirem sobre os personagens e as coisas que escreveu com a ajuda da filha. O livro era originalmente um roteiro de um documentário para homenagear um amigo de sua filha. Esse amigo dela se enforcou numa brincadeira virtual, na casa de um tio, onde estava morando após a separação dos pais. Ela e os amigos desistiram do documentário e o roteiro virou livro, acrescentando histórias que Fernando vivenciou nas escolas onde deu aulas. Ele explica que nunca tinha escrito um texto nesse formato com narrativa de ficção, personagens e e tramas. Teve que aprender a dar personalidade aos protagonistas e definir cada um dos papéis que eles representavam na história. Isso facilitou a interligação deles, surgindo uma trama coletiva e central composta por pequenas histórias individuais. Lembrou que teve dificuldades na sequência  dos capítulos e que também teve dificuldade para concluir  e finalizar a história.  

Fernando lembrou que  livro foi rejeitado por várias editoras. As que se interessavam, exigiam que a palavra “suicídio” fosse retirada do título. Era uma reflexo e prova de que o tema é ainda um tabu. O autor não cedeu às sugestões dos editores. Seguiu o conceito científico da OMS-Organização Mundial de Saúde de que falar abertamente sobre suicídio não causa outros suicídios. Pelo contrário, falar gera círculos de proteção e de apoio, causando o recuo da ideação suicida. Falar protege porque estimula o instinto de conservação e os pedidos de socorro. Não falar causa silêncio de intenções que resultam em mortes que podem ser evitadas por esse gesto de prevenção. O autor conta para os participantes que havia recebido uma mensagem pelo Facebook de um jovem leitor da Costa Rica. Ele veio em viagem turística ao Rio e, na volta, viu o livro numa loja do Aeroporto. Disse que que comprou o livro quando buscava algo atraente para que pudesse aprender melhor o nosso idioma. Chamou sua atenção duas palavras estampadas na capa: Amizade e Suicídio. Agradeceu muito pelas histórias que leu e que também ajudou no seu esforço de aprender português...  A mensagem enviada desse turista para Fernando veio com uma foto dele segurando o livro enquanto dirigia no trânsito em sua cidade. Fernando não perdeu a oportunidade de divulgar essa experiência, principalmente ao editor que publicou a obra e que também tinha dúvida sobre o título escolhido. Teve dúvidas, mas acatou os argumentos de Fernando.

Encerrado esse último encontro, com deliciosos comes, bebes e muitas gargalhadas, foi retomada a maratona do caminho de volta  e das caronas.  Já são quase 22 horas. Momento de voltar para casa, deitar a cabeça no travesseiro e pensar sobre a noite que estava avançando e a semana que estava por vir. Todo dia é dia de Viver.          

 


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Flávio e Débora são sonâmbulos

 

Professor, vamos conversar? 

Foi com essa pergunta que Luciana se dirigiu à Flávio, para aproveitar o final da última aula da tarde de sexta-feira. Eles tinham apenas alguns minutos para travar uma rápida conversa sobre a experiência de Luciana. Ela estava visivelmente ansiosa para fazer o relato sobre o estranho sonho que teve na última noite. Sonhou que havia sido morta e que seu assassino apareceu duas vezes para ela. Na verdade este era o segundo pesadelo que tivera com ele. 

Ao ouvir o relato da colega,  Débora, que estava sentada um pouco distante, também se aproximou da mesa de Flávio para ouvir o que o professor falaria sobre o ocorrido. Os demais alunos estavam dispersos conversando ou vendo seus celulares e nem se deram conta do que estava acontecendo em torno da mesa do professor. Débora ouviu as explicações de Flávio e resolveu falar o que havia acontecido com ela. Também viu seu assassino, numa cena na qual ela havia morrido quando tinha nove anos. Débora e Luciana têm 13 anos de idade. Flávio ouviu atentamente essas duas histórias recorrentes nos sonhos das duas alunas. Não foi necessário que perguntassem o significado de tudo isso:

- É uma memória que vocês têm guardadas. Não se preocupem. Não é uma premonição e sim uma lembrança de algo que aconteceu há muito tempo, mas que ficou gravada na memória mais profunda da mente.

- Professor, disse Luciana, essa lembrança de vida passada é muito estranha. A gente se vê nos lugares e nas situações, mas parece que somos estranhos, mas é a gente que está lá. 

- Débora-pergunta Flávio- você é sonâmbula? Vê e conversa com pessoas que não conhece, mas é reconhecida por elas? 

- Verdade, professor, não as conheço, só que elas sabem quem sou eu. Não sou sonâmbula. Apenas sonho 

- Vejo e converso como se estivesse num sonho, mas estou acordada- lembra Débora. Além disso, professor, sempre acordo da madrugada e vejo vultos passando da cozinha para a sala da minha casa. São vultos brancos.  

Flávio lembra a elas que, quando tinha mesma idade, era sonâmbulo e vivia conversando com estranhos que o chamavam para ir ao campo gramado que tinha em frente de sua casa. Ficava num estado febril, que só passava quando sua mãe se levantava para colocá-lo na cama e pegasse no sono novamente. 

- Quando crescerem um pouco mais, isso vai desaparecer. 

Ao dizer isso, Flávio olhou para Débora alertando-a que – no seu caso – essa perturbação voltaria quando ficasse adulta: 

-Você é médium e precisa realizar uma tarefa de ajudar pessoas em sofrimento. Você saberá quando e o que deve fazer para que isso se realize e também não prejudique sua vida. 

- E eu, professor? perguntou Luciana. 

-  Você não tem mediunidade de tarefa. Só a natural, que  todos têm. Isso que acontece com você é só uma memória traumática. Talvez, essa pessoa que aparece para você vai ser seu filho ou então seu futuro companheiro, que você ainda não sabe onde ele está. Ainda. 

- Outra coisa, professor. Meu primo vem me ver quase todas as noites, mas ele está na casa dele dormindo. Como isso é possível?

- Durante o sono ele sai do corpo e fica livre. Isso que acontece com todos nós. Depende da nossa mente e do nosso coração, os sentimentos. Já li um livro sobre a infância de Jesus relando que, quando criança e durante as reuniões religiosas que pais frequentavam nas cavernas no Monte Nebo (onde viviam os essênios), depois de correr e brincar com outras crianças, ele dormia um sono profundo. Seu Espírito saía corpo e se mostrava - iluminado em forma adulta - e fazia preleções sobre sua missão no mundo. Depois despertava como criança e nem lembrava o que tinha dito. Mas quem via, não esquecia a cena nem suas palavras...

Flávio olha para a porta da sala e recebe o aviso de que pode dispensar a turma. 

São 18:20 horas.  

O pátio já está cheio de alunos indo para suas casas e sua classe se mistura rapidamente com as demais. 

 

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Josué pesquisa o destino dos suicidas

 

Intrigado com algumas palestras e mensagens sobre o destino dos suicidas, Josué quis se aprofundar no assunto. São muitas as publicações sobre o tema, porém, instruído por um colega mais experiente, concentrou-se no livro clássico de autoria de Camilo, um escritor português morto tragicamente no final do século XIX. 

Algum tempo depois, Josué já havia concluído a leitura, reforçada por um audio-book gravado por atores profissionais. Seu interesse proporcionou-lhe uma memória síntese sobre a obra de Camilo, o escritor suicida, psicografada pela médium Yvone do Amaral Pereira e organizada pelo Espirito Léon Denis. 

A síntese de Josué: 

No Livro “Memórias e um Suicida”, o autor descreve em mais de quinhentas páginas sua triste trajetória após ter tirado a própria vida com um tiro no ouvido. Camilo Cândido Botelho (Camilo Castelo Branco) apresenta primeiramente o Vale dos Suicidas ou dos “Réprobos”, cenário mental escuro e pavoroso onde almas afins se atraem para purgar os mais dolorosos efeitos da autodestruição. 

Em seguida, sob a condução seletiva e severa da Legião dos Servos de Maria, Camilo atinge a Colônia Correcional ou Burgo Esperança, núcleo menos escuro em cujos departamentos e edifícios são recolhidos e matriculados os criminosos em seus múltiplos e graves delitos contra si mesmos. Ali estão a Torre de Vigia, Isolamento e o Manicômio, partes do grande Hospital Maria de Nazaré (ou Hospital Matriz). Num plano mais iluminado encontra a Cidade Universitária, metrópole de estilo hindu, descrito pelo autor como um padrão de civilização inimaginável na esfera material, formada por avenidas imensas, lagos e arvoredos majestosos e floridos. 

Alinhadas em posição setenária, estão ali também as Academias iniciáticas de habilitação para reencarnações expiatórias e regeneradoras. Cada uma delas com letreiros indicando o currículo e as disciplinas a serem cursadas: Moral, Filosofia, Ciência, Psicologia, Pedagogia, Cosmogonia e Esperanto. 

Das turmas cursantes e aptas (após um longo e sofrível período de adaptação mental), a do narrador era uma das mais vultosas, contando com “cerca de duzentos pecadores”, tendo um grande contingente de damas brasileiras de diversas camadas sociais. 

Os alunos, após a aula magna dada pelo Diretor do Burgo e da Mansão Esperança (Irmão Sóstenes), foram apresentados aos principais instrutores:

 O ancião romano Epaminondas de Vigo; 

o iniciado médio-oriental Souria-Omar;

 E finalmente o jovem, quase adolescente, Aníbal de Silas. 

Cada um deles se desdobraram no ensino específico de nove  conteúdos: 

Gênese Planetária, Pré-História; 

Evolução do ser; Imortalidade da alma; 

A  tríplice natureza humana; 

As faculdades da alma; 

A lei das vidas sucessivas em corpos carnais terrenos, ou reencarnação; 

Medicina psíquica; 

Magnetismo e noções de magnetismo transcendental; 

Moral cristã;

Psicologia e Civilizações terrenas. 

Todas as aulas eram alternadas com aulas de Evangelho. 

Em seguida os alunos foram organizados em “agrupamentos homogêneos de dez individualidades”, sendo separadas as damas dos cavaleiros, ainda em desequilíbrio emocional, para evitar a interferência de ideias e inclinações mentais que “oprimem a vontade, turbam as energias da alma e entorpecem as faculdades”. 

A escola e os cursos ali ministrados tinham como diretrizes os seguintes dizeres: CONFIAI! APRENDEI! E TRABALHAI!

 

PS.  Essa Escola, foi instalada nos mesmos moldes na Federação Espírita do Estado de São Paulo em 1950, pelo então secretário geral, Edgard Armond, tendo como expositores grandes vultos do movimento espírita da época: Canuto Abreu, Ary Lex, Vinícius, Emílio Manso Vieira, Iracema Martins de Almeida, Carlos Jordão da Silva, Sérgio Valle, Júlio de Abreu Filho, Benedito Godoy Paiva, entre outros. Foi denominada Escola de Aprendizes do Evangelho -Iniciação Espírita, sendo depois a base de criação e expansão da Aliança Espírita Evangélica e da Fraternidade dos Discípulos de Jesus. Os fundadores do CVV- Centro de Valorização da Vida são originários da 7ª Turma da Escola de Aprendizes da FEESP.

 

A pesquisa e síntese de Josué serve agora como um guia de leitura da obra e um excelente convite ao aprofundamento dos temas e vivências contidas no livro. 

 

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Juliana e Claudio na Torre do Tempo

 

Juliana e Claudio percorrem um dos longos corredores da Torre do Tempo, edificação muito conhecida na grande metrópole espiritual Esperança. A torre de muitos andares não é a única naquela vasta paisagem que parece ser a extensão de uma grande região serrana entre São Paulo e Minas Gerais, sendo até de menor expressão arquitetônica entre aquelas que abrigam as atividades diretoras e funcionais da cidade. Entretanto, mesmo estando deslocada da região urbana central, pois foi erigida na parte mais alta do vale, ela é uma das principais referências visuais da metrópole, exatamente porque, semelhante aos grandes templos da Antiguidade, tem um significado emblemático para os seus habitantes.

A Torre tem o formato de uma pirâmide, revestida externamente de material eletromagnético que lembram as modernas telas de cristal líquido de televisão e dos computadores. A edificação pode ser observada de qualquer ponto da cidade e se move em sentido circular sobre uma base vítrea, rodeada pelas águas de um enorme lago que não nos pareceu artificial. Por mecanismos que ainda desconhecemos na Terra, a torre gira em torno de si mesma e, semelhante a um gigantesco e vivo diamante, muda de coloração ao receber milhares de sinais vibratórios vindos de todos os pontos urbanos. O movimento luminoso espetacular dessa enorme antena de recepção e emissão somente poderia ser comparado, de longe, ao fenômeno da aurora boreal encontrado nas regiões frias do Polo Norte.

Como nas grandes metrópoles, Esperança nunca dorme, porém, no período noturno, parte significativa dos habitantes descansa de inúmeras formas, incluindo o sono. Nesses momentos de repouso a Torre recebe a maior carga de emissões energéticas mentais ampliando um espetáculo visual maravilhoso que gostaríamos de descrever nos mínimos detalhes, mas que a linguagem escrita e as limitações das nossas analogias não podem dar conta, tamanho o espanto que causa nos visitantes.

O corredor no qual Claudio e Juliana caminham em busca de esclarecimentos é muito extenso percorrendo três lados da torre, sendo repletos de salas e auditórios, e leva ao Centro de Estudos Existenciais, ponto central e nervoso do edifício e que se intercomunica com outros departamentos de pesquisa e atividades reencarnatórias. Como nas demais descrições sobre cidades do Além, a Torre do Tempo em Esperança possui três grandes centros, compostos de inúmeros núcleos de experiências teóricas e treinamentos existenciais. Tais núcleos são agrupados por afinidade de conhecimento e interesse em cada um dos grandes centros denominados e dispostos arquitetonicamente de acordo com as suas respectivas vocações:

O Instituto do Passado e do Inconsciente, cujo símbolo é a memória e o eixo de estudos são as reminiscências; o Instituto do Presente, tendo como símbolo a consciência e como eixos temáticos a regeneração e os campos de provas; e o Instituto do Futuro, tendo como símbolo a superconsciência e eixo temático os planos de vida e evolução.

Como junção dos três institutos de pesquisa, a torre piramidal tem no seu âmago, que vai da base até o topo, uma grande mandala geométrica, que também muda sua posição bipolar, de baixo para cima e de cima para baixo, conforme a intensidade de vibrações captadas no plano externo, representando ora o Universo, ora a Mente; ora a Existência, ora a Consciência. Quem ali permanece para observar, estupefato, dependendo da capacidade e interesse de percepção, é tocado intimamente pela dinâmica visual e psíquica (pois não são apenas os sentidos comuns que ali se manifestam), e vê num instante um grande relógio funcionando no sentido horário e objetivo; e num outro instante uma enorme bússola indicando subjetivamente o norte que todos anseiam. Em alguns momentos a o relógio a bússola se interpenetram, demonstrando as curiosas nuances da interconexão entre corpo e mente

Chegando a um dos núcleos do Instituto do Futuro, os dois jovens são conduzidos por assistentes de informação para um vasto salão onde centenas de espíritos aguardam instruções. Com exceção dos servidores que ali laboram, as vestimentas dos frequentadores são muito semelhantes as que usamos em nosso plano, guardando as devidas diferenças de gosto e época nas quais os usuários viveram quando encarnados. Os trajes e acessórios típicos das primeiras décadas do século 21, bem como os mais recentes, tinham aparência nova e caimento harmonioso, refletindo o estado íntimo dos portadores.

Os participantes conversavam em pequenos grupos e poucos permaneciam isolados, já que o ambiente era convidativo para o contato humano e afetivo. Mesmo aqueles que se mostravam introspectivos tinham a companhia de alguém, também em postura discreta e disponível para ouvir qualquer manifestação, verbal ou não. Os dois jovens logo são acolhidos por um dos grupos, cujas conversas revelam uma preocupação comum: a dificuldade cada vez mais crescente de reencarnar em ambientes idealizados, restando somente as opções que a maioria receia, por não ter condições morais para enfrentar os desafios. Chama a nossa atenção nesse grupo o tema discutido abertamente entre os participantes: egoísmo e o comportamento defensivo. Alguns não se constrangem em revelar que falharam gravemente nesse aspecto e que agora lamentam a falta de oportunidades para renascer em corpos e núcleos familiares e amigos. Alguns relatos são tocantes e causam comoção em alguns integrantes daquela conversa franca e informal. Nenhum deles se atreve a comentar as experiências dos outros fazendo qualquer tipo de juízo a respeito do que ouvem no círculo.

Eles estão sentados em poltronas confortáveis e no centro do grupo surgem espontaneamente, em pequenos intervalos, imagens holográficas, as quais projetam situações reais de pessoas encarnadas. Nessas imagens tridimensionais os encarnados expressam de maneira enfática pontos de vista e justificativas para o modo de vida que adotaram a partir de determinados momentos das suas existências. As cenas causam entre os expectadores do grupo reações que vão da decepção até as mais profundas reminiscências de culpa e remorso. Numa delas, um jovem casal participa de um programa de televisão sobre o curioso mercado de pet shops e sua variedade de serviços: banhos, produtos de higiene, embelezamento e até festas de aniversário dos bichinhos, com farta mesa de comes e bebes para os convidados. A cena faz calar o grupo quando a entrevistada diz que ela e o marido fizeram a opção de “não ter filhos”, escolha, segundo ela, pensada e madurecida a dois. Terminada a entrevista, o holograma virtual se desfaz e o grupo volta para as suas reflexões pessoais.

Nesse momento o casal recém chegado pede licença para se retirar e se dirige a um dos assistentes de informação, que observam atentamente as discussões dos grupos. Incomodado, o casal que se retira quer saber onde buscar novas orientações, palestras ou aconselhamento terapêutico mais específico. Depois de uma longa conversação com um dos assistentes, este sugeriu que buscassem um núcleo do Instituto do Presente a permissão para freqüentar uma escola de adaptação de crianças recém desencarnadas. Eles já entenderam matematicamente o desequilíbrio entre a demanda e oferta de corpos e ambientes afins para reencarnação. Quando encarnados, não cultivaram os laços familiares, afastando-se até mesmo daqueles que haviam lhes permitido a experiência na carne. Arrependidos, não conseguiam se aproximar dos entes encarnados. As portas da afinidade estavam fechadas. Todavia, poderiam abrir novos caminhos. Poderiam frequentar por algum tempo esse núcleo infantil, onde compreenderiam melhor a vivência da paternidade e da maternidade. Eles observariam, em estudo sistemático de aprendizagem , o encontro de pais encarnados e filhos desencarnados, durante o período de sono físico. Presenciariam de perto a dor da separação e a angústia do luto e da saudade. A volta à carne de que tanto precisavam só seria possível em ambientes "estranhos" e socialmente precários. Seria também o início de uma conquista gradual do altruísmo.

 

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Fernanda e  Rafael na Cidade Maravilhosa

 

“O Dr. Adolfo Bezerra de Menezes, há tempos, deu-me, com relação ao assunto, uma explicação importante e na qual devemos meditar profundamente. Espíritos cheios de dívidas que desestimaram e ainda desestimam a bênção do tempo e o benefício das provas correcionais da pobreza e da riqueza, por ato de Misericórdia Divina, encarnam por uns 40 anos, como filhos de famílias abastadas, nos bairros de Copacabana, Leblon, Botafogo e Ipanema... Depois voltam à Espiritualidade e são examinados. E, visto que continuam doentes, viciados, incorrigíveis, reencarnam então, por outros 40 anos, como filhos de famílias pobres e residentes nas favelas do Estado da Guanabara. Em plena infância, ficam sem os pais. Aprendem, sozinhos, a andar os caminhos rudes, espinhosos, da cidade da miséria e do desconforto... Sofrem moral e fisicamente. Apanham surras continuas de outros companheiros das mesmas lutas... E acabam entendendo as corrigendas amorosas de Deus. E chegam no além, depois disto, melhorados, com algum mérito para desempenharem, mais tarde, tarefas educacionais e exemplificadoras no discipulado Cristão”. (Chico Xavier, em depoimento para Ramiro Gama)

 

Os personagens dessa história se enquadram perfeitamente nessas características das almas apontadas pelo Dr. Bezerra, espíritos que em sucessivas existências se atraíram pelas afinidades naturais das suas marcas íntimas e realizaram experiências de cumplicidade que os envolveram em curiosas tramas do destino. Acostumados ao conforto e às facilidades materiais, fracassam em seus programas encarnatórios, propostos por eles mesmos quando estão na erraticidade. Deixam a carne em situação de desequilíbrio, corroídos pela culpa, e quando retornam para as lutas físicas se vêem em situações contraditórias que exigem escolhas cada mais difíceis e complexas. Contrariados com as próprias situações que criaram, abandonam os compromissos e fogem sistematicamente de si mesmos em novas quedas e agravamento de débitos.

Mas a própria vida se encarrega de reconduzi-los ao caminho, tirando-os dos desvios de suas rotas evolutivas. Alguns deles já começam a dar sinais de cansaço e já acenam para a busca de responsabilidades que antes nem imaginavam assumir. Outros persistem na indiferença ou infantilidade. Caminham espiritualmente em ritmos diferentes, mas, por atração espontânea, continuam ligados por laços aparentemente inexplicáveis. Quando encarnados, mal saem da infância e já se aproximam pelas circunstâncias cotidianas, pois, cada qual com suas condições sociais, voltam ao mesmos cenários físicos. Desencarnados, permanecem inquietos nos núcleos que os acolhem e não cessam as perturbações enquanto não se juntam para buscar respostas e curas para os males que juntos produziram. Os que avançaram um pouco mais, conquistam crédito em forma de recursos reencarnatórios, incluindo conhecimentos, porém se comprometem a auxiliar os que retardaram no caminho.

O cenário principal onde vêm se realizando essas experiências ora é o Rio de Janeiro , ora são os núcleos do mundo etéreo que orientam as coletividades que ali reencarnam como a eterna missão de ressurgirem espiritualmente. Nas últimas décadas do século que passou eles viveram situações de prova bastante dolorosas, proporcionais aos desvios de sua ações anteriores. Do antigo contraste entre a senzala e a casa senhorial eles saltaram para os conflitos violentos entre os bairros ricos e os morros pobres da moderna e perigosa sociedade urbana carioca. As mansões e suas futilidades; as favelas e suas necessidades. Aliás, foi no Rio de Janeiro que o termo favela adquiriu conceito de lugar, significado social e posteriormente virou sinônimo de território. A palavra é nome de uma planta rasteira trazida do sertão nordestino pelos soldados que participaram do massacre de Canudos e foram morar nas encostas dos morros. Com ela também veio a cobrança e os sucessivos acertos de contas entre vítimas e assassinos. Certamente aquelas milhares de almas que foram massacradas no famoso genocídio registrado por Euclides da Cunha foram atraídas para o Rio para acertar as contas com os seus antigos perseguidores. O Rio e suas classes dirigentes também tem graves compromissos coletivos assumidos com a nefasta instituição da escravidão africana. Em tempos mais remotos ainda, quando viviam na condição de abastados comerciantes fenícios, essas elites se habituaram a enriquecer às custas do sofrimento alheio, comercializando a carne e os destinos humanos. Muitos deles mais tarde se reuniram na península ibérica, sobretudo no litoral lusitano, onde deram continuidade às antigas inclinações marítimas.

Fernanda é um dos espíritos desse grupo. Dentre os seus antigos companheiros já vem diferenciando-se na progressão espiritual e, como foi dito, trabalha intensamente para vencer suas inclinações íntimas na prova da riqueza. Ao lutar contra suas limitações remete-se diretamente aos espíritos afins que ainda estão perdidos nas teias da ilusão. Essa reminiscência lhe causa um terrível sentimento de culpa e tristeza pela ausência e sofrimento dos companheiros queridos. Tem preferência especial por um deles, a quem se afeiçoou profundamente em várias existências. Trata-se de Rafael, espírito inteligente, ainda espiritualmente imaturo e inconseqüente. Os dois estão encarnados , porém em situações totalmente opostas. Queriam encarnar como futuros cônjuges, para constituir família e negócios, mas não lhes foi permitido tal desejo alegando-se que nas duas últimas existências haviam passado sucessivamente por essas experiências, abandonando os filhos e abusando dos recursos materiais recebidos. Para tentar novos rumos, Fernanda veio primeiro, uma década antes, em condições materiais mais confortáveis. Rafael não foi contemplado pela mesma “sorte”. Sofreria a prova do abandono e da miséria. Certamente se reencontrariam no momento e nas circunstâncias que a Providência Divina melhor julgasse apropriado. Nesse período de distância e isolamento, cultivariam um sentimento de intensa saudade e vazio, como preparação para preciosas horas de regeneração. As coisas não seriam nada fáceis para ambos. Ela sujeita aos perigosos riscos do tédio, da depressão e do suicídio. Ele provaria o completo abandono, a fome, a incerteza e a violência. Com eles também estariam – envolvidos em tramas complicadas- muitos outros antigos companheiros, também em posições opostas: policiais e bandidos, médicos e pacientes, patrões e empregados.

Essa trama existencial está em plena ocorrência. Fernanda já está completamente envolvida. Não se recorda objetivamente de nada daquilo falamos e do qual teve participação consciente na elaboração do seu programa encarnatório. À vezes tem sonhos que lhe trazem algumas lembranças dessas reuniões de compromissos, mas ao acordar pensa que tudo não passou de fantasia ou recalques psicológicos. Ela é agora uma jovem carioca nascida no seio de uma família abastada, proprietária de uma grande rede imobiliária e comercial. Estudou em boas escolas, viajou para o exterior, conheceu os lugares mais visitados pelos turistas que anseiam conhecer o mundo. Tem inclinação especial para a arte, atividade que aprecia e consome, mas não pratica, apesar de ter sido iniciada de forma brilhante em música e algumas modalidades plásticas. No seu mundo social e círculo de amizades tudo o que podia ser feito ou experimentado já está registrado no seu antigo diário de experiências de menina, nas lembranças de moça e na memória de mulher. Para ela, o tempo parece ter passado tão rápido que nem percebeu que as amizades se afastaram, tomando seus rumos na vida. As amigas de outras épocas a encontravam em inúmeras ocasiões e não compreendem por que ela anda sumida, não telefona, não se interessa pelas novidades que tomam conta da cidade e do mundo. Esses momentos, sempre entusiasmados e festivos, quase sempre acontecem no aeroporto, em restaurantes conhecidos ou então nos shoppings. Da última vez, por incrível coincidência, reencontrou esses amigos durante a demolição histórica do Muro de Berlim. Comemoraram, dançaram, tiraram fotografias e fizeram questão de guardar pedaços de concreto dos últimos vestígios do conhecido símbolo da Guerra Fria. Mas as despedidas são decepcionantes, depois das trocas de números de telefones e promessas de reencontros que nunca acontecem.

Linda e um tanto estranha para a maioria dos conhecidos, Fernanda Vieira de Souto continua a mesma de sempre para os amigos mais íntimos. Rica e nem um pouco esnobe. Sorridente, mas sempre com um olhar vago de quem , de repente, pode desmanchar-se em pranto. Suas antigas colegas de faculdade perseguiam os cronistas sociais na tentativa desesperada de aparecer nas famosas colunas de jornal ou nos comentários da televisão , mas eles queriam mesmo era saber dela, quem ela estava namorando, o que estava fazendo. Isso irritava as mais invejosas. Fernanda fugia, fugia, sempre fugindo dessas situações que considerava inúteis e ilusórias. O Rio das décadas de 1990 e 2000 foi tão marcante como foi e vem sendo para todas as gerações que ali são desafiadas pela existência. Para Fernanda, a imagem da Cidade Maravilhosa da sua infância e juventude também foi se desvanecendo com o passar dos anos. Tinha ouvido falar muito das décadas anteriores, do glamour aristocrático e da internacionalização do Rio, mas tudo não passava de nostalgia dos mais antigos. É apaixonada pela cidade, mas não era esse Rio de que tanto falam. Era um outro Rio de Janeiro, perdido na retina espiritual e que só conseguia recordar durante os sonhos em que se via rodeada de muitos amigos em meios a festejos noturnos, aventuras em locais ainda selvagens, ruas e bairros que hoje não existem mais. Do terraço da sua casa, que fica no alto de uma encosta, ela pode ver todos os dias a imensa Baía da Guanabara. Isso lhe causa ao mesmo tempo prazer e ansiedade. Não consegue olhar mais para o mar com a mesma admiração poética, nem apreciar a beleza das praias, dos calçadões, dos lugares típicos da paisagem que encanta e fascina há séculos os moradores e viajantes. Quando olha o azul do mar, volta-se automaticamente para a direção oposta e busca algo perdido nas velhas florestas. Em sucessivas noites de solidão, quando da janela do seu quarto pode apreciar o céu limpo ao redor, em plena zona sul, mira o Corcovado, o Cristo Redentor e o Pão de Açúcar, mas não resiste à tentação de perceber como os morros foram sendo tomados pelas favelas e como a Zona Norte, em sua extensa vastidão plana foi ocupada pelos casarios. As janelas e luzes acesas dos apartamentos despertam sua imaginação em tudo que poderia estar acontecendo naqueles lares. O mesmo acontece quando olha agora, na outra direção, as milhares de lâmpadas, cada vez mais fracas e a perder de vista, atestando que ali dormem milhares de famílias em busca de sonhos. Nesses instantes a solidão aumenta e ela então fica mais introspectiva. Procura ouvir chamamentos, gritos, alguém clamando pela sua presença, pedindo sua ajuda. Algumas vezes chega a pensar que está ficando louca, que não fez as coisas que deveria ter feito no tempo certo para as moças da sua idade e da sua classe social. Namorou mas não se apaixonou de forma significativa a ponto de se casar. Não se via como dona de casa, pois havia estudado para ser executiva de negócios, mas também não sentiu a necessidade de ser mãe, como já havia acontecido com algumas amigas. Rompeu relações amorosas consideradas imperdíveis e altamente cobiçadas no seu círculo social simplesmente porque não via nisso nenhum tipo de valor significativo como modo de vida e felicidade. Dentro de si existe um vácuo, algo profundo e não preenchido nesses anos todos de estudos e conforto material. Teve amor e carinho da família, e sabe corresponder tudo isso, mas parece deslocada no tempo e consequentemente na esfera de interesses dos parentes sanguíneos. Não os contraria, mas também não os surpreendem com alguma inovação e sucesso, como é comum na sua cultura. A Fernanda linda da infância, enigmática da adolescência e misteriosa da juventude adulta continuava a semear dúvidas e perturbar a imaginação de vizinhos, admiradores, amigos e familiares. O que pretende ela nessa altura da vida? Está solitária, mas ao mesmo tempo possui um carisma natural para atrair os outros para a sua esfera pessoal. Não busca ninguém deliberadamente, mas está sempre sendo solicitada por alguém que conhece suas qualidades para resolver situações difíceis e complicadas. Apesar de só, é uma pessoas agradável, sempre afetuosa, às vezes intolerante com os erros alheios, mas sempre de forma educada e aberta. Esse é o segredo de sentir-se só, mas nunca estar isolada. Sua inteligência é um ponto forte de magnetismo humano. Fernanda vive cada vez mais em si mesma, não para si, mas para os outros. É a solidão dos iniciados, que brigam com o mundo, choram pelos cantos e sorriem alegremente para todos.

GUANABARA, O SEIO DO MUNDO

Ultimamente Fernanda sente-se atormentada por um pavor que no início lhe pareceu a conhecida síndrome do pânico. Um medo inexplicável, uma sensação de expectativa angustiante, que faz com que não durma e fique olhando pela janela, pensando em todas essas coisas. Quando dorme, tem sono profundo e acorda satisfeita. Fica intrigada com essa insônia sadia, logo transformada em preocupação indefinida, em algo que precisa ser feito, mas que não sabe o que é. Está em crise. Sabe e aceita isso como algo normal. Mas não consegue encontrar a solução. Está ficando cada vez mais preocupada. As mulheres da sua família sempre sonham coisas diferentes e intrigantes quando pressentem que mudanças graves vão acontecer. Há muitas décadas que isso não ocorria e sempre ficou sabendo disso através das conversas entre a avó paterna e as tias-avós, geralmente em ocasiões especiais, como os aniversários, velórios e casamentos. Isso explica, em parte, seu jeito misterioso e o olhar enigmático. Ela pertence ao núcleo burguês dos Vieira de Souto, uma antiga família portuguesa radicada há quase 300 anos no Rio de Janeiro. Eram todos provenientes do Porto e pequenas localidades próximas ao litoral , onde viveram séculos dedicando-se ao comércio de gêneros alimentícios. Muito experientes no segmento atacadista, os membros desse antigo clã tornaram-se ricos e influentes. Sempre foram admirados por seus clientes por serem muito discretos, sobretudo aqueles que tinham negócios nas colônias e certamente ligados aos altos funcionários da monarquia. Em tempos mais remotos, muitos haviam sido perseguidos por sua origens israelitas mas, como a maioria dessas vítimas da intolerância religiosa da contra-Reforma, adaptaram-se dolorosamente na condição de cristãos novos, adotando inclusive nomes que lhes foram recomendados pelos anciãos de suas respectivas fratrias. Os primeiros parentes desse ramo da família chegaram para residir no Rio no início do século XIX, quando Portugal sofreu traumática invasão das tropas do general Junot, por ordem militar punitiva de Napoleão Bonaparte. Ao contrário dos núcleos que fugiram do país sob proteção da marinha real britânica, os Vieira de Souto deixaram Europa utilizando-se do fretamento particular de embarcações que faziam rota entre Cádiz e os portos do roteiro mercantil hispânico, do México até a região platina. A princípio acharam que poderiam ter se dirigido o Chile ou Argentina, mas obtiveram informações de que nesses países – apesar dos ventos das mudanças liberais - ainda havia risco de hostilidade racial, por conta da grande influência do clero católico nos hábitos coloniais. Conheciam as cidades do norte e nordeste do Brasil, as quais já haviam sondado alguns empreendimentos, como Olinda e São Luis. Viam o Rio de Janeiro e o Brasil com uma certa desconfiança, pois eram avessos ideia da escravidão africana ali praticada em larga escala. Sempre condenaram o assunto nas rodas familiares e se mostravam indignados quando ficavam sabendo que algum membro do clã havia se envolvido com algum tipo de atividade ligada ao tráfico de negros para a América.

Educados na cautela para lidar com os momentos difíceis e na paciência milenar para fazer as mais graves escolhas na trajetória da sua raça, os Viera de Souto souberam esperar o momento mais favorável para tomar a decisão da mudança. Pensaram e repensaram e, embora ainda insatisfeitos e assustados com a própria decisão, resolveram finalmente se fixar na Guanabara. Nesses momentos de angústia com as coisas do destino a intuição das mulheres parece tomar de assalto o poder de escolha dos homens. Elas fecham o semblante, passam a usar trajes de cores mais escuras, reduzem a quantidade da alimentação e mudam até a rotina no cardápio diário. Tudo para chamar a atenção para a gravidade dessas circunstâncias. Não raro conversam entre elas sobre os sonhos que lhe causam forte impressão, nos quais escutam longas dissertações morais dos antepassados mortos, revelando nas entrelinhas dessa narrativas cheia de metáforas os detalhes dos acontecimentos futuros. Os homens não entenderiam logo de cara os significados desses acontecimentos do mundo espiritual, daí todo esse ritual preparatório para que tais revelações lhe chegasse de forma convincente aos ouvidos. Naqueles dias cinzentos e de noites frias e escuras muitas delas sonharam com paisagens paradisíacas que lembravam o Edem, cuja claridade do sol e as cores da natureza jamais havia penetrado nos seus olhos ou na imaginação despertada pelos relatos literários. Era um mundo totalmente diferente, no qual transitavam com muita liberdade e alegria todos os antepassados perdidos na longa diáspora. Eles viviam uma harmonia entre si, entre outros povos, incluindo seres selvagens, em franca alegria e tranqüilidade. Todos falavam do Messias, que não era especificamente alguém, mas uma grande reunião de almas em busca de um mundo melhor. Quando falavam do Messias lhe vinham a mente a figura a de uma tribo perdida no deserto – Ismael e Hagar – e outras que foram banidas pelas guerras sanguinárias em diversas épocas da Antiguidade. Dos sonhos relatados pelas mulheres o que mais causou impressão e dúvida foi o de uma viúva que parecia ter perdido a sanidade mental, pois sempre falava de coisas confusas e sem sentido. Segundo ela, o Messias havia se manifestado numa reunião feita num grande palácio de vidro, onde todos estavam sendo observados pelas demais tribos e todos os povos, esperando que uma importante decisão fosse tomada sobre o destino de Canaã. Na memória de todos que lá estavam ou que acompanham de lugares distantes estavam gravadas cenas horríveis de cadáveres terrivelmente magros, maltrapilhos e amontoados, sendo enterrados aos montes em extensas valas. Algumas delas se recusaram falar com os maridos sobre esse sonho da viúva e outras ficaram tão traumatizadas que preferiram apagar essa experiência de suas lembranças. As mais atrevidas perguntavam-se intrigadas no silêncio das noites por que não tinha coragem de recordar, já que não era de bom costume fugir da verdade. Então o pavor ia aumentando, pois algumas também se viam entre aqueles montes de corpos esqueléticos e não se perdoavam por ter permanecido em suas casas seguras e confortáveis quando tinham sido alertadas para fugir na direção da bússola e de lá para o Novo Mundo. A Guanabara, que os tamoios chamavam "seio do mundo" , escolhida como refúgio, na verdade não era um lugar estranho para eles. Os gênios espirituais que os conduziram para cá sabiam que a paisagem carioca já havia sido registrada em suas mais antigas lembranças desde os tempos em que os maiores navegadores da Antiguidade faziam aqui suas incursões exploratórias.

REENCONTRO

Este é o mundo de Fernanda. Um mundo não muito distante do mundo em que agora vive Rafael, a sua alma gêmea, da qual não se lembra com a memória da existência atual, mas que permanece gravada na lembrança mais profunda do seu Espírito.

Rafael tem a mesma sensação e, como ela, não sabe qual é o sentido verdadeiro de sua vida. Eles andam pelas ruas do Rio com a nítida impressão que vão encontrar alguém que conhecem e que ainda não voltaram de uma viagem ou coisa parecida. O mundo de Rafael, com vimos, é o lado obscuro da cidade. Para os olhos comuns ele nasceu em circunstâncias que só podem ser explicadas pelo determinismo biológico e social. É que se chama de má sorte. A mãe de Rafael cresceu nos morros e, como ele hoje, vivia nas ruas onde aprendeu tudo de ruim. Ela se separou do menino quando este tinha apenas três meses. Rafael foi levado por um traficante para quem ela devia dinheiro e , desde aquele dia, nunca mais viu a criança, sendo expulsa violentamente da favela controlada pelo marginal. Mais tarde soube que o traficante havia sido morto e voltou ao morro para tentar recuperar o filho. Rafael já estava com sete anos de idade e agora fazia parte de uma turma de crianças que vivem errantes pelas ruas do centro da cidade. Famintos do corpo e sedentos de amor, preenchem essas carências com pequenos roubos, cheirando cola de sapateiro, brincando até altas horas da madrugada até que o sono os abatem e o fazem esquecer por algumas horas aquela situação de dor e miséria. Estão adaptados, mas não satisfeitos. Rafael está entre eles, mas não se sente um deles. Está agora com 12 anos mais ainda não sabe exatamente o que aconteceu com ele nos últimos anos e como foi parar nas ruas. Não tem noção do que seja uma família, do que é afeto ou o que seja um lar. Ultimamente a turminha, que antes se escondia sob um viaduto e de lá foram expulsos por invasores, dorme sob uma parte coberta de um prédio comercial. Dormem tarde e tem que levantar logo que as portas das lojas começam a ser abertas. Os comerciantes não gostam de vê-los por ali, pois sabem que os fregueses serão certamente incomodados ou assaltados por eles. Rafael tem estado meio inquieto e apreensivo. É o mais velho da turma e atua como condutor dos menores, por quem demonstra afeto e proteção.

Nas madrugadas tem aparecido uma Combi com um motorista alto e forte e uma moça muito simpática. Eles trazem sopa num enorme caldeirão para alimentar as crianças. De vez em quando trazem roupas usadas e cobertores, que logo desaparecem, por não ter onde guardar durante o dia. Rafael é apaixonado pela estátua do Cristo Redentor e vive falando de uma luz diferente que aparece sobre a cabeça do Cristo e que acredita ser aviso de uma alguma coisa importante que vai acontecer. Os meninos riem quando ele conta essa história maluca e dizem que é efeito da cola de sapateiro. Ele também sempre fala disso para a moça da Combi e ela o escuta com atenção e diz acreditar nele. Já quase saindo, ela pede para ele ficar sempre de olho nos menores, principalmente num pequenino que é sonâmbulo e sempre vai em direção da avenida. Ele promete que vai ficar vigiando. A moça e o motorista vão embora e tudo recomeça no outro dia. O motorista se dirige para um bairro próximo a Botafogo. Vão conversando sobre os planos de levar as crianças para um lugar mais seguro, onde irão construir uma escola profissionalizante, alojamentos confortáveis, parques com brinquedos e muitas outras coisas. Conversam sempre sobre esses planos até que se lembram que as crianças se recusam a ficar em qualquer lugar que não se já rua. Gostariam de ir para uma casa, serem adotados para uma família. Mas já estão grandes demais. A rua tem mais liberdade. Ela já pensou em levar o Rafael para casa e adotá-lo, mas ele age com indiferença e desinteresse quando ela toca no assunto. Volta sempre a falar na luz do Cristo Redentor. Então ela desiste e recomenda que ele cuide dos menores.

A Combi para na frente de um enorme casa construída num condomínio fechado. As luzes ainda estão acesas. Ela se despede do motorista e o avisa que para não esquecer o recado para a Rita, a cozinheira, de comprar os legumes da sopa da próxima noite. Ela trabalha na casa e faz a sopa todas as tardes, depois que termina o serviço diário, antes de ir embora. A moça da Combi é filha da sua patroa e sempre a convida para ajudar na distribuição da sopa. Rita sempre arruma uma desculpa para recusar o convite e diz que por enquanto só quer fazer a sopa. Rita é crente e mora na zona norte da cidade. Fala pouco de sua vida mas, quando fala, nunca deixa de falar que é uma nova pessoa, que encontrou Jesus e deixou muitas desgraças para trás. Vai aos cultos quase todas as noites e ora pedindo a Deus para reencontrar o filho que desapareceu quando ainda estava amamentando. Rita é uma mulher muito triste, sofrida, mas está confiante na nova fé. Já procurou o filho pelas ruas, mas nunca teve nenhum sinal confiável de que Rafael ainda estivesse vivo. Sua patroa é a mãe de Fernanda Vieira de Souto. Toda aquela angústia e vazio que Fernanda vinha sentindo está desaparecendo aos poucos. Ao passar pelas ruas do centro, a moça começou a prestar mais atenção em todas aquelas crianças famintas e maltrapilhas pedindo esmolas ou dormindo ao relento. Decidiu fazer alguma coisa e convidou um amigo para ajudá-la nessa aventura. Ele é Ricardo, um arquiteto bem conceituado, companheiro de Fernanda desde a infância. Compraram juntos a Combi, fizeram todos aqueles planos, mas continuam somente com a sopa. Ambos estão muito felizes, apesar do impasse na execução das outras ideias. Outros colegas também participam dessas e outras incursões de caridade, como anjos da noite, mas logo se cansam e afastam-se. Fernanda e Ricardo permanecem firmes. Quase desistiram da sopa quando tentaram levar as crianças para um lugar fixo, mas foram convencidos pela própria Rita a continuar já que ela estava bastante entusiasmada com aquele trabalho. Ela até prometeu que iria se esforçar para ir junto com eles, embora tivesse medo. Numa dessas tardes em que Rita preparava a sopa Fernanda percebeu algo diferente na cozinha. Sentiu um cheiro totalmente diferente e foi perguntar para Rita se ela havia acrescentado algum tempero diferente. Rita estava sorridente com o rosto iluminado, radiante. Fernanda ligou para Ricardo e contou-lhe o que estava acontecendo. Quando chegou, Ricardo percebeu que algo estranho estava para acontecer e quis somente acreditar que Rita  havia colocado mais amor no tempero. Mas perdeu a chance de convencê-la a ir com eles. Hoje não tinha como se desculpar. A sopa estava deliciosa, especial. As crianças sempre perguntavam quem fazia aquela sopa e queriam conhecer essa cozinheira. Na verdade, quem sempre perguntava era o Rafael e o outros passaram a imitá-lo dizendo que queriam conhecer Rita. Os olhos dela brilharam quando finalmente aceitou o convite. Naquela noite nem voltaria para casa.

E foram os três, e com eles uma verdadeira legião de entidades luminosas, como numa caravana festiva. A medida que se aproximava do local o coração de Rita ficava cada vez mais apertado e apreensivo. A Combi estacionou em frente a uma calçada enorme. Era 1:30. Ao perceber a movimentação, Rafael pôs-se em pé e foi logo acordando os menores que já dormiam há algumas horas. Rafael também estava apreensivo. Havia se deitado para acalmar os coleguinhas, mas não conseguia tirar os olhos do Corcovado. Sentia que naquela noite a luz azulada do Cristo voltaria a brilhar com muito mais força. Rafael viu a mesma luz envolvendo a Combi e, num rápido lance de olhar percebeu que havia muitas pessoas em torno do caldeirão de sopa. Elas estavam de mãos dadas e cantavam enquanto olhavam em direção ao Cristo. Rita estava em prantos e, tomada por um força estranha , desceu do veículo e foi na direção de Rafael que já a esperava de braços abertos. Nem tiveram tempo de se olharem para se envolver num forte abraço repleto de amor e saudades. Choraram em soluços até que perceberam que Fernanda e Ricardo também estavam abraçados com as crianças, todos chorando e muito emocionados com aquele reencontro. Ali não estavam somente os quatro, mas muitos dos antigos colegas de outros tempos passando pela mesma prova. As entidades eram também amigos de outras épocas, acompanhadas dos espíritos mentores das crianças. Eles também choravam de júbilo e oravam em agradecimento a Jesus por aquele momento tão significativo em suas vidas. Era um reencontro de resgate e também de ressurreição. Ao contrário de Rafael e Rita, para os demais as provas não acabaram naqueles instante. Teriam que trilhar ainda um caminho de dores mais profundas. Para alguns, ainda estava para vir a etapa mais sofrida do resgate, no qual seriam eliminados num trágico acontecimento que ganharia notoriedade na imprensa mundial.

Mas o Cristo Redentor continua lá, atento a todos os acontecimentos. Para quem tem olhos de ver, sua luz estará sempre brilhante nas noites mais escuras e seu braços estarão sempre abertos nos momentos de aflição.

 


28

Ricardo em outras praias

 

Numa noite dessas, fora do corpo físico, fomos a um lugar que nos foi dito ser na região de Campinas, grande cidade do interior de São Paulo. Estávamos na companhia de alguém que não nos parecia estranho e que – como nós – buscava atingir um ponto definido e solucionar algumas dúvidas importantes.

Fomos caminhando por uma imensa área florestal e nos deparamos com um lago de grandes proporções. Uma ventania não muito forte dava um tom de naturalidade naquele ambiente agitando as águas, formando milhares marolas na superfície. Numa das margens havia uma praia enorme , dessas orlas muito amplas onde a distância entre a água e a terra firme é bem extensa. Em alguns pontos essa distância aumentava ainda mais e percebia-se que a água eventualmente penetrava por entre as árvores ali existentes, muitas palmeiras e coqueiros protegidos por uma densa mata nativa, típica do interior paulista.

Tudo ali nos parecia diferente, tanto no lago quanto na vegetação, mistura de paisagem interiorana com a do litoral. Ao caminharmos pela areia, notamos uma curiosa variedade de frequentadores e estes estavam agrupados por afinidade em diversos pontos da praia. Esses grupos ignoravam completamente uns aos outros e a nossa presença ora era vista com indiferença ou então com alguma estranheza por alguns indivíduos. Porém, entre eles, em cada grupo, havia um contado intenso através de conversas e manifestações de confraternização, embora de forma fútil e distante. Notamos também que as pessoas pertenciam a classes sociais diferentes e que na praia essa diferença se acentuava pela postura que adotavam em determinadas situações. Na aparência física eram todos iguais , mas existia no ar uma certeza ou crença de que eram diferentes e que não podiam se misturar. Havia entre eles a necessidade de afirmarem uma identidade mais forte daquela que aparentavam ter e muitos cultivam pensamentos e sentimentos altamente emotivos sobre as suas origens mais remotas, que simbolizavam em forma de gestos, hábitos, vestimentas, profissões e sobrenomes. Havia uma atmosfera de ansiedade e expectativa em todos e nós mesmos permanecíamos muito constrangidos por estar ali entre eles, pois não nos identificávamos com nenhum daqueles grupos.

Em poucos instantes já estávamos numa cabana ou chalé no qual conversamos com um rapaz alegre e ao mesmo tempo preocupado com o que estava acontecendo lá fora. A pessoa a quem nós acompanhávamos parecia interrogá-lo tentando obter informações sobre seu passado e ele respondia todas as perguntas com muita habilidade, indicando referências e procedimentos para facilitar o entendimento. Parecia conhecer bem a situação toda e dava detalhes sobre as identidades e afinidades daqueles grupos, que pareciam ser espíritos desencarnados preparando para reencarnar. Parecia também ser o inverso. Um detalhe chamou muito a nossa atenção: a maioria daquelas pessoas parecia estar em estado de perturbação e naquela fase revelavam com muita espontaneidade as suas características pessoais e seus anseios secretos na nova experiência pela qual iriam passar. A aproximação intensa entre os afins era uma forma de compensar a sensação de incerteza e também a insegurança sobre as suas identidades. O convívio ali facilitava a compreensão dos sentimentos que nutriam sobre si mesmos, uma indefinição de suas personalidades. Esse contato social e troca de experiências auxiliava na recomposição das suas individualidades, então dispersas em imagens altamente idealizadas que alimentaram nos últimos tempos.

Em meio à conversa dos dois percebemos que o nosso companheiro de viagem havia se inteirado de algumas situações que lhe causaram forte emoção e agora podia compreender o que estava fazendo ali e que rumo poderia tomar. Parecia ter se reencontrado. E nós continuávamos ainda meio deslocados e um tanto perdidos. Aquela não era a nossa praia, não conhecíamos ninguém além do companheiro, que nos pareceu um amigo de longa data. Talvez fomos solicitados a acompanhá-lo num momento difícil de retorno à carne ou então desencarne, não sabemos certamente. O choque da revelação o recompôs depois de uma sofrida transição.

Acordamos pela manhã com essas cenas todas misturadas na mente e emocionalmente abalados, embora tenha sido uma experiência curiosa e intrigante.Nos refizemos rapidamente após uma prece

 


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Olavo e Paulo Henrique se lembram do padre

 

Olavo não lembrava direito quem tivera a ideia de fazer uma parada naquela estrada para fazer um lanche. Todos concordaram porque o lugar parecia agradável, um pouco afastado da margem. O quiosque que servia de abrigo era bem grande e dava para acomodar a todos. Era uma antiga barraca de água de coco com mesas grandes e rústicas. Olavo era o mais velho da turma de quatro amigos. Não faria a mínima diferença saber de quem tinha sido a ideia da parada. Só iria piorar as coisas se houvesse uma discussão com acusações entre eles. Olavo só não se perdoava por ter deixado as coisas terem chegado naquele ponto. Poderia ter tomado uma atitude logo no início, mas preferiu aguardar o momento mais seguro. Está arrependido porque , para ele, a melhor oportunidade já havia passado. Agora, somente uma ação muito arriscada poderia reverter a situação em que todos estavam em perigo, principalmente as crianças.

Olavo estava como muito medo e desde os primeiros preparativos para essa viagem pressentiu algo de ruim. Um frio na barriga o incomodava desde o início da semana. Tentou desistir, mas as mulheres e os filhos já estavam praticamente certos da viagem e muito entusiasmados. Era a primeira vez que os quatro amigos levariam as esposas e filhos. Isso só acontecia quando iam para a praia. Dessa vez decidiram levá-los para o Pantanal, onde alugariam um barco de pesca pelo período de uma semana. Nunca fizeram paradas imprevistas como essa e sempre buscavam os conhecidos postos de serviços. Dessa vez, logo dessa vez, tudo deu errado. Tinha que manter a calma. Tinha, sobretudo, que ficar de olho no Ivinho, o mais impulsivo e que poderia estragar tudo e colocar todos em risco. Paulo Henrique também era explosivo, valente, mas era mais inteligente do que Ivinho. Rachel, a mulher de Ricardo estava surpreendentemente calma, demonstrando tranquilidade e confiança de que as coisas iriam dar tudo certo. Olhava para as crianças e tentava fazer com que as amigas também agissem da mesma forma, sem demonstrar desespero. Olavo estava com um temor que jamais sentira, exatamente porque tivera maus pressentimentos. Estava armado, coisa que nunca havia acontecido ou lhe interessado. Havia tomado a arma emprestada de um colega da empresa, o mesmo que criticara por ter feito um curso de tiro e defesa pessoal. Ficou envergonhado por ter tido vontade pedir a arma , mas justificou da melhor forma possível. O colega o treinou rapidamente ensinando a lidar com o carregamento das munições e até ensaiou alguns disparos , aprendendo como agir rapidamente em caso de assalto. “Que loucura...” , pensava ao recordar que jamais concordaria em usar uma arma para atirar em alguém.

Ricardo estava assustado e seus olhos percorriam a tudo e a todos que ali estavam . Isso deixava Olavo mais preocupado com o desfecho daquela situação.

Paulo Henrique parecia abalado com tudo que havia acontecido sem, no entanto, revelar medo. Se um deles tivesse que tomar uma atitude mais atrevida este seria Paulo Henrique. Era o mais inteligente do grupo, sabia negociar, tinha grande poder de convencimento e já poderia ter feito alguma proposta atraente para resolver aquela situação. “Se ele ainda não fez nada é sinal que as coisas realmente não estão indo muito bem”, pensou Olavo. Conversar o quê? Fazer que tipo de proposta? Como convencer alguém que se mostra tão insensível e ao mesmo ameaçado, continuava pensando Olavo enquanto os outros dois amigos pareciam também aguardar a decisão.

Das mulheres somente Rachel estava procurando se inteirar do que estava acontecendo e do que poderia acontecer caso houvesse uma reação dos homens. As demais estavam somente assustadas e aguardando o momento pior no qual poderiam chorar e implorar pelas suas vidas e dos seus filhos. Ela estava um pouco distante deles e, de repente decidiu agir e comunicar-se através dos olhos. Queria saber o que poderia ser feito. As crianças já estavam a ponto de explodir e não suportariam mais. Tinha medo de que as coisas descambassem já nos próximos minutos e rompeu aquele silêncio de indecisão entre o marido os três amigos. Olhou para Ricardo, cobrando uma posição. Ricardo olhou para Paulo Henrique e também para Ivinho e todos se voltaram para Olavo, com o se o mesmo tivesse naquele instante sido escolhido para iniciar a reação. Todos estavam se sentindo acuados e conscientes de que aquela decisão iria mudar completamente o rumo de suas vidas. Nem todos iriam sobreviver e as crianças certamente seriam sacrificadas. Por outro lado não havia garantia nenhuma de que elas estariam em segurança caso permanecessem passivos. Era tudo ou nada. Ou pelo menos a esperança de que alguém poderia sair dali vivo.

Por alguns instantes Olavo recuperou a frieza e iniciou uma leitura ainda mais rápida da situação, tentando entender como tudo havia começado. Primeiramente, contou quantos eram aqueles que ameaçavam suas vidas. Era oito, seis rapazes e duas adolescentes, todos de mal aspecto, vestindo roupas muito sujas, com manchas pretas parecendo serem cortadores de cana que voltavam das lavouras que ocupavam toda aquela vasta região. Tinham surgido na margem da estrada e de longe escutava-se uma intensa conversação entre eles. Embora tenham ficado atentos, não se preocuparam, pois viram que eram lavradores, pessoas simples que jamais poderiam causar algum tipo de problema. Na medida que se aproximavam, a conversação mais parecia uma algazarra e até mesmo brigas entre eles. Foi então que perceberam que não eram pessoas adultas e sim jovens completamente sem modos, sem a simplicidade e a timidez dos lavradores que conheciam e que até haviam conversado em algumas ocasiões. Esses tinham um jeito diferente, um olhar vago, perdido, que lembrava uma certa perturbação. Estavam visivelmente alcoolizados ou drogados e isso os tornava mais assustadores. Dois deles revelavam intenções de maldade e pareciam ter poder sobre os demais. Trocaram olhares entre si e partiram em direção aos carros que estavam estacionados sob algumas árvores. Foi então que Olavo percebeu o perigo e avisou os colegas. Mas já era tarde. Todos foram dominados pelos jovens, que empunhavam longos facões. Cercados e tomados de surpresa as mulheres e crianças começaram a gritar e isso fez com os jovens andarilhos demonstrassem mais agressividade e exigissem silêncio de todos.

Enquanto pensava e contava quantos eram os que haviam feito reféns , Olavo também tentava equacionar quem eles eram. Que tipo pessoas eram aquelas que de longe pareciam ser simples lavradores e que de perto revelaram-se seres perigosos e cheios de ódio no coração. O que estava acontecendo? Aquele passeio, que seria um dos mais divertidos em todos aqueles anos de amizade, desfizera-se num pesadelo e numa possível cena de horror. Com exceção de duas esposas, todos se conheciam desde a infância, cresceram no mesmo bairro, estudaram na mesma escola e sempre procuravam estar juntos. O feriado prolongado da Semana da Pátria prometia um fim-de-semana alegre agora jamais seria esquecido pela aquela turma de amigos. A viagem tinha sido planejada no inicio do ano, quando o mesmo grupo aproveitava as últimas horas da temporada de verão na praia.

Olavo foi tomado então por uma sensação muito estranha. Queria falar, mas sua voz não saia, enquanto era gravemente observado por alguns daqueles marginais. Tinha a nítida sensação de que as coisas não iriam ser boas e já se preparava para o pior. Olhou para os colegas e gesticulou intuitivamente para que todos tivessem calma. Na verdade queria dizer-lhes que tivessem confiança. Queria dizer-lhes também que não perdessem a fé em Deus , mas a voz parecia estar mais presa no peito aumentando sua angústia. Seus olhos encheram de lágrimas ao ver as crianças naquela expectativa angustiante. Olhava para cada uma delas e pensava “Deus”, “Confiança”, “Fé”, como se quisesse enviar-lhes esses pensamentos de força. Lembrou que essas palavras foram repetidas várias vezes pelo preletor do centro espírita no qual tinha ido tomar passes há mais de um ano, a convite da copeira da sua empresa e que sempre deixada sobre a sua mesa um folhetinho com mensagens que nunca tinha tempo de ler. Não recordava o rosto do preletor, mas não esqueceu que ele sempre sorria e repetia aquelas palavras, para ele soltas em frases incompreensíveis: “”Deus”, “Confiança” e “Fé”.

Antes de ter a sensação de que iria desmaiar, Olavo desfechou aquele que acreditava ser o último olhar para o seu amigo Paulo Henrique e abriu os braços pedindo a ele que corresse em sua direção. Paulo obedeceu e partiu para socorrer o amigo que lhe parecia estar tendo um colapso. Abraçou-o e sentiu que Olavo tinha algo escondido sob a camiseta. Apalpou e pegou a arma que lhe pareceu muito pesada e estranha. Voltou-se rapidamente e deu um tiro para o alto, enquanto gritava raivosamente para que os jovens se afastassem. Não podia vacilar e foi incisivo na segunda ordem, aproximando-se dos dois marginais que pareceriam ser os mais atrevidos. Olavo já estava no chão sendo socorrido pela esposa e Raquel se encarregou de motivar os outros a assumir a atitude de enfrentar os inimigos. Mas Paulo Henrique parecia estar tomado por uma grande força vingativa e fez com os jovens fossem rapidamente dominados, levando-os sob ameaça em direção ao canavial. Eles entenderam que agora estavam em desvantagem seguiram caminhando rapidamente com as mãos sobre as cabeças. A certa altura Paulo fez com que todos se deitassem de bruços. Estava ali com todos eles, dominados. Ricardo e Ivinho já estavam ao seu lado e o três passaram a compartilhar os mesmos sentimentos de ódio e vingança. “É preciso fazer justiça”, falava Ivinho. Tomando pela mesma sensação, Ricardo segurava nas mãos um dos facões tomados dos jovens e intimidava Paulo Henrique: "Vai, cára, eles iam matar todos nós. Se você não fizer isso agora eles vão fazer isso com outras pessoas e , quem sabe, com a gente mesmo. Se você não fizer, faço eu mesmo!"

Paulo já estava convencido e já havia tomado a decisão de atirar nos jovens. Não havia outro jeito de terminar aquela história de covardia e terror a que foram submetidos. Um dos jovens já tinha sido ferido por um golpe de Ricardo quando tentou correr para dentro do canavial. Paulo apontou a arma e disparou o primeiro tiro. Foi um barulho ensurdecedor, que ecoou fortemente pelo ar. Os jovens então ficaram inquietos e alguns deles entraram em desespero clamando pelo amor de Deus. Paulo já ia disparar o segundo quando ouviu a voz de Olavo dizendo: “Paulo, Paulo! Eu acabo de ver tudo. Eles já nos mataram uma vez, lembra? Atiram em nós dizendo que daquela vez finalmente iriam nos mandar para o inferno! Estávamos todos, Ricardo e Ivinho também, encostados num muro muito alto, cantando o nosso hino. Era o muro de um grande cemitério. Antes de atirarem em nós um velho padre tentava nos consolar dizendo “Crêem em Deus!” “Tenham confiança em Nosso Senhor e não percam nunca a esperança, pois uma dia todos iremos morrer e ressurgir para a eternidade!”. O padre também voltou!

A mão de Paulo ainda estava tremendo quando já podia-se ouvir o alarde de várias sirenes de carros da polícia se aproximando.

A pescaria tinha sido finalmente adiada. Paulo, ainda perturbado, pouco antes de dormir confessou para a esposa que naquela semana tivera um sonho. Durante uma pesca ele jogava uma grande rede no rio e ao puxar ficava desesperado ao ver que nela não tinha peixes e sim vários jovens agonizando. Gritava para os colegas Ivinho, Ricardo e Paulo Henrique , mas somente Paulo o atendia e ajudava-o a tirar os jovens da rede.

A vida segue normal. Os quatro continuam muito amigos. De vez em quando Olavo visita a região, talvez para superar um trauma que se instalou na sua alma. Mais tarde descobriu que era apenas uma cobrança da consciência. Quis saber quem eram os jovens daquele dia. Visitou anonimamente alguns onde estavam detidos e depois até teve coragem de conversar com aquele que era o mais agressivo. Todos o olhavam com desconfiança. Olavo sentia necessidade de dizer-lhes que não tinha raiva de nenhuma deles e que, na verdade queria se desculpar se alguma vez lhes fizera algum mal. Eles não entendiam muito bem o que Olavo dizia e só mudavam o semblante quando ele dizia que sempre orava por todos e que um dia todos iriam ser amigos. Voltou lá várias vezes e sempre levava roupas, tênis, livros. Conheceu também as duas jovens. Uma delas já era mãe e recebeu Olavo com sincera alegria. A outra era mais rebelde, mas foi mudando aos poucos quando percebeu que Olavo só queria ajudar. Depois que os jovens saíram da detenção, Olavo nunca mais os viu. Mais ainda faz oração por eles todos os dias antes de deitar-se.

Olavo sempre vai ao centro espírita assistir a preleção das segundas-feiras. Ao seu lado está Paulo Henrique. Quando o preletor começa a falar, Olavo vira-se para Paulo e diz: “Olha lá o nosso padre! Lembra?

 

 

30

Milton, pressa e papo reto.

 

 

Milton tem pressa de voltar para casa, busca rapidamente a estação Ana Costa do VLT.

São mais ou menos 21:40h.

Foi gravar um pod-cast na casa de um amigo.

O grande hipermercado que havia ali perto foi fechado há alguns meses e isso torna o lugar mais escuro e talvez inseguro.

Não é somente ele que está com pressa.


De longe, Milton observa um jovem segurando com cuidado uma embalagem de alimento.

 

Já próximo, pensou que o caminhante ia oferecer-lhe algo para comprar.

Nada a ver.

O jovem se posicionou ao seu lado e perguntou:

- Será que ela aceita alguém que já tem um filho”?

Antes da pergunta, já tinham trocado alguns olhares, Milton de desconfiança; e o jovem com semblante de preocupação e pedido de ajuda.

 
Milton responde secamente:

- Acha que isso vai te atrapalhar. Tá bem preocupado né...”

 

- Não sei se ela vai entender...

- Entendo... Medo de ser rejeitado né...

O jovem olha para a embalagem, que parecia ter dentro algo doce, sorri e acelera o passo.

Milton se despede:

- Boa sorte, tomara que dê certo!

 
O jovem nem olha para trás, mas levanta a embalagem mostrando sua arma de conquista.

 


 

 

31

Claudio conversa com Anjos da Guarda

 

 

Claudio é religioso. Mas também gosta de assuntos científicos que tentam explicar os mistérios da vida e do universo. Suas aulas são sempre recheadas de curiosidades sobre as civilizações antigas e também as novidades e descobertas sobre os planetas, galáxias e, mais recentemente, sobre os Buracos Negros, que engolem as estrelas e galáxias inteiras. 

 

Diz ele: “Tudo isso nos deixa pequenos e insignificantes diante da imensidão dos Cosmos”. 

Os alunos ouvem frases como esta, cheias de filosofia e misticismo, e ficam imaginando de onde ele tira essas conclusões. 

 

Mas, de todas as coisas que Claudio fala, o que mais assusta e intriga os alunos é quando ele diz que vai conversar com os Anjos da Guarda de cada um, para reclamar  do comportamento deles. 

 

O mais curioso é que quase ninguém questiona absolutamente nada sobre isso. Se espantam, riem e até reclamam estarem sendo vítimas de uma injustiça, pois nunca fizeram nada de grave para convocar seus protetores espirituais.

 

Entretanto, quando Claudio fala sobre isso, alertando que vai se reunir num só encontro e cara-a-cara com os anjos protetores e com os pais para uma conversa, na hora em que todos estão dormindo, a maioria muda o semblante e algo grave fica no ar. Pensam: ou ele está maluco ou então isso realmente pode acontecer e as coisas vão ficar ruins para eles. Alguns até ousam questionar essa possibilidade e logo são alertados: 

 

“Independente de vocês acreditarem ou não, eu vou conversar com eles e pedir que tomem providências. Eles sabem como agir e muitas vezes acontecem coisas que a gente nem conseguem explicar, mas sabemos que são intervenções, de todos os tipos, tomadas por eles  para conter abusos e risco de desvios de comportamento”

 

As reações ao  alerta são diferentes entre os alunos. Uns riem céticos; outros mudam o semblante, desconfiados de que o que está sendo falado tem algo muito muito sério, mesmo que não saibam explicar o que está acontecendo. Da última vez que alertou uma das classes, um dos alunos reagiu:

 

“Menos eu porque eu não participei de nada de ruim que eles fizeram. Tava quietinho aqui, na minha” 

 

Para alguns mais curiosos, que são bem poucos, Claudio explica como acontecem as reuniões:  

 

“São desligados do corpo durante o sono físico e conduzidos mentalmente para as colônias do Espaço de onde vieram todos eles. A presença dos pais é imprescindível. Estes também sofrem choques ao lembrarem do passado. A diferença é que o Anjo possui uma espécie de fichas contendo informações chocantes sobre eles: coisas que aconteceram nesta e noutras existências. São os pontos nevrálgicos e as causas de novas quedas e agravamento dos erros e medidas de regeneração.

  

Outro detalhe: quando estão em outra dimensão, o bloqueio do esquecimento do passado que todos temos, é rompido e vem à tona essas informações antigas que explicam esses impasses existenciais das encarnações.

 

Claudio toca nesse assunto com os alunos como uma ferramenta para combater a dispersão mental e provocar mudanças de comportamento voltadas para para a concentração, resgate de valores pessoais e familiares habilidade de concentração.  Anjos da Guarda ainda é uma crença muito forte na cultura religiosa popular. Mesmo não tendo noção do que o professor fala, muitos alunos ficam perplexos e impactados com essas abordagens. Ao fecharem os olhos para dormir, segundo relatos de alguns deles que têm problemas com insônia,  recordam o que foi dito e conseguem ter um sono mais tranquilo. E ingressam num universo completamente diferente de quando estão na carne. 

 

Professores que têm dificuldades com alguns alunos e classes procuram Claudio para pedir ajuda. Ele recomenda que entrem em sintonia mental com os Anjos da Guarda desses alunos, como uma experiência real possível (espiritual) para resolver conflitos e harmonizar o trabalho. Uma professora, Elisabeth, descreveu para ele uma cena em classe na qual uma mulher posicionou-se ao lado dela enquanto conversava com uma aluna. Presença estimulante, agradável e transformadora.


 

32

Marisa e Joel  tiveram um encontro

 

Luiza entrou na faculdade, como as demais alunas da classe, para buscar novas oportunidades onde trabalha e outros ambientes escolares mais estáveis e melhor remunerados. É um grupo majoritária mente feminino, com apenas dois ou três homens. Na classe tem jovens senhoras, como Luiza, já casadas em com filhos, e também alguma idosas. Mas as jovens, muitas ainda adolescentes, são a maioria. 

Nessa classe de quase 80 alunos estão misturados calouros de primeiro semestre de vários cursos de licenciaturas, matriculados numa disciplina comum. Epistemologia da Educação é o título do curso ministrado pelo professor Joel. Matéria complicada e considerada difícil, por ser muito teórica. O foco é o conhecimento, sua estrutura e principalmente sua apropriação. Ele explica inicialmente os graus e categorias de escolaridade e de autonomia intelectual, das primeiras experiências do ensino básico até as mais avançadas do ensino superior. Joel já passou por todas essas fases e que despertar seus alunos para esse processo de amadurecimento e autonomia. Entretanto, o ambiente acadêmico, rígido e científico, também é humano e nele acontece coisas que a ciência ainda não explica ou não quer explicar. 

Luiza e Joel trocam olhares humanos durante as aulas. No começo era pura curiosidade e admiração mútuas: pela oferta e pela busca do conhecimento. Mas com o  passar das semanas os olhares foram mudando de tom, assim com o os interesses. Luiza foi ficando introspectiva e mais preocupada consigo e de como o professor Joel também foi ficando diferente, mais sério e calmo (no começo era brincalhão e agitado). Os dois estão crise conjugal. Estão atraídos por afinidade de vivências. Algumas colegas de Luiza percebem o risco de um envolvimento mais profundo e tentam afastá-la de Joel. Outras incentivam e não escondem a admiração e curiosidade pelas consequências da situação. Os dois estão em compasso de espera. Esperando mais um semestre acabar e ver se algo diferente iria acontecer. E aconteceu.

Já estão no segundo semestre do curso. Joel agora ministra outra disciplina. A turma ficou mais compacta e o relacionamento também amadureceu e ficou mais próximo.  

Conversando com Joel pelas redes sociais, Luiza, ainda em pleno sofrimento existencial, foi tomada por uma forte sensação de deslocamento mental. Joel também ainda sofria. Ela recordou vivamente de um sonho que tivera durante a noite:    

“Essas fotos que colocou no Face, onde você nasceu, das pessoas e lugares, é estranho porque parece que eu já vi.

Tinha uma senhora com vestido e outra moça nova na cozinha.

Foi um sonho que tive no ano passado.

Essa senhora disse que estava com saudades de você, a moça era bem simples acho que estavam mortas.

Perto da lagoa tinha um senhor e outras crianças. Um menino se afogou e o senhor chorou muito. O menino estava morto creio que o senhor já faleceu.

Tinha fotos na parede do corredor da sala e uma mesa com fotos.

Alguns lugares era plano e outros era alto.

 Tinha uma festa, uma comemoração em um lugar alto e todos da cidade iam lá.

Você novo, as vezes criança. Estranho.

A senhora ressalta sempre que sente sua falta”.

 

Já se passaram quase dez anos. A cena descrita por Luiza ainda ecoa na mente de Joel. Não houve nada carnal entre os dois, só oportunidades e desejos passageiros. As crises pessoais foram superadas ou transformadas, cada um seguindo suas escolhas e destinos.

Joel sabe que a descrição de Luiza não foi apenas um impulso ou fantasia. De vez em quando sente que as pessoas citadas no relato de Luiza ainda estão perto dele. Uma delas já estava bem mais próxima. Era sua filha, na época com 12 anos de idade.  A senhora e o senhor continuam no outro plano, aguardando uma nova existência.   

 


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João Paulo, Gilson e a Torre Eiffel

 

João Paulo lembrou que precisava deitar e dormir. Estava tarde e, do contrário, não conseguiria chegar a tempo na primeira aula da manhã. Apagou todas as luzes e recolheu-se rapidamente para aproveitar as poucas horas de sono. Ao fechar os olhos percebeu a aproximação de algumas faíscas. Achou que era um efeito da luz do computador e que logo iria passar quando caísse no sono. Não era. As faíscas, muito fracas e amareladas, persistiam num incrível esforço de luminosidade, que foi diminuindo e depois apagando. Apesar de achar estranho e pensativo, conseguiu dormir.

No dia seguinte, à caminho da escola, voltou a pensar nas faíscas. 

O que teria sido aquilo? Um sinal, um pedido de socorro? 

Lembrou de Gilson, um aluno que conheceu ainda adolescente e que , volta e meia, encontrava nas calçadas do centro comercial da cidade. Alguns dias antes tinha visto na página dele no Facebook uma postagem de luto e despedida. Intrigado, buscou outra postagem, de apenas uma ou duas semanas antes. Nesta Gilson aparecia em Paris com um pessoa, a mesma que fez o texto do luto. Eles fizeram uma viagem rápida -tipo bate e volta-  sem hospedagem. Fizeram fotos em conhecidos pontos turísticos e finalizaram o tour na Torre Eiffel, ele entregando para sua acompanhante um buquê de flores.

No pensamento de João Paulo persistia uma dúvida que não deve ter sido somente sua: Quem vai a Paris celebrar cenas de realização e felicidade e dias depois tem sua morte anunciada dramaticamente, aparentando ter sido vítima de uma doença irreversível ou simplesmente um suicídio?

João Paulo continuou muitos dias intrigado com o desaparecimento de Gilson. A imagem dele com aquela garota embaixo da Torre Eiffel foi durante alguns dias uma persistente inquietação em sua memória. Questionou uma amiga que também havia sido professora de Gilson e teve como resposta uma chocante conclusão:

“Então ele não se decidiu. Uma pena...”

João Paulo concluiu ou imaginou mil coisas depois dessa observação da amiga. Mas preferiu responder em noites seguidas, aquilo que considerou um pedido de socorro do aluno que se foi. Para cada faísca apagada um pedido  para que Gilson voltasse a ter luz e buscasse um recomeço.

 

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Gabriel , Jerônimo e o ônibus veloz



O percurso entre o centro da cidade e o Planalto Bela Vista é tão rápido que muitas vezes os passageiros do ônibus se distraem em suas conversas e não percebem a chegada dos seus pontos de decida. “Vai descer, vai descer”, gritam alguns ao perceberem que serão levados para duas ou três quadras adiante. Alguns motoristas param, outros não.

Gabriel e Jerônimo se encontraram no centro, entre os pontos do Distrito Policial e do Hospital, reconheceram-se, tomaram assento e foram logo colocando a conversa em dia, cheia de lembranças e reflexões. Estavam tão concentrados e espontâneos que a maioria dos passageiros parecia estar atentos às suas trocas de ideias e impressões. Durante o percurso, que nesse dia foi mais rápido devido ao horário de pouco movimento no trânsito, Gabriel tornou-se ouvinte e observador enquanto Jerônimo colocou-se como narrador de vários assuntos de interesse comum entre eles. A conversa foi, na verdade, uma entrevista na qual um fazia perguntas curtas e o outro dissertava suas respostas com muita disposição.

Os dois amigos se conheciam há mais menos uns dez anos. Conheceram-se na faculdade onde Gabriel atuava como docente. Luiz Carlos, filho de Jerônimo, também tinha sido aluno de Gabriel, em outro curso da faculdade. Os dois tinham uma forte inclinação para a literatura, ele para a prosa e o filho para poesia musical. 


 Jerônimo, já aposentado e querendo realizar um antigo sonho, matriculou-se no curso de Matemática. A turma era pequena e não passava de 20 alunos. Gabriel não era dessa área e suas aulas nessa turma eram voltadas para os temas humanos da educação. Mesmo assim, fazia questão de ilustrar os encontros com temas diferenciados e recheados de curiosidades científicas e atualidades. Pretexto para tornar a abordagem de assuntos monótonos e repetitivos da legalidade do ensino e da educação. Diante da dureza e rigidez do currículo das especialidades exatas, as aulas de humanidades eram consideradas pela turma como um momento de lazer e higiene mental. Sempre motivo de alegria e disposição.

Enquanto Jerônimo narrava poética e despreocupadamente as últimas transformações ocorridas em sua vida, Gabriel calculava mentalmente a relação entre espaço, tempo e distância nas quadras que o ônibus avançava entre os pontos de parada. De olho no aluno e amigo, porém sempre atento à sucessão semáforos, colocados estrategicamente nos cruzamentos das ruas e avenidas. O ponto crítico do trajeto era o viaduto que separava os dois bairros. Terminada essa linha transitória elevada, o ônibus concluía essa passagem centro-bairro exatamente onde deveria descer.

Embora concentrado em sua fala, Jerônimo não estava totalmente desatento a esse contexto. Tanto que, antes que o ônibus virasse em uma esquina e se dirigisse ao elevado, ele alertou o amigo:

“Você vai descer logo, né”?

E continuou narrando o último episódio de mudanças pessoais, agora com mais gravidade. Lembrou que havia perdido a companheira e vinha fazendo um enorme esforço para manter as coisas nos devidos lugares. Em apenas duas quadras ele disse que esta foi a experiência mais difícil de todas que havia contado ao professor. Período de intensa solidão e de escolhas duvidosas. Mas conseguiu resistir às tentações dos sentidos evitando se aventurar em relações superficiais que jamais preencheria a ausência da mãe dos seus filhos. Esse último relato foi feito de forma sentida e comovente. Gabriel viu no rosto do seu antigo aluno - que não economizou elogios de reconhecimento à sua condição de professor – uma expressão de dor que há muito tempo ficou sem poder ser revelada. Não teve vergonha e nem ligou se as pessoas que ouviam a conversa saberiam o que se passava em seu coração. Sentiu-se aliviado. Gabriel colocou a mão no seu ombro e logo em seguida estendeu-a na posição despedida, trocando algumas palavras de reconhecimento e satisfação.

“Dá um abraço no Luiz Carlos!!!”.

Jerônimo respondeu imediatamente:

“Dou sim. Ele gosta muito do você”!!!


 

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Susana sonha e vê o futuro

  

Susana chegou em casa cansada, tomou banho, fez sua refeição assistindo vídeo youtube. E foi dormir. Dorme sempre assistindo vídeos. Seu pai espera ela cair no sono para desligar o celular.  Ao acordar pela manhã, geralmente despertada pelo cheiro de café, vai até a cozinha e relata seus sonhos para o pai. Neste ela contou um sonho que a impressionou muito. Mistura de profecia e incerteza sobre o futuro. 

A ponta da grande ilha, ao contrário do que é hoje, próspera e movimentada, é um cenário de destruição e abandono. Os prédios foram engolidos por uma floresta hostil e ameaçadora. Muitas crianças vagando pelas ruas em busca de alimentos e atenção dos adultos.  

Poucos segundos depois Susana está n outra ponta da ilha, há oito quilômetros. Ela percebe que um grupo de cientistas caminha na direção dos morros. Eles encontram cabeças de robôs enterradas no meio de um matagal. Ao desenterrá-las, acontece algo interessante: as cabeças começam a conversar entre sí por meio de códigos que ela não conseguiu decifrar. Os robôs reconstroem uma vila que havia sido destruída há muitos anos. Os cientistas se afastam e desaparecem. Susana também se afasta e caminha na direção de um lugar perdido no meio da floresta.  É uma vila e ali um professor e seus alunos se dirigem à uma feira. Ele conversa com os feirantes sobre a rotina diária enquanto os alunos observam o diálogo tentando extrair conhecimentos sobre o trabalho e experiências de vida. Os feirantes explicam de uma forma bem diferente como as coisas funcionam. Eles se expressam em versos rimados, muito parecidos com o cordel. Alguns versos são divertidos e engraçados; outros são mais carrancudos, puxões de orelha. Os feirantes alertam que os alunos, quando forem à feira, não podem andar de chinelos nem estar com o cabelo desarrumado. O professor agradece os ensinamentos e caminha com os alunos em busca de novas informações. 

Susana agora muda o semblante, porém não interrompe o relato.


No meio da feira eles encontram um caminhão. Na carroçaria está um homem alto, de cabelos loiros e óculos escuros. O professor inicia uma conversa com ele perguntando o que fazia ali e se poderia dizer algumas palavras para os alunos. Supreendentemente, o homem aparece com uma arma enorme e começa atirar para todos os lados. Susana se afasta, com se levantada pelo vento e, de cima, percebe que todos na feira estão mortos. Toda a vila fica envolvida numa fumaça branca, que arrasta tudo que ali estava para a parte mais densa da floresta e desaparece. 


Susana desperta com o cheiro de café. Antes de ir à cozinha, senta-se no braço do sofá e inicia o relato que tinha acaba de sonhar.   



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Lauro “Francês” e o vizinho “Pablo”. 

 

Durante alguns anos Lauro teve um vizinho muito curioso. Morava sozinho e já tinha mais de 80 anos. Era um espanhol que tinha vivido na França desde à juventude e lá se aposentou como professor primário. No Brasil sua renda valia mais. Tinha casa em São Paulo e esse pequeno apartamento veranista. Eram vizinhos de parede. Curiosamente ele chamava Lauro de “Francês”, apelido que sempre o fazia desconfiar que o vizinho achava que ele não gostava de tomar banho. Na verdade, quem tomava banho de vez em quando era o espanhol afrancesado.

 Na medida que os dias passavam os banhos do vizinho diminuíam. Foi ficando cada vez mais difícil a vida dele morando sozinho. E do vizinho também. Vez em quando ele começava a gritar, de madrugada. Todos já sabiam que que ele resolveu tomar banho e se acidentou no box. Dava um trabalhão, com bombeiros, ambulância, enfim, problema. 

Passando essas tempestades, tudo voltava quase ao normal.  Francês pra lá, Francês pra cá,  até que um dia o vizinho despareceu. 

Certo dia, pela manhã, a faxineira abriu o apartamento para ventilar e informou que o nosso vizinho de Lauro não ia voltar mais. Tinha falecido em São Paulo.  Um sobrinho dele herdou tudo e colocou o apartamento à venda. Precisava de outro maior para as temporadas, pois tinha uma família enorme e muito amigos. Lauro até pensou em comprar o apartamento do professor e ampliar seus metros quadrados, que eram poucos, mas desistiu quando foi verificar se valia a pena. 

Lauro já se mudou faz muitos anos, mas sempre que passa em frente ao prédio se lembra do vizinho, que aliás lembrava em quase tudo, fisicamente, o pintor Pablo Picasso: baixinho, careca, musculoso e sempre usando somente um calção. Nem chinelos ele usava. 

Lauro interrompe a caminhada, olha para o corredor de acesso ao bloco onde morava e tenta reviver a alegria e disposição do vizinho, professor como ele, saudando-o sorridente:


- “Ôooo, Francês”!!! 

Lauro até hoje não entende por que o velho professor o chamava desse jeito. Quem sabe um dia descobre.

 

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Vicente em Dé javu

Vicente sente-se só. Tem dia que não suporta solidão dos fins de semana. Angustiado e incomodado pelo tédio, sai de casa para uma caminhada. Sente que a tarde de domingo vai ser diferente. Ele é inexplicavelmente atraído para os mesmos lugares que o deixam deslocado da realidade.  Para manter o controle de si, inicia um relato mental , como se estivesse narrando um livro ou um filme.

NESSE INSTANTE minha mente está cheia de recordações. Meus olhos estão olhando para o chão molhado pela chuva de verão e meus ouvidos ouvem os repetidos trovões que anunciam que vai chover o dia inteiro, espantando os turistas que caminham pelo calçadão da praia e os que aproveitavam os últimos minutos de sol deitados sobre a areia.

Os ritmos da natureza ainda são a suprema força que movimenta o planeta. A chuva, o vento e os trovões despertam em mim a vontade de ver o mar e a arrebentação das ondas. É irresistível e faço isso há séculos. Antes tinha muito medo dos raios. Hoje sei que eles ainda caem por perto, mas conto com abrigos dos quiosques ou das marquises dos prédios perto da orla.

Saio de casa e em poucos minutos estou lá olhando o mar. Mais alguns minutos e duas ou três trovoadas são suficientes para eu ver a praia com outros olhos. Não tem calçadão, quiosques, não tem avenida asfaltada e edifícios altos. Não estão lá também os moles de pedras construídos para conter as ressacas, quebrando a mureta e inundando a rua. Ao redor só areia e o jundú rasteiro sobre as ondulações de terra. É a Mahuá, a pequena praia entre o Morro da Biquinha e a Ilha do Mudo, na qual deságuam alguns riachos, cavando sulcos na areia. Do outro lado da baía vejo o Morro do Japuí e parte da floresta do Xixová.

Já fazem duas décadas que o novo século começou e São Vicente está praticamente a mesma desde quando fui morar em São Paulo em 1985. Vejo na internet fotografias antigas da cidade, em diferentes épocas, e percebo que houve poucas mudanças nos pontos mais importantes. Algumas delas são repetitivas e banais, como o os cartões postais. Outras me causam sensações mais profundas, talvez porque registraram momentos, lugares e pessoas que conheci. Essas são emotivas e despertas muitas lembranças. Tenho essa habilidade natural de ler fotografias com o terceiro olho e parece que entro naquela cena registrada e tudo passa a ter três dimensões. Achei que era um fenômeno sobrenatural, mas logo desfiz essa impressão ao ler o livrinho de Boris Cosoy, catedrático do assunto, teórico e prático. O jeito como ele analisa as fotografias são descobertas de diferentes dimensões da mesma imagem. Com ele parece ser fria e racional; comigo acontece de forma temperamental e perturbadora. O mesmo acontece quando passo em algum lugar no qual sou tomado por desequilíbrios, coisa incontrolável, como um transe psíquico ou sonambúlico.

Sigo caminhando e conforme me aproximo do Itararé a paisagem retoma sua aparência de cidade grande e ouço barulho de carros em alta velocidade em direção a Santos. No fim da calçada entro na Praia dos Milionários, que está vazia de banhistas e com apenas alguns trabalhadores ciclistas que cortam caminho para evitar o trânsito da rua 11 de junho. Ali fico um bom tempo apreciando a baía, onde reina uma certa paz, proporcionada pelo silêncio do mar. Tento me recompor desses transes de memória, dos quais já me acostumei e que me deixam até mais senhor de mim mesmo. Antes ficava assustado e com a impressão de que a loucura havia se instalado em minha mente. Mesmo assim fico apreensivo porque, quando isso acontece, algo em seguida surge algo inesperado e só passa quando o coração não fica mais apertado.

Alguns minutos depois ouço alguém chamando repetidamente pelo meu nome. Era Isabela, filha de uma amiga que sempre encontro nesses passeios pela orla. Raramente conversamos e somente trocamos uma rápida saudação de reconhecimento. Dessa vez ela se antecipou e se dirigiu a mim de forma bem diferente. Estava sorridente e eufórica, muito inquieta. Disse que precisava me contar uma coisa. Estranhei, pois ela nunca havia me contado nada. Achei que era alguma fofoca que haviam contado sobre mim e que ela soube através da mãe. Nada disso. Me pegou pelo braço e disse que tivera à noite um sonho muito estranho. Começou a falar e já não estava mais sorrindo. Sua mão segurou mais forte o meu pulso e foi apertando na medida em que a história se desenrolava. Disse que estava na praia e foi surpreendida por uma tempestade. O céu foi ficando escuro, todos foram sumindo das ruas e ela foi ficando perdida e sozinha. Apavorada lembrou que morava por perto e dirigiu-se para o meu apartamento, já em meio ao caos que tomava conta da cidade, com chuva de vento e redemoinhos gigantescos que percorriam as ruas arrancando telhados, revirando carros, quebrado e arrancando vidraças. Já dentro da minha casa percebeu que as coisas haviam piorado com a ventania tirando pedaços dos prédios vizinhos. Os redemoinhos eram tão fortes e densos que forçavam e quebravam as janelas dos apartamentos. Ela tentava falar comigo pelo celular, pois eu não estava em casa; tentou falar com a mãe e com alguns amigos e ninguém atendia. Convenceu-se de que já estavam todos mortos. Tentando enxergar o mar, quando se aproximava da janela da sala, era logo atacada pela rajada de vento e pelas vergastadas de chuva sobre a vidraça. Ouvia muitas vozes que vinham de longe dizendo que a cidade estava sendo totalmente destruída pelo ciclone. Outros gritavam enlouquecidos: “É o Hipupiara, é o Hipupiara”. Acordou com esses gritos de desespero. Ainda era madrugada. Não dormiu mais. Só ficou mais calma quando me viu andando pela praia e pensou que eu havia tido o mesmo sonho. Percebeu que, embora não aparecesse no sonho, eu estava perto dela o tempo todo testemunhando a sua angústia. Disse, espantada, que nunca havia sonhado daquela forma tão intensa e verdadeira, embora estivesse totalmente fraca e impotente diante do que acontecia. Queria explicações. Respondi que não sabia explicar e nem soube que havia chovido tanto naquela noite, pois havia tido um sono muito profundo. Só não contei pra ela que , enquanto falava e segurava o meu pulso, vi tudo o que se passava naquela sonho, exatamente da forma como contou e como percebeu a minha presença nele. Isabela não estava inventando nem mentindo. O Hipupiara havia voltado com toda a sua fúria, a mesma fúria com que tinha destruído o Tumiaru e todas moradias da vila de Martim Afonso em 1540. Daquela vez foram somente algumas casas e o sino da igreja. Agora seriam os edifícios, os monumentos, muitos automóveis e motocicletas que iriam ser tragados pela fúria do mar. Enquanto Isabel falava e se aliviava daquele pesadelo, meu coração era tomado pelo pavor e a certeza de que a qualquer momento o mundo todo iria acabar, pois tinha visto que não era somente a cidade que foi tomada pelas águas. O mar havia chegado até a Serra, como era há cinco mil anos, antes de recuar e formar as ilhas, as praias e os morros. Depois que soltou meu pulso Isabela parecia ter tido um delírio semelhante a um transe sonambúlico que a fez esquecer tudo que me contara. Despediu-se sorrindo e saiu correndo para fugir dos pingos da chuva que voltaram após uma breve estiagem.

 


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Vicente reencontra Vicenzo
 

DALI MESMO fui até a Pedra do Sol. Ninguém por perto. Encostei numa das pedras tentando entender o que aquela pequena ventania queria me dizer. Entendi que era preciso subir a rua da Ilha Porchat, caminhando pela calçada do lado direito. Passando algumas casas , quase já no topo, tem o matagal de onde é possível ver Paranapuã e Itaquitanduba, as duas praias milagrosamente desertas, quase tão selvagem quanto na época da chegada dos primeiros europeus.

Sentei-me na mureta e continuei olhando o movimento das ondas entre a ilha e o maciço Xixová-Itaipu. Em alguns momentos tive a impressão de ter visto enormes bancos de areia e nelas, tombadas de maneira irregular, algumas torres pontiagudas de pedras. Não é um lugar comum. É um santuário protegido por forças desconhecidas e que desestimulam qualquer tentativa de civilizar aquele local.

Já é fim de tarde e vejo que há um movimento suspeito em Paranapuã. De longe dá prá ver que são jovens que perambulam pelas areias numa agitação alegre. São somente meninos, a maioria negros e mulatos, todos usando calção de mescla azul. Subitamente me vejo na praia junto eles e não sei como fui parar lá, no meio daquela correria. Também estava de calção, mas um calção branco meio encardido. De longe alguns homens altos e fortes, de braços cruzados, nos observam enquanto corríamos pela areia, depois do banho de vento. Ficamos ali brincando até cansar, quando alguns sentaram no chão, outros deitaram até que a euforia da brincadeira fosse vencida pelo cansaço.

Ao sinal dos vigilantes fomos todos entrando em fila por uma trilha até chegar em uma grande construção de tijolos e concreto, que parecia ser uma escola, mas não era. Uma placa de metal segurada por caibros de madeira informava que naquele local funcionava uma unidade da Fundação do Bem Estar do Menor-FEBEM.

Interessante que ao entrar na fila da volta da praia ninguém percebeu minha presença, a não ser alguns meninos que, como eu, estavam de calção branco e tinham feições de mamelucos e não dos mulatos e negros. Enquanto alguns se dirigiam para tomar água nos bebedouros ou tirar a areia dos pés nas torneiras, muitos permaneciam sentados num pátio onde aguardariam o jantar. Entre eles percebi que muitos não eram crianças e quando alguns deles percebiam a minha presença passavam a me olhar de forma diferente.

Uns se envergonhavam, outros sorriam e outros me desafiavam com reprovação e ameaça. Reconheci todos eles, lembrando os nomes e de quem eram filhos. Alguns poucos eram os primeiros caçadores do Bacharel e outros eram de outras épocas e lugares próximos, mas todos capturadores e mercadores de escravos.

Nem todos porque entre eles também estava o Padre Vicenzo, magrinho e esperto, sempre sorridente, mostrando-me um crucifixo de madeira e querendo me dizer que ali estava para aprender um pouco mais e cuidar de algumas almas queridas que ainda tinham muitos pecados para espiar. Acenei pra ele dizendo que morria de saudades das suas aulas de teatro e canto. Só não gostava da missa. Conhecia todas as famílias brancas e indígenas da região e tinha um inventário de tudo o que acontecia com elas, desde as crianças até os mais velhos. Perguntei onde estavam algumas delas e ele, em pensamento, me contou que tiveram diferentes destinos, mas sempre voltavam a São Vicente, de alguma forma. Ele as reconhecia nas ruas e tocavam em seus corações ao aproximarem e elas nem percebiam. Apenas davam gargalhadas ou então sentiam algum tipo de saudade inexplicável, como a que senti ao vê-lo sorrindo entre os meninos presos na FEBEM. Quis chorar naquele instante, porém ele me advertiu que eu poderia ser descoberto por alguns mamelucos ainda muito teimosos e revoltados, causando algum tipo de inquietação naquele local.

Padre Vicenzo lembrou que o governo já estava pensado em desativar os reformatórios em todo o estado e encontrar outra forma de educar essas crianças. Esse formato era muito perigoso e atraia muitas almas inimigas e vingativas, como nas prisões de adultos e hospitais psiquiátricos. Naquele momento recordava de todos os abusos e violências sofridas pelos nossos irmãos e que as mesmas coisas aconteceram com os africanos escravizados. “Até chegar a solução –disse o padre - já nos preparamos para enfrentar outras batalhas, pois os meninos já estarão adultos e poucos terão forças para se reajustarem com a lei. Daqui há algum tempo estaremos lá nas terras do Samaritá e em Mongaguá, reconduzindo as nossas almas perdidas”. Ele estava se referindo à construção dos presídios para adultos, na área Continental e no Litoral sul. Não entendi porque construir presídios ao invés de escolas. O padre sorriu e me fez entender que essas almas que acabam indo para os presídios são antigos mamelucos desviados para o crime e, por não aceitarem a educação, vão agravando seus débitos. Todas as cidades que foram fundadas a partir da corrupção e destruição de núcleos indígenas hoje abrigam esses criminosos em presídios e também nos educandários prisionais para jovens. Como é um sistema imperfeito e agravado pelo convívio pernicioso, a maioria não consegue se regenerar. Não há outra solução no momento senão a de curar pelas semelhanças.

Padre Vicenzo vem atuando nesse setor há muitas gerações. Quando o Paraná ainda fazia parte da Capitania de São Paulo, ele foi encarregado de reeducar um grupo de soldados rebelados que foram condenados ao isolamento na colônia de Catanduvas. Os soldados eram do regimento de Santos, a maioria com idade entre 18 e 24 anos, entre eles muitos vicentinos. Desolados pela condenação injusta, aqueles soldados só puderam avaliar a gravidade dos seus gestos quando receberam a sentença que destruiria suas esperanças pelo resto de suas vidas. Pensavam em fuga ou suicídio, o que era praticamente a mesma coisa viver para sempre numa região tão distante e selvagem. Vicenzo sabia que aqueles jovens não eram tão inocentes e injustiçados quanto eles pensavam. A memória do padre ia além daquela existência frustrada pela condenação. Todos eram mamelucos que participavam de incursões criminosas para expulsar os índios de suas terras, a serviço de fazendeiros ambiciosos. As incursões eram traiçoeiras, violentas e cruéis e não poupava nem as crianças, que tinham seus crânios esmagados pelo cabo das espingardas. Viam os índios como animais que atrapalhavam a criação de gado e o plantio das lavouras. Muitos desses grupos expulsos ou mortos por eles se reuniram nessa região do Paraná e continuaram sofrendo com a ambição dos fazendeiros. Perguntei o que aconteceu com os rapazes e ele me respondeu que havia feito um plano de regeneração para cada um deles. Obteriam anistia da pena de 20 anos se constituíssem família com as mulheres indígenas da Colônia, já educadas para esse fim. Aceitando a proposta, eles receberiam terras se estabelecerem como sitiantes. Nem todos conseguiram honrar o compromisso, entretanto os que se firmaram nessa promessa colheram bons frutos naqueles dias e também em outros tempos que viriam. “E os que desertaram”? perguntei. Padre Vicenzo respondeu que alguns deles estavam ali no reformatório de Paranapuã, aguardando dias melhores.

Acordei desse cochilo rápido e, ainda impressionado, voltei para a praia. Já estava escurecendo e meu estômago pedia um café com bolo. Na caminhada em direção ao centro, sempre com a imagem dos caçadores mamelucos e do Padre Vicenzo, vinha pensando onde iria encontrar um lugar que tivesse um bolo pronto para vender, de preferência bolo de fubá. Lá resolveria, dependo do calor, se tomaria café ou um guaraná bem gelado para acompanhar o bolo.

 

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Vicente redescobre a Bicicleta

 

Dali mesmo fui até a Pedra do Sol. Ninguém por perto. Encostei numa das pedras tentando entender o que aquela pequena ventania queria me dizer. Entendi que era preciso subir a rua da Ilha Porchat, caminhando pela calçada do lado direito. Passando algumas casas , quase já no topo, tem o matagal de onde é possível ver Paranapuã e Itaquitanduba, as duas praias milagrosamente desertas, quase tão selvagem quanto na época da chegada dos primeiros europeus.

Sentei-me na mureta e continuei olhando o movimento das ondas entre a ilha e o maciço Xixová-Itaipu. Em alguns momentos tive a impressão de ter visto enormes bancos de areia e nelas, tombadas de maneira irregular, algumas torres pontiagudas de pedras. Não é um lugar comum. É um santuário protegido por forças desconhecidas e que desestimulam qualquer tentativa de civilizar aquele local.

Já é fim de tarde e vejo que há um movimento suspeito em Paranapuã. De longe dá prá ver que são jovens que perambulam pelas areias numa agitação alegre. São somente meninos, a maioria negros e mulatos, todos usando calção de mescla azul. Subitamente me vejo na praia junto eles e não sei como fui parar lá, no meio daquela correria. Também estava de calção, mas um calção branco meio encardido. De longe alguns homens altos e fortes, de braços cruzados, nos observam enquanto corríamos pela areia, depois do banho de vento. Ficamos ali brincando até cansar, quando alguns sentaram no chão, outros deitaram até que a euforia da brincadeira fosse vencida pelo cansaço.

Ao sinal dos vigilantes fomos todos entrando em fila por uma trilha até chegar em uma grande construção de tijolos e concreto, que parecia ser uma escola, mas não era. Uma placa de metal segurada por caibros de madeira informava que naquele local funcionava uma unidade da Fundação do Bem Estar do Menor-FEBEM.

Interessante que ao entrar na fila da volta da praia ninguém percebeu minha presença, a não ser alguns meninos que, como eu, estavam de calção branco e tinham feições de mamelucos e não dos mulatos e negros. Enquanto alguns se dirigiam para tomar água nos bebedouros ou tirar a areia dos pés nas torneiras, muitos permaneciam sentados num pátio onde aguardariam o jantar. Entre eles percebi que muitos não eram crianças e quando alguns deles percebiam a minha presença passavam a me olhar de forma diferente.

Uns se envergonhavam, outros sorriam e outros me desafiavam com reprovação e ameaça. Reconheci todos eles, lembrando os nomes e de quem eram filhos. Alguns poucos eram os primeiros caçadores do Bacharel e outros eram de outras épocas e lugares próximos, mas todos capturadores e mercadores de escravos.

Nem todos porque entre eles também estava o Padre Vicenzo, magrinho e esperto, sempre sorridente, mostrando-me um crucifixo de madeira e querendo me dizer que ali estava para aprender um pouco mais e cuidar de algumas almas queridas que ainda tinham muitos pecados para espiar. Acenei pra ele dizendo que morria de saudades das suas aulas de teatro e canto. Só não gostava da missa. Conhecia todas as famílias brancas e indígenas da região e tinha um inventário de tudo o que acontecia com elas, desde as crianças até os mais velhos. Perguntei onde estavam algumas delas e ele, em pensamento, me contou que tiveram diferentes destinos, mas sempre voltavam a São Vicente, de alguma forma. Ele as reconhecia nas ruas e tocavam em seus corações ao aproximarem e elas nem percebiam. Apenas davam gargalhadas ou então sentiam algum tipo de saudade inexplicável, como a que senti ao vê-lo sorrindo entre os meninos presos na FEBEM. Quis chorar naquele instante, porém ele me advertiu que eu poderia ser descoberto por alguns mamelucos ainda muito teimosos e revoltados, causando algum tipo de inquietação naquele local.

Padre Vicenzo lembrou que o governo já estava pensado em desativar os reformatórios em todo o estado e encontrar outra forma de educar essas crianças. Esse formato era muito perigoso e atraia muitas almas inimigas e vingativas, como nas as prisões de adultos e hospitais psiquiátricos. Naquele momento recordava de todos os abusos e violências sofridas pelos nossos irmãos e que as mesmas coisas aconteceram com os africanos escravizados. “Até chegar a solução –disse o padre - já nos preparamos para enfrentar outras batalhas, pois os meninos já estarão adultos e poucos terão forças para se reajustarem com a lei. Daqui há algum tempo estaremos lá nas terras do Samaritá e em Mongaguá, reconduzindo as nossas almas perdidas”. Ele estava se referindo à construção dos presídios para adultos, na área Continental e no Litoral sul. Não entendi porque construir presídios ao invés de escolas. O padre sorriu e me fez entender que essas almas que acabam indo para os presídios são antigos mamelucos desviados para o crime e, por não aceitarem a educação, vão agravando seus débitos. Todas as cidades que foram fundadas a partir da corrupção e destruição de núcleos indígenas hoje abrigam esses criminosos em presídios e também nos educandários prisionais para jovens. Como é um sistema imperfeito e agravado pelo convívio pernicioso, a maioria não consegue se regenerar. Não há outra solução no momento senão a de curar pelas semelhanças.

Padre Vicenzo vem atuando nesse setor há muitas gerações. Quando o Paraná ainda fazia parte da Capitania de São Paulo, ele foi encarregado de reeducar um grupo de soldados rebelados que foram condenados ao isolamento na colônia de Catanduvas. Os soldados eram do regimento de Santos, a maioria com idade entre 18 e 24 anos, entre eles muitos vicentinos. Desolados pela condenação injusta, aqueles soldados só puderam avaliar a gravidade dos seus gestos quando receberam a sentença que destruiria suas esperanças pelo resto de suas vidas. Pensavam em fuga ou suicídio, o que era praticamente a mesma coisa viver para sempre numa região tão distante e selvagem. Vicenzo sabia que aqueles jovens não eram tão inocentes e injustiçados quanto eles pensavam. A memória do padre ia além daquela existência frustrada pela condenação. Todos eram mamelucos que participavam de incursões criminosas para expulsar os índios de suas terras, a serviço de fazendeiros ambiciosos. As incursões eram traiçoeiras, violentas e cruéis e não poupava nem as crianças, que tinham seus crânios esmagados pelo cabo das espingardas. Viam os índios como animais que atrapalhavam a criação de gado e o plantio das lavouras. Muitos desses grupos expulsos ou mortos por eles se reuniram nessa região do Paraná e continuaram sofrendo com a ambição dos fazendeiros. Perguntei o que aconteceu com os rapazes e ele me respondeu que havia feito um plano de regeneração para cada um deles. Obteriam anistia da pena de 20 anos se constituíssem família com as mulheres indígenas da Colônia, já educadas para esse fim. Aceitando a proposta, eles receberiam terras se estabelecerem como sitiantes. Nem todos conseguiram honrar o compromisso, entretanto os que se firmaram nessa promessa colheram bons frutos naqueles dias e também em outros tempos que viriam. “E os que desertaram”? perguntei. Padre Vicenzo respondeu que alguns deles estavam ali no reformatório de Paranapuã, aguardando dias melhores.

Acordei desse cochilo rápido e, ainda impressionado, voltei para a praia. Já estava escurecendo e meu estômago pedia um café com bolo. Na caminhada em direção ao centro, sempre com a imagem dos caçadores mamelucos e do Padre Vicenzo, vinha pensando onde iria encontrar um lugar que tivesse um bolo pronto para vender, de preferência bolo de fubá. Lá resolveria, dependo do calor, se tomaria café ou um guaraná bem gelado para acompanhar o bolo.

 


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Vicente fala, lê e escreve coisas estranhas

 

Quando o Brasil ainda era Pindorama e não havia tantos portugueses dando ordens e cobrando impostos, a nossa terra era realmente um paraíso dos trópicos. Um mar imenso, que nos dias ensolarados era verde claro, transparente e que nos dias nublados tinha a cor cinzenta de ardósia. A floresta era sempre verde e densa, refletindo sua escuridão nas águas do mar, protegendo a terra do calor e das chuvas torrenciais que aconteciam entre as estações. Quem caminhasse na praia, de dia ou de noite, olhando o azul infinito ou seduzido pelas luas, tinha a impressão de estar no paraíso, o Pindorama dos Sonhos. Mas não era impressão. Era o paraíso mesmo. 

 

Nessa época já se viam muitos navios passando pra lá pra cá e, de vez em quando, um deles estacionava na grande ou na pequena enseada e ali ficava por algum tempo até que alguns tripulantes descessem uma embarcação menor , entrassem dentro dela e remassem em direção à praia. Ouvia-se nesse instante alguns gritos vindos da casa do alto do mastro da embarcação indicando a direção da terra, quebrando o silêncio, indicando o rumo que o pequeno bote deveria tomar. Alguém no bote sempre gritava de volta: 

- Cala essa boca que já estamos quase na areia!!! 

A língua estranha é essa que agora falo e escrevo com naturalidade, tão natural como o tupy que todos falávamos. Só não sabíamos escrever porque não era necessário. Tudo que era necessário estava guardado na memória e os mais velhos nos ensinavam a não esquecer essas coisas importantes que mais tarde seriam uteis. Entre nós já existia alguns homens iguais ao que desciam dos navios estacionados, homens que sobreviviam aos naufrágios e viam dar na praia, desesperados, famintos e cansados de nadar. Homens marcados pelo degredo e homens do naufrágio, cujas embarcações se despedaçavam nas pedras ou simplesmente afundavam durante as tempestades. O mais calmo deles era o náufrago Ramalho, que andava nu e percorria todos os lugares atrás de riquezas e novidades. Era muito curioso e queria saber de tudo o que existia e também o que acontecia em nosso e nos outros pindoramas. Era um homem de estatura média, cabelos encaracolados e, como todos daquela época, usava uma volumosa barba que lhe servia marca de honra e coragem. Sua aparência e comportamento revelava que tinha sido alguém importante em Vouzela, sua cidade natal, pequena vila distante três horas de Lisboa. Figura misteriosa que até hoje ninguém sabe como e por quê veio parar no Brasil, se por impulso aventureiro e ânsia de vencer na vida ou por causa de um grave erro cometido ou ainda vítima de perseguição religiosa. Nessa última hipótese ele poderia ser um cristão novo ou judeu convertido, tese pouco provável pois nunca levantaram tal suspeita durante seus embates políticos ou negociatas permitidas somente aos cristãos de tradição. 

Havia também o Bacharel, degredado que falava um pouco diferente do Ramalho e do Rodrigues, um sotaque mais duro e de som estridente e sibilado, que combinava muito bem com o seu jeito mandão e agressivo. Esse era o Fernandes, como o chamavam os outros brancos e depois todos nós. Cosme Fernandes era judeu-espanhol, muito ligado aos negócios do Porto de Lagos, principal porta de entrada de escravos na Europa. Fernandes olhava o tempo todo para o mar, procurando navios. Ramalho e Rodrigues olhavam o tempo inteiro para as montanhas. O Bacharel era habilidoso com as mãos e muito inteligente para fazer planos. Queria que o lugar fosse atraente e despertasse a atenção de outros navios com os quais pudesse fazer negócios de trocas. Andava sempre acompanhado de muitos de nós, que pensavam e agiam como eles, ávidos pelas novidades de ferro, panos para o corpo, armas mortais para caça e guerra. Era um pequeno exército pronto para o combate em defesa da terra e dos negócios. Junto com Fernandes eles construíram um pequeno porto atrás da Ilha do Sol, no pequeno mar, onde tinha outra saída para o Atlântico, próximo ao Piaçabuçu, o grande rio que vinha da montanha. Era um lugar seguro e protegido de tempestades e de malfeitores do mar. Junto ao morro do Japui fizeram um capão com algumas cabanas, uma grande casa de pedras e ao redor delas plantaram raízes, legumes, grãos, frutas e criavam animais que conseguiram dos navios que passaram a aportar ali com mais frequência. Ao lado do porto construíram também uma oficina de embarcações, onde faziam reparos e até outros navios, de encomenda. 

Fernandes sabia recompensar os nossos irmãos que andavam com ele, dando-lhes coisas valiosas e ensinando outras que eram úteis no dia a dia. Eles o acompanhavam aos lugares próximos e distantes, para fazer negócios, como na Cananéia, quatro dias e noites para o sul, onde havia outros brancos iguais a eles. Esses cananeus eram mercadores de escravos, capturados nos pindoramas espalhados naquela região e também no Peabiru, enquanto caminhavam pela floresta. Nossos irmãos capturados, geralmente meninos e meninas, eram entregues nos navios e dali eram levados à Europa, onde eram revendidos. As meninas eram oferecidas nas casas ricas ou nos bordéis, que as transformavam em mercadorias sexuais exóticas. Os meninos ser tornavam serviçais até ficarem velhos, alcoólatras e moribundos, jogados pelas ruas das cidades portuárias da Espanha ou da França. No começo as capturas de escravos eram escondidas, para evitar o temor nos pindoramas mais próximos das praias. Com o tempo elas se tornaram mais frequentes, causando estranhamento e desconfiança em todos. Elas eram ensinadas aos nossos irmãos pelos velhos marinheiros que conheciam as artimanhas da captura. Esses marujos eram contratados nos portos do Mediterrâneo, sobretudo em Lagos. Os nossos irmãos antigos, que se misturaram com eles, foram se afastando e deixando de ser nossos irmãos, passando a nos tratar como estranhos e até inimigos. Já não falavam mais o tupy e se acostumaram a usar roupas e botas. Passamos a chamá-los de mamelucos, gente traiçoeira e perigosa, doentes da cabeça e dominados pela ambição. 

A Ilha do Sol foi ficando mais distante de Gohayó. Nem o Ramalho e o Rodrigues gostavam de ir lá porque o Fernandes e seus filhos mamelucos os estranhavam. De tempos em tempos o grande chefe Tibiriçá vinha de Piratininga, depois da montanha, onde morava, até a Gohayó. Fazia muitas perguntas para Ramalho e para Rodrigues sobre o Fernandes e os mamelucos dele. Ramalho ficava quieto e contrariado, com medo que Tibiriçá os atacasse com seus guerreiros. Não gostava de Fernandes, mas não queria afastá-lo por causa dos negócios. Tibiriçá não entendia muito bem o que Ramalho lhe explicava, porém ficava intrigado, embora confiasse no seu genro. Quando isso acontecia, Ramalho procurava distrair Tibiriçá convidando-o a caminhar e mostrar as coisas que tinha descoberto. Andavam o dia inteiro sem se cansarem. Voltavam já “à tardinha”, com diziam os brancos, quando o sol estava se pondo. Tibiriçá queria saber como o Fernandes tinha feito aquela oca de pedras. Queria fazer ocas iguais no Piratininga, para ele e para seus filhos. Ramalho prometeu descobrir e ensinar, explicando que teriam que encontrar e carregar muitas pedras. 

Tibiriçá não ia a lugar nenhum sem Bartira, sua filha mais forte e atirada, que queria ser guerreira, mas por ser mulher não deveria lutar como os homens do pindorama. Foi por isso que Tibiriçá deu Bartira para Ramalho, dizendo a ela que o amigo precisava aprender a ser igual a eles e governar os pindoramas quando ele fosse morar em Alvorada Nova, lugar dos mortos que ficava dentro das águas das cachoeiras. Os brancos mortos diziam que ao morrerem iriam para o céu, lugar feliz; ou para o inferno, lugar triste e escuro, onde se reuniam os maus e os mamelucos. Nossos mortos de coração limpo caminhavam até as cachoeiras e ali encontravam uma porta que os levavam ao lugar onde as manhãs só acabavam quando as noites enluaradas ocupavam o lugar do dia, cheias de encantos e mistérios. As manhãs eram sempre novas, depois das noites de lua, quando reencontravam seus entes queridos que já tinham partido e também todos os animais caçados, que haviam morrido para que se alimentassem.

Nem Tibiriçá nem Ramalho acreditavam muito nessas histórias, geralmente contadas por Bartira a eles, aos seus filhos e netos. Mas todos ouviam em silêncio, com curiosidade, medo e respeito, até que ela terminasse. Bartira vivia tendo sonhos premonitórios nos quais chegavam muitos navios e que neles estavam guerreiros que lutavam furiosamente contra Fernandes e os mamelucos. Nos sonhos ela e Ramalho eram gigantes e estavam no mar quando os navios passavam entre as suas pernas, sem que fossem tocados ou molestados dirigindo-se à praia com tochas de fogo em busca dos mercadores de escravos. Bartira acordava assustada querendo conversar e compreender o que significava esses sonhos, porém Ramalho a distraia com histórias sobre o lugar distante onde havia deixado seis pais e seus irmãos, dizendo que um dia todos iriam para lá visitá-los. Bartira pegava no sono novamente enquanto Ramalho permanecia acordado pensando no sonho da esposa índia e nos seus sonhos de homem branco.

 

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Ave Maria

 

O professor João, espírita convicto, descreveu para os amigos do Facebook sua viagem ao Vale do Paraíba, em companhia de sua namorada católica. Muitas curtidas e comentários, alguns reforçando suas impressões, despertando memórias, reacendendo a fé e o entusiasmo religioso e turístico.

  “Neste final de semana fui conhecer o Santuário Nacional de Aparecida do Norte.

Fé e concepções religiosas à parte, é um lugar muito interessante, catalisador de energias mentais poderosíssimas, despendidas por milhares de romeiros de todos os tipos e procedências, a maioria gente simplória, cheia de respeito e muitas esperanças.

O turismo é muito curioso e baseado no relato dos pescadores que encontraram a imagem da Santa em 1717.

 Observei detalhadamente a arquitetura da Basílica, sua posição geográfica, seu exterior, seus múltiplos interiores; subi na torre de 100 metros e visitei os dois museus que ela abriga.

Naveguei no rio Paraíba do Sul.

 Pensei, refleti, comparei, discuti, orei, constatei a intensidade da vida extrafísica do lugar. 

Me emocionei ao lembrar da minha avó materna e da madrinha (as romeiras Maria e Manoela), tendo a impressão viva de que elas me visitaram em alguns momentos.

 Vi padres bem velhinhos recebendo confissões e liberando as pessoas de suas culpas e tormentas.

Vi jovens sacerdotes orientando o comportamento político na missa.

 Vi tantas coisas que nem um livro seria suficiente para registrar minhas impressões. 

Vi um helicóptero chegando e saindo do Santuário, carregando alguém ou coisas importantes.

Voltei mais convicto na minha certeza e mais crente na simplicidade dos que creem.

Tudo por Marta e Maria.

15 de dezembro de 2015

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SOBRE O AUTOR

Dalmo Duque já escreveu duas ficções: “Estação Amizade- Dez jovens lutando contra o suicídio” e “2036, uma jornada além da Data Limite”.  Como historiador, escreveu “Como Vai Você – CVV, 50 Anos ouvindo pessoas” (Editora Aliança), sobre a ONG mais importante de prevenção do suicídio nas Américas. É autor da Nova História do Espiritismo- Dos Precursores de Allan Kardec a Chico Xavier (Editora do Conhecimento)

 


 

  

 




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