08/07/2019

ARTES E MOVIMENTOS POPULARES




A FEIRA HIPPIE DA BIQUINHA

ANOS 70-80


Foto da Praça 22 de Janeiro ilustrando a revista turística São Vicente nos anos 1970. Publicação original: São Vicente de Outrora. Nela aparece , além do trenzinho turístico algumas barracas de alimentação montadas durante a Feira Hippie.


Foi uma dos mais importantes eventos culturais e turísticos da Baixada Santista. Artistas e artesãos da região, da Capital , interior e outras regiões do Brasil vinham expor seus trabalhos aqui. Além da feira , havia shows musicais populares , como o de Inezita Barroso, Giane e Luiz Airão. A Feira Hippie, na verdade instalada na Praça 22 de Janeiro, era uma referência nos currículos para expor em outros eventos.
A poetisa e ativista cultural Deise Domingues, membro da Academia Vicentina de Artes e Ofícios, tem uma lembrança viva da Feira Hippie. Ela trabalhou no arquivo da Secretaria de Turismo e depois na Secretaria da Cultura. Deise lembra que a feira era muito bem controlada e que havia um livro de participação e frequência dos expositores, cujo limite de faltas era de três ausências no mês. Ela mesma levava o livro para a praça 22 de Janeiro. Segundo ela, não tinha apenas artesanato, mas também gastronomia, sobretudo barracas de pastel e comida baiana, que atraía muitos turistas. A feira de doces da Biquinha era muito próximo, o que torva o evento muito frequentado. Os artistas plásticos, os pintores, ficavam separados e tinham um público específico. Deise conta que, numa determinada época eles foram totalmente separados e transferido para o Largo Tomé de Souza, no Gonzaguinha, em frente à subestação de esgoto. Como o cheiro era muito forte, acabaram voltando para a 22 de Janeiro. Ela também explicou que a feira foi perdendo a força com as trocas de prefeitos, que preferiam dar ênfase em novos eventos. 

Na memória de Deise não poderia ficar de fora a lembrança do casal de artistas plásticos Jorge e Denise, já falecidos. Eles foram os mais antigos e constantes expositores da feirinha.

Entre outros artistas marcantes que Deise Domingues recordou está Sônia Vezzá, autora dos desenho original do monumento da praça Heróis de 32, conhecido popularmente como "soldado assustado". Desconstruindo a narrativa pictórica romântica, Sônia inclinou para o realismo, mostrando um soldado comum, voluntário e sem treinamento militar profissional, típico do movimento constitucionalista, alguém tomado pelo medo, mas que morreria assim pela pátria paulista. Os tradicionalistas de uma associação de admiradores da causa ufanista de São Paulo não gostaram desse estilo. Décadas depois, acabaram trocando a cena por uma soldado de aparência agressiva e mais próximo do heroísmo mítico. Junto com essa reforma se foram também os versos do poeta Lulu da Melodia (autor da letra do Hino de São Vicente), gravados no topo do pequeno obelisco. 

Com a ajuda de antigas amigas, Deise trouxe também à tona o nome de mais dois artistas expositores da feira: Mercedes Peres e do Professor Arnold, conhecido docente de arte da região.


Carteirnha de identificação de José Carlos "Índio" da Silva, publicada numa postagem na página São Vicente de Outrora.



FESTAS E QUADRILHAS JUNINAS






Versão de 1970 dos concursos iniciados oficialmente em 1963. O evento teve oito grupos representantes dos bairros e segmentos vicentinos e também grupos folclóricos de Santos. Destaque especial na comissão julgadora: Maestro Jesus de Azevedo Marques, diretor de Cultura Artística e autor musical do Hino de São Vicente. 

Anúncio no Cidade de Santos, 26 de junho de 1970. Publicação: São Vicente na Memória. 

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RODOLFO RONDON


Outro artista que teve o início da sua carreira de sucesso e reconhecimento na Feira Hippie foi o pintor Rodolfo Rondon, santista de nascimento e radicado em Praia Grande há mais de quatro décadas. Ao falar sobre Feira Hippie,  Rondon muda a fisionomia introspectiva que lhe é peculiar e rapidamente se extroverte com sorriso e brilhos nos olhos. Perguntamos rapidamente algumas coisas sobre o famoso evento vicentino e ele logo recorda que foi um dos dez primeiros escolhidos para compor o grupo dos primeiros artistas da feira. A escolha foi feita pelo Departamento de Cultura, que funcionava num casarão na rua João Ramalho. Ali aconteceu um processo seletivo para escolher e depois cadastrar os expositores em suas respectivas modalidades, processo que era feito através de um teste de aptidão. Antes disso  Rondon percorria todas a cidades da região com um grupo de amigos artistas exibindo seus trabalhos nas calçadas da orla ou em algum evento que atraia grande público. Nessa época ele morava em São Vicente,  no Beira Mar,  escolheu, como muito outros hippies como ele, expor seus quadros e pintura sobre sobre tecidos no Gonzaguinha, em frente a uma bar muito badalado, chamado " 3 Ondas" e também a sorveteria Caramba, o pontos mais badalados, que ficavam entre a rua José Bonifácio e Gáudio. Ali, por estarem muito em evidência, eram constantemente incomodados pelo "Arrastão", uma tropa policial que passava apavorando e  confiscando o material de trabalho dos artistas. Foi daí que surgiu a ideia, por parte da prefeitura, de escolher e organizar um espaço somente para os artistas de rua. "Isso aconteceu no verão entre 1972 e 1973, quando fomos para a Biquinha para formar o primeiro grupo de artistas da Feira Hippie", lembra o pintor, listando na memória essa sequência de expositores fixos:
 
O grande Mestre Albertini, escultura em argila, na categoria modelagem;

Kaká e também o Ortigão, com brincos, colares e pulseiras, confeccionados em metal;

Os irmãos João e Chico das Bolsas, bolsas de sisal e pontos de macramé; e suporte de vasos. Tinham um atelier na rua Guarani. Eu morava próximo, no conjunto habitacional Iracema, entre a rua Carijós e Tamoios, próximo ao Lar Vicentino. 

Rondon também se entrosava com uma outra turma de artesãos: "Perto de onde eu morava tinha os gêmeos Kiko e Lito, que faziam o shape para skate. Eles faziam e eu pintava sobre a superficie modelada".

 " Suporte de vasos em ponto macramé. Quantos eu fiz, meu Deus. Aliás, eu sempre gostei de fuçar as técnicas. Também trabalhei com o João da Bolsas na confecção de cintos. Ele usava um bordão:
'Acocha, menino", que era "Apertar". KKK.  Agora estou recordando momentos de 52 e 53 anos passados, tudo muito loko... Tinha uma outra turma, que podemos dizer 'hippie de final de semana', aqueles que não produziam, só pegavam os materiais para vender, como bolsas, cintos e outros.
Quando eu parti para a pintura em tecidos, os visuais em camisetas, os "visuais do Rodon", como a galera me chamava.  Naquela época o Rondon não havia entrado em cena. Rondon se deu quando quando eu assinei meu primeiro trabalho, depois de dez anos pintando. Assim surgiu a minha identidade artística - R. Rondon -desde 1978. Vou escrevendo , daí vem toda a história na minha memória...
Um fato interessante, tinha um maluco (como éramos chamados), o Alemão do Itararé, ô cara doido e me deixava mais doido ainda. Toda semana ele pegava  dez ou 15 camisetas que eu pintava e ele saía a vender por São Vicente. Lembrando que foi ali com meu cobertor feito suporte que eu também dormia
 na areia das praias. Era o mesmo cobertor que eu estendia para vender meus quadros"

Teve uma fase que o pintor decidiu cair na estrada e foi mostrar seus trabalhos de pintura nas feiras da Grande São Paulo, como a de São Caetano e a da Praça da República. O ponto que ele mais recorda foi Parque Trianon, em frente ao MASP, onde tinha um grupo muito bom de artistas de rua. A Selma, que aparece na foto de chapéu vermelho,  era a coordenadora do Espaço Cultural Trianon e nos dava todos o suporte necessária para o a exposição. O estandes eram muitos simples. 

Rondon na feira dos artistas de rua do Espaço Cultural Trianon, em São Paulo. Acervo Pessoal. 


Alguns anos depois dessa fase paulistana, na qual a cidade era muito frequentada por turistas e veranistas, vamos encontrar Rodolfo Randon entre os 42 expositores da Expo Arte 78, salão organizado em Praia Grande para comemorar o 60º aniversário da Fortaleza de Itaipu, evento que foi organizado  pelo próprio comando militar, com a ajuda da Casa do Poeta e da Associação dos Artistas Plásticos do Litoral, sob inspiração da professora Graziella Sterque. A Expo Arte do Itaipu teve edições até 1981 e foi exatamente nessa época que Rondon fixou residência no então distante e quase selvagem Sítio do Campo, atual bairro Tude Bastos. Antes disso ele expunha no Boqueirão, na então Praça do Relógio, que era um grande totem metálico instalado no calçadão, patrocinado por uma cervejaria. Em 1985 ele voltou a frequentar a Feira Hippie da Biquinha, que já tinha uma outra concepção, mais restrita e seletiva, dando prioridades aos artistas locais. A feira também perdeu o espírito artesanal e tornou um mercado de produtos industrializados. Segundo ele, a organização original dos anos 70, era mais aberta e permitia a presença de artistas de todos os lugares, o que significava uma maior qualidade artística por causa pluralidade de trabalhos expostos. 


Rodolfo Rondon e Gilberto Gil durante um evento da Secretaria de Cultura de Praia Grande nos anos 1980. Acervo pessoal. 

Contribuições de Rondon em eventos artísticos de São Vicente. 


Reprodução de um quadro de Benedito Calixto. 



Crachá de Rodolfo Randon da 26ª Encenação da Vila de São Vicente.  O artista participou da construção cenográfica com esculturas de isopor.

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O historiador Marcos Braga, na época adolescente, nos conta que este evento era um movimento muito atraente e convidativo. Ele pintava camisetas para faturar uns trocados na feirinha, tendo sempre por perto sua avó, Isabel da Costa Nogueira, hábil pintora e ótima vendedora de panos de prato e toalhas de mesa. Braga também se lembrou do amigo Carlos Hablitzel (filho do engenheiro e colecionador náutico Carlos Hablitzel), que era filatelista em Santos e sempre trazia suas novidades de selos para comercializar na Praça 22 de Janeiro.

Malu Giafonne, advogada e procuradora do município, lembra nitidamente da feira como memória da sua infância:

"Eu nasci em 77 e sempre morei pertinho da praça 22 de janeiro, que fez parte da minha infância. Tenho lembranças da década de 80, mas são memórias infantis. Nos finais de semana a frequência naquele pedaço aumentava demais, vinha gente dos outros bairros, de santos, de são Paulo, do interior. O clima era de festa. As crianças se entrosavam na maior facilidade, num ambiente bem democrático, ninguém preocupado com segurança. As crianças dando comida para os pombos era um clássico !!! A praça tinha mais espaços livres que antes, uma farra! Dava pra brincar de pega-pega, correr pra longe! No domingo tinha a feira hippie, lembro de muitas barracas de artesanato, com bonecas de pano lindíssimas, bijouterias, sabonetes e e perfumes artesanais. Lembro também das barracas de comida, do trenzinho, dos vendedores ambulantes de milho e pipoca. Ficou fixado em minha memória a sensação de festa, um clima alegre, uma bagunça muito organizada e feliz".

GERALDO ALBERTINI


Mas o escultor Geraldo Albertini talvez tenha sido a maior atração da Feira da Praça 22 de Janeiro. Albertini foi o criador do Museu do Escravo, com um acervo temático composto de 500 peças, divididas em 13 conjuntos históricos sobre a escravidão no Brasil. O acervo foi instalado num espaço especial do Horto Municipal. As performances ao vivo de Albertini na Feira Hippie era uma das principais a atrações desse evento; uma atividade que atraía turistas e consumidores de arte e artesanato de toda a região e principalmente da grande São Paulo.

 Dois comentários de uma postagem de rede social no Grupo Santos Antiga, quando ali publicamos a postagem sobre a feira, ilustram muito o talento e o prestigio dessas artista:

Gilson Moreno: "O grande Albertini, que fazia seus trabalhos na frente de todos...e os vendia ali mesmo, quase semi-acabados... Depois foi cuidar do Horto Florestal*. Tem esculturas em tamanho natural lá, retratando escravos num engenho".

Antônio Alves: "Morei em frente, em cima do restaurante de esquina, estava sempre aí com meus filhos pequenos, saudades, era uma delícia, ainda não existia roubos na época. Sempre via essa pessoa fazendo esculturas ao vivo, pessoas vinham de São Paulo para comprar, Fazia na hora. Não sabia o nome dele, grande Albertini".

Retrato de Geraldo Albertini. Acervo: Deise Domingues.


* Trata-se da Casa da Cultura Afro-Brasileira (Museu do Escravo), que abriga 143 peças em argila e madeira



O escultor Geraldo Albertini em plena atividade artística na Feira hippie da Biquinha-Praça 22 de Janeiro em 1976. Registro do jornal A Tribuna. 



Matéria de A Tribuna, de 01 de abril de 1973,  sobre o Museu do Escravo, criado por Geraldo Albertini.

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Praça 22 de Janeiro e Biquinha nos anos 70 vistas do Edifício Las Palmas. Acervo de Malu Giaffone. Na foto aparece à esquerda as instalações do Luna Park.



Leitora de A Tribuna, em 8 de outubro de 1974, reclama da falta de imaginação dos organizadores de uma feira de artes em Santos, comparando o evento com a Feira Hippie da Biquinha.


Fotógrafos de Santos realizam competição durante a Feira Hippie de São Vicente. 20 de novembro de 1974.
 

Shows musicais populares foram também durante algum tempo atrações da Feira H|ippie.







Quadro roubado e recuperado passou pela feira, segundo os compradores


Quadro roubado e recuperado pela Secretaria de Turismo de Santos havia sido comprado na Feira Hippie de São Vicente. A reportagem estranhou a justificativa do depoimento dos compradores.

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MEMÓRIA DO TEATRO nos anos 1970.  Atores amadores do T.E.M.A - Teatro Martim Afonso. Os encontros, leituras de textos e ensaios eram realizados no casarão da rua João Ramalho, ex-sede do Clube Atlântico, esquina com a rua Tibiriçá.

Publicação Grupo Ex-alunos do Martim Afonso.


Cenas do espetáculo “Gigante, Reticencias” escrita pelo ex-aluno do curso Clássico, Flávio José de Resende, em 1966. Teatro Estudantil Martim Afonso (T.E.M.A). O grupo também  se apresentava em outras escolas de São Vicente e da região. Acervo da escola.



AS PRIMEIRAS ENCENAÇÕES DA FUNDAÇÃO DA VILA DE SÃO VICENTE. Criada nos palcos do teatro amador nos anos 1940 e depois levadas para a orla na década de 1950, a Encenação da Fundação da Vila de São Vicente foi retomada em 1982, na época das comemorações dos 450 anos da chegada de Martim Afonso a São Vicente. A encenação na areia da praia ganharia nos anos seguintes o título de maior espetáculo teatral em areia de praia do mundo, feito que foi apresentado para avaliação pelos produtores do Livro dos Recordes Guiness.


"A PÍLULA" - T.E.M.A. - ELENCO DE 1969







T.E.M.A. TEATRO ESTUDANTIL MARTIM AFONSO


ROSA MARIA MARQUES LOTO




Estudei no Martin Afonso de 1967 a 1971, Fiz o Clássico a noite e o Magistério pela manhã... Participei também do TEMA - Teatro Estudantil Martin Afonso, 1967-1971. O nosso diretor era Vicente de Salvo. Levamos várias peças como "A exceção e a regra" , e Bertold Brechet; " O bem amado", de Dias Gomes; "A Pílula", de autor norteamericano e o musical de compilações "Brasil, Rosas. Amor e Dor", esta apresentada em São Paulo no Equipe Vestibulares, e com a estréia no Cine Teatro Jangada em novembro de 1969.

Nossa turma do Tema no aniversário de 15 anos de minha irmã Maria Alcina. Foto feita pelo nosso amigo fotógrafo João Vieira (fotógrafo de A Tribuna) em 6 de maio de 1968.

MANIFESTO de apresentação do T.E.M.A. , grupo de Teatro da E.E. Martim Afonso no final dos anos 1960, escrito e assinado pela professora Sarah Capelari.


                          
HISTÓRICO
O Grupo que atualmente jorna o T.E.M.A. é constituído de jovens artistas. Êles mesmos pesquisam os textos, fazem o roteiro, dirigem-se, fazem a movimentação e a iluminação. São uma autêntica equipe artística.
Jovens que exercem a arte, arte de vanguarda, mas que apreciam e respeitam a arte tradicional clássica, sabendo selecionar dela os valores perenes.
Através dos estudo dos textos da literatura clássica, romântica, parnasiana e moderna e contemporânea, textos estes nacionais e extrangeiros; desde o imortal Camões e o polêmico Brecht, expressam em “Brasil , Rosas... Amor e Dor” o ideal dessa juventude consciente, patriota e esperançosa. Eles estão cumprindo um destino, não são omisso, são autênticos participantes da realidade brasileira em evolução.
Ouçamos suas vozes porque elas se harmonizam no canto da Poesia e da melhor Música Popular Brasileira Moderna: de Vandré, Gilberto Gil, Chico Buarque, Dorival Caymi, Edu Lobo e outros que cantam o Brasil e o levam além de nossas fronteiras.
Nas mensagem da Poesia e da Música está a bela mensagem de nossa juventude: crença no Amor, na Paz, na Justiça, a triologia que sempre salvou e salvará a Humanidade.
Profa. Sarah Ortiz Capellari
Catedrática de Português do I.E.E.M.A.


                                        Cidade de Santos, 03 de setembro de 1969

Anúncio no jornal Cidade de Santos em  19 de janeiro de 1970








TALVEZ A PRIMEIRA BARTIRA. Cena da primeira encenação da fundação da Vila de São Vicente, realizada Praia do Gonzaguinha em 1982, sob a direção de Roberto Marchese. Fonte: Documentário do Clube de Cinema de Santos com atores da Federação de Teatro Amador da Baixada Santista.

https://vimeo.com/152692564?ref=fb-share&1


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CENTRO DE CONVIVÊNCIA

REVOLUÇÃO CULTURAL NOS AN0S 70 e 80

ENDEREÇO EMBLEMÁTICO. Neste endereço da rua Jacob Emmerich, no Gonzaguinha, onde hoje está este grande edifício, aconteceu a maior revolução cultural da Baixada Santista na passagem dos anos 1970 para os anos 80. Aqui existiam duas casas onde jovens universítários de várias procedências fundaram duas comunidades alternativas. Uma de vocação política, na qual os participantes teriam intensa participação nos acontecimentos das cidades da região; nela morava a vereadora, prefeita e deputada Telma de Souza. Na outra morava o casal Domingos Stamato e Maria Izabel Calil Stamato, fundadores do Centro de Convivência de São Vicente, base da criação de ideias e práticas culturais revolucionárias. Domingos era médico e Maria Isabel psicóloga.

A REVOLUÇÃO COMUNITÁRIA VICENTINA

No final da década de 1970, São Vicente era bem diferente do que é hoje. Pouquíssimas famílias residiam na área continental, cujo acesso era só por trem ou pela via Anchieta, em Cubatão. A periferia da cidade se concentrava na região do Jockey Club, no córrego Catarina de Moraes e uma parte da Vila Margarida. A Cidade Náutica era um grande loteamento, com centenas de lotes vazios. A maioria dos bairros próximos do centro e da orla não tinham calçamento e somente alguns deles possuíam rede de esgoto. São Vicente ainda era uma cidade pequena, mas com grandes e graves problemas sociais. O acesso à Praia Grande ainda era pela Ponte Pênsil e seus bairros eram pouco povoados. No Gonzaguinha e no Itararé, os edifícios de apartamentos eram predominantemente para uso de turistas nas temporadas. Mas ainda existiam muitas casas de veraneio, algumas delas mansões pertencentes a ricas famílias paulistanas que aos poucos foram deixando de frequentar as praias vicentinas. Eram muitas, com construções imponentes, de muitos cômodos e espaços externos de grandes quintais e árvores enormes. Eram construções aristocráticas de uma época bucólica e que começavam a ter outras finalidades.
Para fugir da agitação urbana de Santos e da alta dos aluguéis, alguns grupos, geralmente universitários, alugavam essas antigas casas e mansões para instalarem comunidades alternativas, dividindo cômodos e despesas. Eram também conhecidas como “repúblicas”. Na rua Jacob Emmerich, entre os números 155 e 129, à apenas uma quadra do Gonzaguinha, haviam duas dessas casas. Uma delas, a maior, propriedade de um conhecido industrial de São Paulo, foi alugada pelo jovem casal Domingos Stamato e Maria Izabel Calil. Eles não eram casados e viviam juntos há alguns anos e tinham duas filhas. Ele era psiquiatra e ela psicóloga. Se conheceram durante uma palestra-debate quando se uniram para derrubar os argumentos conservadores de um juiz de direito sobre recuperação de menores infratores. Ali perceberam que tinham muitas coisas em comum, inclusive uma identificação de sentimentos e uma proposta de vida diferente e completamente fora dos padrões da época. Eram chamados de "hippies", uma tentiva de desqualificar sua ideia e práticas inovadoras, mas na verdade se consideram libertários. Precisam de uma vida regular para exercer suas profissões. Tinham que ter um endereço fixo, mas não precisava ser um endereço restrito e padrão. Queriam estar livres das obrigações das propriedades privadas e cultivar um tipo de vida nos moldes comunitários, que era o tom da nova sociedade alternativa americana e europeia.
Foi a partir dessa iniciativa do casal que surgiu a ideia de um Centro de Convivência, um espaço plural de moradia, trabalho, educação, lazer e cultivo das ideias libertárias e sobretudo das artes. E assim foi: um lugar amplo, agradável, de encontros de inteligências de vários segmentos e propostas de realização pessoal e coletiva. O Centro de Convivência da São Vicente, aproveitando o que ainda restava de bucolismo e tranquilidade da velha cidade praiana, passou a funcionar em 1978, ainda pequeno e com pouca frequência, mas logo tornou-se um dos núcleos culturais mais influentes da Baixada Santista. Ali se estabeleceu de maneira informal e criativa um espaço de experiências inéditas e que se tornaria referência nas áreas em que eram vivenciadas: a música, a literatura, as artes plásticas, o jornalismo, a psicologia e a psiquiatria humanistas, enfim, todas as expressões que possuíam um diferencial de visão de mundo e ao mesmo tempo uma perspectiva transformadora. Adultos, jovens e crianças vivendo um estilo de vida independente.
As experiências do Centro de Convivência não ficaram restritas ao espaço da mansão. Eram levadas para os locais socialmente mais problemáticos e considerados perigosos da cidade, em formato de intervenções e provocações que estimulavam mudanças na vida cotidiana das periferias. Isso provocou também a atração de outros profissionais - assistentes sociais, artistas, artesãos, educadores - para aprender e replicar essas inovações. No Centro de Convivência aconteceram os primeiros partos humanizados da região e também as primeiras experiências de tratamento em psicoterapia transpessoal. A discussão sobre o uso abusivo de medicações psiquiátricas e as crises dos manicômios eram abordadas ali com muita frequência. Foi numa dessas reuniões que foi sugerida a intervenção pública na Casa de Saúde Anchieta, em Santos, conhecida na época como “Casa dos Horrores”. Vizinha ao centro de Convivência, alguns anos antes, existia uma outra comunidade de jovens universitários, cuja vocação era mais de atuação política. Um dos moradores da casa era ninguém menos que a ativista Telma de Souza, que viria ser prefeita de Santos e cujo secretário de saúde, o médico David Capistrano, encabeçou o projeto de intervenção e ocupação humanitária da Casa Anchieta, na época abarrotada de pacientes vivendo em condições desumanas. David, mais tarde como prefeito de Santos, enfrentaria outro grande desafio da saúde pública regional, empreendendo uma intensa campanha sanitária contra disseminação do vírus HIV e que havia dado a Santos o triste título de “Capital da AIDS”. Venceu a luta e Santos tornou-se referência mundial nesse combate.
Em meio a tantas experiências e desafios, pois o preconceito e a resistência conservadora era intensa diante das propostas inovadoras, nunca é tarde para lembrar que os moradores e frequentadores do Centro de Conivência experimentavam e discutiam todos os assuntos e temas que suscitassem reflexões mais profundas e diferentes, como, por exemplo, as de natureza histórica e antropológica. Numa delas, a psicóloga Maria Izabel Calil Stamato, descente de árabes pelo lado paterno, relatou numa reunião que fizera uma descoberta interessante e que havia despertado nela uma incrível atração e, naquele contexto, um vínculo muito forte com a cidade de São Vicente. No seu mapa genealógico, por parte de mãe, constava que ela era descendente de Bartira, filha do Cacique Tibiriçá e esposa do semita João Ramalho. Na mesma ocasião surgiu a informação de que toda aquela área onde estavam as edificações da quadra das ruas Tibiriçá, Jacob Emmerich, Visconde do Rio Branco e Frei Gaspar, num passado longínquo, havia sido um cemitério indígena. Eram citações sem nenhuma intenção de privilégio, mas que acentuava um profundo respeito pela história calunga e pela cidade que os havia acolhido para realizar uma missão social que marcaria a vida de muitos vicentinos e santistas.

FESTIVAL DE QUADRILHAS JUNINAS

ELOGIOS E CRITICAS


Houve, ao lado dos muitos elogios aos esforços dos quatro participantes deste concurso, muitas críticas à Prefeitura Municipal, que há quatro anos não melhora os prêmios, mantendo a verba de 200 cruzeiros novos, enquanto outros municípios vizinhos oferecem 1.000 cruzeiros novos. Para melhorar a situação, a Comissão Municipal de Cultura, encarregada dos festejos juninos resolveu, às vésperas do concurso, atribuir um só prêmio, em vez dos três previstos, respectivamente de 40, 60 e 100 cruzeiros novos. "Mesmo assim, disseram os candidatos, foi muito pouco para compensar o trabalho, os muitos ensaios e os gastos dos participantes com os trajes típicos".
Os elogios se estenderam ao Esporte Clube Beira-Mar, que cedeu o local, e também à assistência, que continua fielmente a prestigiar as festas juninas da cidade, provando, assim, que essas promoções merecem melhor apoio oficial. Nos anos anteriores de 8 a 10 quadrilhas costumavam participar e desta vez, das 5 inscritas a maior delas, a da Associação Atlética Atlanta, de Santos, desistiu sem explicar por quê.
O prefeito Jonas Rodrigues, presidiu o juri, viu o entusiasmo dos participantes e da assistência e prometeu o estudo de melhores condições para o ano que vem. Integraram a mesa que classificou os arraiais, de acordo com um critério que considerou o número de figurantes, humorismo, trajes, disciplina e numero e variação de movimentos, além de originalidade, representantes dos Jornais CIDADE DE SANTOS, "A Tribuna" e "São Vicente Jornal" e representantes dos clubes Beira-Mar e Tumiaru.

Cidade de Santos31 de junho de 1967

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CENTRO ARTÍSTICO MARTIM AFONSO


Membros do Centro Artístico Martim Afonso comemoravam o sétimo aniversário do grupo. A entidade dedicada ao teatro foi fundada em 7 de setembro de 1938.
Revista Flama, Santos, 1945. Acervo da FAMS


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WILLY AURELI E O RIO DA SOLIDÃO


AFONSO SCHMIDT




Há muitos anos, São Vicente não passava de uma cidade pobre e quieta, onde todos os habitantes se conheciam. Suas casas já tinham nascido velhas; pareciam do tempo dos Capitães-Mores. 
Os pontos mais concorridos eram a Biquinha, o cinema Anchieta, a Matriz, a estação de passageiros da "City" e os jogos de futebol na Praça 22 de Janeiro. 
Nos dias feriados, havia festa no "stand" do Bugre. E era só. Entre as famílias de calungas ou vicentinos, havia uma que nos era particularmente, simpática: a dos Aureli. Pai italiano, mãe austríaca e filhos santistas. 
Estava-se na primeira Grande Guerra, quando Victor Emanuel e Francisco José se colocaram em campos opostos. Multa gente pensou que o casal se desaviesse... Mas na casa dos Aurell tudo continuou como dantes. Foi nesse tempo, ou logo depois, que o jovem Willy encontrou o seu destino. Conforme ele próprio conta no livro "Bandeirantes do Oeste", que tanto êxito alcançou, “buscava ansiosamente em sua juventude emoções fortes pelas terras ainda pouco habitadas da imensa Praia Grande, ou nos cerrados, além da Ponte dos Barreiros". Tempos passados, escrevia nas "Folhas". Dali por diante, sua vida repartiu-se entre as excursões arriscadas e as reportagens cheias de interesse jornalístico. Como caçador, conheceu palmo a palmo a Serra de Cubatão; como homem de imprensa, publicou reportagens sensacionais, que lhe valeram dois prêmios então instituídos pela secretaria da Segurança.
Animado pelos primeiros triunfos meteu-se em 1937 pelo sertão, sertão de verdade, escrevendo depois obras que lhe grangearam popularidade, como "Roncador'', "Sertões bravios", "Léguas sem fim" "Bandeirantes do Oeste" e "Terras sem sombra". Tornou-se um nome entre os viajantes procuraram redescobrir o Brasil. Ao mesmo tempo um nome entre os escritores que souberam transmitir ao público as suas vicissitudes em terras pouco conhecidas, ou mesmo desconhecidas de todo. As suas entradas pelo mapa multiplicaram-se. Na incursão que fez ao Brasil Centra realizou o levantamento oro-hidro-topográfico da bacia pré-amazônica, enriquecendo assim a cartografia nacional, ainda incompleta nesse setor, onde havia lacunas. No ano seguinte, após memorável jornada, fixou nas cartas a serra do Roncador, tão cheia de mistérios como discutida. Não perdeu o tempo. Realizou colheitas glotológicas, mensurações antropológicas de várias tribos, coletas botânicas, estudos de clima e de solo. 
A "Bandeira Piratininga", de que Willy Aureli foi fundador e comandante, realizou difícil circunavegação da ilha do Bananal, no rio Araguaia, em Goiás, a maior ilha fluvial do mundo. Esse gigantesco périplo realizou-se em 1945 a 1946 e mereceu do Marechal Mariano Cândido da Silva Rondon uma carta de aplauso em que o ilustre militar dizia:
"Com o seu traballho, transformou completamente a fisionomia topográfica de toda a região".
Willy Aureli encontrou os maiores obstáculos quando penetrou no Rio da Solidão, por ele descoberto em 1945 . Ainda assim, teimou em percorre-lo até às suas nascentes, por achá-lo de importância capital na imensa rede hidrográfica do alto de Mato Grosso. No entanto, só conseguiu alcançar os seus desígnios de 1952 a 1953. Esse belo feito, levado a cabo depois da descoberta das nascentes do Rio Liberdade, inutilmente tentado por outras expedições, resultou na obra "o Rio da Solidão", que está. despertando a mais viva curiosidade entre os milhares de admiradores de Willy Aurel!, o Jack London dos sertões brasileiros. Oito vezes, partiu de São Paulo a "Bandeira Piratininga", rasgando novos horizontes na direção
Oeste. Foi um belo serviço prestado àquela vasta região brasileira que, depois de conhecida, começa a povoar-se rapidamente. Há vinte anos, apenas, era uma sucessão de desertos, onde o mistério assustava mais do que a distancia, os mosquitos, as feras, os índios e as endemias. O vicentino sertanista, como os desbravadores do passado, fundou povoados, plantou roças, abriu estradas e caminhos que hoje são percorridos pelos primeiros habitantes.
Não raro, para levar a efeito seus empreendimentos, Willy Aureli assumia compromissos pessoais que, de volta, satisfazia com os minguados proventos financeiros da empresa, dos livros que escrevia, dos documentários que eram exibidos em todos os cinemas do Brasil e, também das suas conferências e palestras em institutos educacionais, em Escolas Normais e Colégios de muitos Estados, inclusive do Paraná. e do Rio de Janeiro.
Assim, tornou-se ele membro de diversas sociedades sábias entre as quais a sociedade Geográfica Brasileira de São Paulo, o Instituto de Ciências de São Paulo, o Gabinete Literário de Mato Grosso e ainda outros que iria mais longe se fôssemos nomear. Mas Willy Aurell não deu por terminada a sua. obra.Alimenta o desejo de, brevemente, entrar em contato com os índios Canoeiros, até agora. tidos na conta de inabordáveis.
Assim como, em 1937, foi dos primeiros a penetrar na terrível nação dos Xavantes, trazendo para o mundo civilizado preciosas revelações, cinematograficamente documentadas, em futuro próximo ele irá conhecer a revelar ao Brasil a vida intima e social dos misteriosos canoeiros. Será, como se pode calcular, uma jornada dura, inçada de perigos e, quiçá, o encerramento com chave de ouro de um ciclo de penetrações sertanistas que beneficiaram os estudiosos do mundo inteiro.
Nessa existência, Willy Aureli perdeu vários companheiros, entre os quais seu irmão Aurelio Aureli, que hoje se encontra enterrado numa ribanceira, à sombra de certa árvore hierática, em lugar assinalado por uma cruz, na margem harmoniosa do rio Araguaia. 
No movimento de 1932, o caiçara sertanista foi sub-comandante de uma companhia: os campo do Sul, o que se encontra miudamente contado no livro "A Retirada de Macega". Suas atividades durante esse período estão narradas em diversas obras pelos cronistas daqueles dias. Seu gabinete de trabalho é um mundo. Ali nos foi mostrado o original de próximo livro a que ele deu o título de "Feras e monstros do sertão"; valerá por um compêndio de zoologia, entremeado de episódios intensamente vivido pelo autor nos áditos selváticos do sertão, da terra do homem que se veste de penas, usa cocar e traz ao pescoço colares de pedrinhas coloridas. Nessa obra, o nosso viajante trata exaustivamente dos jaguarés, jacarés, grandes serpentes, arraias, tartarugas e outros habitantes da vasta região onde os bichos chegam de longe para verem essa coisa curiosa: o homem civilizado .


A heroica viagem arriscada por Willy Aureli em 1953 às vertentes Rio da Solidão é o tema deste volume que o "Clube do Livro" está oferecendo aos seus leitores. Trata-se de narrativa singela e espontânea, relatando, numa reportagem romanceada, as suas andanças pela selva muito para lá dos pontos alcançados por outros viajantes. Ele conheceu o Brasil de que os livros não falam; a região que se segue ao ponto final dosilustres roteiros. Seu estilo é claro, útil, sugestivo. Em cada página, há uma surpresa. E o leitor, diante desse livro, acompanha o capitão da "Bandeira Piratininga" nas pegadas das epopéias seiscentistas. 
No entanto já não trata de apresar e escravizar a indiana brava, descobrir as minas de ouro, de areias de diamantes. Seu material é diferente: leva consigo cadernos de notas, lápis bem apontados, discos de gramofone para colher a linguagem dos autoctónes, câmara cinematográfica para fixar seus usos e costumes, assim como a paisagem em que vivem, e uma fita métrica para as mensurações etnográficas daqueles quase desconhecidos povos. E sementes. E remédios. E cartilhas de A B e, para alguns casos especiais. Até mesmo missangas para alertar a cobiça dos morubixabas!
Willy Aureli, o dinâmico presidente da Associação Paulista de Imprensa, nasceu em Santos. Entrou no jornalismo em 1924, iniciando a sua carreira jornalística, no "Jornal da Noite" e na· "Gazeta do Povo", daquela cidade. Em1927, entrou para as "Folhas" de São Paulo, onde permaneceu até 1952. Foi diretor do matutino paulista "A Época". Posteriormente serviu no jornal "O Tempo". Como repórter, sobressaiu-se, iniciando, em 1937, a sua caminhada pelo sertão, à testa da "Bandeira Piratininga", desbravando zonas totalmente virgens, trazendo à coletividade enorme soma de conhecimentos: realizou, entre outras coisas, o levantamento oro-hidro- topográfico de toda a bacia pré- amazônica, enriquecendo, dessa forma, a cartografia nacional. 
Realizou oito penetrações na "jungle". Publicou: "Opio, morfina e cocoína”, reportagens, 1931; "Tragédia de Ekaterinenburg", reportagem, 1931; "Roncador", viagens,1938; "Sertões bravios" viagens 1940; "Légua sem fim": viagens: 1942; "Bandeirantes do Oeste", viagens, 1946; "Dias sombrios", romance, 1952, "Terra sem Sombra", viagem, 1952; "Farrapos Humanos", romance, 1952; "Jesse James Paulista", romance, 1956. 
É membro da Sociedade Brasileira de Geografia do Rio de Janeiro; Sociedade Científica de S.Paulo; Sociedade Geográfica de S. São Paulo; do Gabinete Literário de Mato Grosso; Associação de Imprensa de Honduras: Comendador da Ordem Imperatriz Leopoldina; Comandante da Bandeira Piratininga; ex-delegado do Serviço de Proteção aos Índios no Estado de São Paulo; Conselheiro do Departamento Estadual de Turismo e membro de diversas instituições culturais.
A Gazeta, São Paulo, sexta-feira, 26 de julho de 1957.

* Afonso Schmidt nasceu em Cubatão em 29 de junho de 1890 e faleceu em São Paulo em 3 de abril de 1964 aos 73 anos. Jornalista, contista, romancista, dramaturgo e ativista anarquista, autor de mais de 40 livros, peças, panfletos e  inúmeros artigos e reportagens ao logo de mais de 60 anos de carreira. Residiu em Santos por duas vezes (1906 e 1913), onde fundou o jornal Vesper. 
 






















LEMBRANÇAS DE SÃO VICENTE

À noite, ao lado do mano, algo reconfortado, retrocedemos de muitos anos em nossa palestra e confidências. Voltamos até São Vicente, na nossa vivenda, quando, crianças ainda, perambulávamos pelas praias silentes, em busca de aventuras". E recordamos a minha primeira expedição. Nos fundos do quintal de nossa casa, abria-se um charco imenso que alcançava os trilhos da então Southern São Paulo Railways. É Aurélio que rememora, cinematogràficamente, e eu fico, no escuro, ouvindo-o, silencioso, sentindo refluir, de um jato, tôda a tremenda nostalgia de eras já tão distantes! Aurélio esmiuça e eu recordo... 
Tinha 12 anos, quando realizei a minha primeira expedição. Parti montado em frágil jangada, construída com tábuas de caixas e caixões, evidenciando, desde então, minha propensão às construções... fluviais! Inútil acrescentar que, logo adiante, naufraguei, imergindo, até o peito, no lodo esverdeado onde sapos volumosos tinham vivenda preferida. Aurélio fala: 
- Lembro-me como se fôsse ontem. Trabalhamos na "construção”, recorda? Eu me incumbira de arranjar os pregos com o vendeiro e você o martelo com o vizinho... Você queria construir um mastro para o velame, tudo de acordo com os livros de Salgari e de Julio Verne... Fernanda e Parisina ajudaram também e mamãe vinha dar uma espiada de quando em vez... Quem diria que agora estamos sulcando rios imensos e vivendo tantas emoções! 
Faz uma pausa. Eu continuo calado, olhos fecha. dos, vendo estampadas no verso das palpebras todas as passagens dessa meninice feliz, barulhenta e aventurosa. Não mais ouço Aurélio que reinicia as suas reminiscências e afundo na época gloriosa dos nossos feitos quando, após o fracasso dessa "expedição” inicial, percorríamos as terras pouco habitadas dos cerrados até a Ponte dos Barreiros ou quando, periclitando por cima dos andaimes da Ponte Pensil, disparavamos até a Praia Grande, comboiando um grupo de petizes de nossa idade, a fim de “assaltarmos” os grandes navios atirados à solidão das areias pelos tremendos furacões oceânicos! Eramos, nessa época, pequenos flibusteiros desejosos de emular com os tigres de Mompracem” ou com os adeptos de “Sandokan”. E as praias infinitas de Itanhaém ouviam os nossos gritos de vitória quando aprisionávamos algum siri alentado ou meia dúzia de caranguejos nos pântanos marginais! Embarafustávamos pelas matas adjacentes, corações palpitando ao menor ruído, desejando, ardentemente, topar com alguma surpresa maiúscula e, ao mesmo tempo, temendo enfrentá-la! Lembro-me do susto que levamos ao depararmos com o primeiro porco-do-mato que pôs asas em nossas pernitas, fazendo-nos descambar com velocidade extraordinária, ribanceira abaixo... 
Com o tempo, o âmbito de nossas incursões se dilatava. Já fartos de matas, iamos à ilha Porchat, nessa época bem diferente do que é hoje. Galgando, como macacos, as enormes pedras, os monólitos, iamos até o extremo Leste a fim de penetrarmos numa caverna soturna, quando da maré baixa, arriscando inconscientemente, as nossas vidas, para descobrirmos os "segredos e mistérios” da “casa dos tubarões”... Não havia lapa, toca, caverna, mata, praia, enseada que nós desconhecessemos. 

BANDEIRANTES DO OESTE.
 


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