08/07/2019

INSTANTÂNEOS - UBIRAJARA RANCAN

MEMÓRIA MUSICAL E CULTURAL VICENTINA 1964-1984

CORAL JOVEM formado por alunos do I.E. Martim Afonso no final dos anos 1970.



Imagens e legendas inseridas pelo Organizador

As duas décadas às quais se refere o registro destas minhas breves reminiscências musicais levam-me à São Vicente de minha infância e adolescência. Participante direto e ativo numa fração do universo musical vicentino nesse período, as recordações seguintes—para o bem e para o mal—estarão forte e inevitavelmente contaminadas por minhas próprias vivências de então [sempre no âmbito daquela fração do universo musical vicentino em tal período] e pelo reencontro meu com elas, agora, passados entre35 e 55 anos de sua presença original em mim. Não só, portanto, a óbvia impossibilidade de literalmente reviver—como uma vez vivido—aquilo que a seguir recordarei, e sobre o qual, recordando-o, refletirei, mas a ausência de um objeto preciso a que escrupulosamente me ater.
Embora a reminiscência exponha fatos, não invenções, ela nem por isso se ocupa como sempre os documentar cientificamente. Acompanhada de comentários que contextualizem tais fatos, a reminiscência busca oferecer um campo de referência objetivo a quem não os tenha vivenciado, de modo que eles sejam apreciados para além de sua vivência e revivescência em quem os narra. Contudo, ademais dos próprios fatos, sua descrição e contextualização, a prosa que os encadeia e o sentido que lhes é conferido são outros tantos elementos indelevelmente subjetivos cuja inescapável subjetividade não só impõe barreiras originais ao autor, mas solicita do leitor uma cumplicidade ao menos metodológica.
A Tribuna, 19 de janeiro de 1965
 
Por volta dos 4 anos ,passei a compor a “bandinha rítmica” de iniciação musical de Tia Mimi, Dona Mimi, Maria Guilhermina Martins Machado, querida professora de piano que, em sua residência na João Ramalho, 432[3], recebia com grande carinho e dedicação crianças cuja musicalidade natural ela pacientemente disciplinava. Mas não era como uma espécie de confirmação do dito: “Filho de peixe, peixinho é” que eu lá me encontrava. Muito mais do que viria a ocorrer depois, e sobretudo ocorre nos dias de hoje, um relativo grande número de meninos e meninas receber alguma educação musical era prática bastante corriqueira entre as famílias de classe média da época[4]. Assim, embora filho do Maestro Jesus—José Jesus de Azevedo Marques, havia relativo bom tempo o Diretor de Cultura Artística da Prefeitura Municipal de São Vicente[5]—, eu era somente mais uma criança que, antes de ser alfabetizada, aprendia aos poucos a decodificar os signos inscritos nas partituras.
Além do piano, com o qual unicamente se ocupava Tia Mimi, acordeão e violão eram os dois outros instrumentos preferenciais a que se dedicavam as crianças daquele tempo; ao lado deles—mas como que por natureza voltado exclusiva ou preferencialmente às meninas—, o balé. Ao menos de saída, não importava ter ou não talento específico para tais aprendizados, pois a questão não era de índole artística, senão que, em sentido amplo, de natureza político-formativa.

A Tribuna, 01 de setembro de 1963

 
Parte de um processo civilizatório cujo motor de arranque próximo era o desenvolvimentismo econômico, essa modelação do gosto na São Vicente dos anos 60conviviacom outros elementos remissíveis à mesma base estrutural. No caso da música, do piano, seu teclado, dir-se-ia que, fazendo-lhe contraponto, outro teclado também se mostrava então protagonista, ambos compondo a mesma cena geral desenvolvimentista-civilizadora. É assim que, embora remontando a bem antes, os muito concorridos “cursos de datilografia” serviam ao propósito de bem qualificar a crescente mão de obra do setor de serviços, tal como, na ponta oposta, os cursos de música e balé propunham-se à educação do gosto, conforme o compasso geral das novas imposições da vida urbana. Com isso, os que podiam beneficiar-se duma educação musical refinada eram às vezes os mesmos que, ao diploma de piano do conservatório, juntavam-lhe o da escola de datilografia[6].

Evidente que ambos os teclados, escolas e objetivos podiam conviver harmoniosamente, cada qual em seu âmbito; mas é como se o da máquina de escrever[7]—compreensivelmente, por sinal, já que tencionávamos ascender de subdesenvolvidos para em desenvolvimento, de periféricos para emergentes—simbolizasse a atenção preferencial da grande maioria pela atividade econômica geradora de riqueza material, reforçando-a consequente estigmatização do ócio [lugar como que natural da música], o abandono progressivo de ritmos e andamentos generosos para com uma certa criatividade musical e artística, que, junto ao [economicamente contraditório] progressivo depauperamento do ensino formal e da cultura geral, faria logo mais com que aquela educação do gosto, numa inversão do alcance que lhe parecia originalmente reservado, deviesse cada vez mais elitizada.

Meu universo musical de então mesclava-se com o de parte daquela São Vicente pacata, em cujo centro viam-se enormes mansões, e por cujas ruas pouco iluminadas, com discreto tráfego de veículos, ainda circulavam bondes. Essa mesma cidade, tomada nos meses de veraneio por um sem-número de paulistanos e paulistas do interior [que não se confundiam com as hordas farofeiras posteriores], momento do calendário em que ela mais sofria com a escassez de água encanada do município, divertia-se em praias e jardins, no Rosário e no Cinemar [na região central], ou então no Maracanã, São Jorge, Petrópolis [cinemas de bairro[8]], além de nas sedes sociais e náuticas dos chamados “clubes de servir”, categoria em que se destacavam o “Tumiaru” e o “Beira-Mar”.


Nas casas—pela música, notícias, [radio]novelas, futebol, turfe—, o rádio compunha o ambiente familiar. Nesse cenário, mais do que um papel artístico de relevo [o que não significa não houvesse relevância artística nos eventos musicais da época, muito pelo contrário], a música cumpria uma função preferencialmente social, ou sócio-formativa.
 
Em São Vicente—e a partir da fundação deste grupo, em setembro de 1952[9]—, destacava-se o Coral Vicentino; ou, com carinhosa intimidade, simplesmente: “Vicentino”, desde o começo [e até fins dos anos 70, início dos 80]dirigido por meu pai. Ao contrário de um Madrigal Ars Viva, por exemplo, que, fundado em 1961, despontava em Santos com um repertório erudito original—do medievo e da renascença, por um lado; de “vanguarda” [como na época se dizia], por outro—, o “Vicentino” executava predominantemente obras do repertório folclórico e popular [com passagens por trechos operísticos clássicos], quase sempre em arranjos corais criados sob medida[10] pelo Maestro Jesus.
Em meio a um sem-número de cantores que passaram por tantas de suas formações [dos quais me recordo de vários], lembro-me em particular dos solistas sopranos Eugênia Pires e Hermínia Intrieri Lacqua[11] e tenor Manoel de Castro[12], também do tenor Alberto Lopes dos Santos e do baixo Luiz Meirelles de Araújo, seu “Lulu”, proprietário de A Melodia, a loja de música de São Vicente, situada na Frei Gaspar, entre a Padre Anchieta e a Martim Afonso[13].Com seu “Lulu”, autor da letra, meu pai comporia o Hino de São Vicente[14], depois, como tal, oficializado.

Eugênia Pires e Manoel de Castro, ouvi-os algumas vezes no famoso dueto “Brindisi”, de La Traviata, de Giuseppe Verdi[15], acompanhados pelo “Vicentino” e pela pianista Maria Cecília Brasil Mavrides. Algumas dessas ocasiões tiveram lugar no Salão Social do “Tumiaru”, que, durante algum tempo, foi também lugar de ensaio do mesmo coral[16].





A Tribuna, janeiro de 1963. 

 
Maria Cecília, pianista com formação erudita, foi por um bom tempo acompanhadora do “Coral Vicentino” em ensaios e apresentações, além de Diretora do “Conservatório Musical Aymoré do Brasil”, que,em certa época, esteve localizado na rua Padre Anchieta: primeiro, entre a Frei Gaspar e a João Ramalho; depois, na esquina com a Presidente Wilson [ou bem perto dela].

Mas a grande referência pianística vicentina jovem de que tenho memória foi sem dúvida José Miguel Soares Wisnik, na época apelidado “Mike”, cuja família morava na Sorocabana, em casa próxima à VIDROBRÁS. Tão grande referência tornou-se que, tendo passado a estudar em São Paulo com Souza Lima [depois de o ter feito no “Aymoré do Brasil” com Maria Cecília Brasil Mavrides], apresentou-se aos 17 anos nos “Concertos para a Juventude” como solista da Orquestra Municipal de São Paulo, interpretando o Concerto nº 2de Camille Saint-Saëns[17].
 
Aquela São Vicente que ouvia música no rádio, ou que prestigiava as récitas do “Vicentino” no “Tumiaru”, ia também à Praça Barão do Rio Branco, em cujo coreto apresentava-se com frequência a Banda Volkswagen, dirigida pelo Maestro Paul Bernard[18], ou a Banda Musical “Carlos Gomes”, tendo à frente o Maestro Ignácio Pinto de Souza[19].
 
Afora tais apresentações, lembro-me também de algumas “audições” vespertinas—com público especialmente convidado para tais encontros—na residência de Dona Consuelo Kealman, uma bela mansão na Visconde do Rio Branco, esquina com a Presidente Wilson, na qual, tendo à frente seu marido—British Honorary Consul Donald Alexandre Kealman—,funcionava o Consulado Honorário Britânico de Santos. Aluno de Tia Mimi, lá estive algumas vezes em companhia de outros meninos e meninas, jovens pianistas que com ela estudavam[20].
 
Recordo-me[21] também deum sarau[22]na residência dos Capellari—Edmundo e Sarah: ele, professor de matemática; ela, de português—,respeitadíssimos docentes que naquela altura moravam com seus filhos numa casa na João Ramalho, entre a XV de Novembro e a Martim Afonso. Sua idealizadora e organizadora, Professora Sarah Ortiz Capellari, membro do corpo docente do “Instituto Estadual de Educação Martim Afonso”[23], estava diretamente engajada na criação de uma “biblioteca municipal” em São Vicente. Falando de tal “sonho” numa carta enviada a meu pai em dezembro de 64, ela afirmava:
 
[A]qui estamos irmanados, o senhor na luta pelo teatro[24], e nós, pela biblioteca – e ambos por ambos. E por que não empreendê-la? Só os cabotinos pensarão o contrário. Só prédios, clubes, vias, etc. que atestem a capacidade administrativa, o arrojo da engenharia, a evolução e a estética da arquitetura, não basta. Pedimos o essencial para esta mocidade nossa que tanto promete[25].
 
Talentosa e criativa, mas em parte alheia ao enredo político-militar-policial então executado[26], a juventude que incipientemente se dedicava à música erudita naquela São Vicente dos anos 60 e 70 tinha o privilégio de acompanhar a programação respectiva, verdadeiramente ímpar, levada com regularidade a efeito pelo Centro de Expansão Cultural, cujos eventos ocorriam quase sempre no “Auditório” do tradicional Colégio São José, em Santos[27], na Ana Costa. Compondo com enorme destaque a cena musical santista, de toda a Baixada, o “Expansão”—dentre os que me lembro e a cujos concertos compareci—trouxe para o palco do “São José” artistas do gabarito de: Guiomar Novaes, Nelson Freire, Roberto Szidon, Jacques Klein, Magdalena Tagliaferro, Antônio Guedes Barbosa, Arnaldo Cohen, Caio Pagano[28].
 
Desde sua fundação em 48, o “Expansão” correspondia, em Santos, ao que, desde 1912, era em São Paulo a Sociedade de Cultura Artística[29].Guardadas as devidas proporções, sobretudo as relativas ao capital de uma e outra entidades, ambas representaram uma iniciativa sistemática e regular de inestimável requinte artístico na vida cultural dessas duas cidades[30].
 
Face a uma e outra instituições, particularmente ao vizinho “Expansão”, a realidade vicentina parece ter sido bem outra. Embora, suponho, houvesse abastança suficiente e requinte cultural de sobra entre os proprietários daquelas grandes mansões da cidade[31], o fato é que as famílias nelas residentes, originalmente ligadas aos setores cafeeiro, de navegação, de serviços públicos, não terão considerado investir parte dos lucros que auferiam no patrocínio de artistas e atividades culturais, na construção de uma sala de concertos, um teatro, uma biblioteca. Sem tal preocupação e com suas ocupações econômico-financeiros voltadas prioritária ou exclusivamente para Santos—cujo centro formava uma espécie de versão minimalista da city londrina—, São Vicente ter-lhes-á representado—por toda a primeira metade do século passado, e, creio, ainda ao longo dos anos 60—a quiet place, uma espécie de grande sítio em que o lazer da high society de então terá sido preferencialmente esportivo[32].
Nos dois últimos anos do antigo colegial no “Martim Afonso”, decerto que, em meu caso, por imitação de meu pai [e já também em crise com o piano], reunimo-nos colegas e amigos para, sob minha improvisadíssima regência, montar um pequeno repertório a ser cantado em coro por um grupo até então inexistente, cuja grande maioria jamais cantara em tal formação. Às vezes em uníssono [com um que outro contracanto], outras a duas vozes [em despretensiosos arranjos que eu próprio cometia...], mas também a quatro, com arranjos de meu pai, ou, então—suprassumo de imodéstia e destemor juvenis—, em original de ninguém mais, ninguém menos do que Georg Friedrich Händel—o mais conhecido coro de O Messias...—, formamos naquele pouco tempo um coral adhoc do “Martim Afonso”. Nesse caso, porém, não havia nenhuma finalidade específica à qual servisse tal iniciativa, que, embora não me lembrando de quem possa tê-la originado, creio não tenha provindo da instituição, de sua Diretoria. Digamos que ela servisse antes de mais nada a nós mesmos, ao descobrimento progressivo—do qual éramos todos protagonistas—de uma inusitada fonte de prazer, cujos desafios eram vivenciados com dedicação e encantamento. Quando, vestindo uniforme especial[33] com calça marrom claro e blusa cacharel azul, cantamos “Aleluia”[34] no “Salão Nobre” do “Martim Afonso”, estávamos não somente concluindo o colegial, mas, com relativa chave de ouro, finalizando artisticamente uma parte de nossa própria adolescência. Saudosismos à parte, não foi pouco o que conseguimos ali fazer.

Passado algum tempo, o sucesso desse experimento musical coletivo me levaria a formar e dirigir o “Coral Jovem”[35], assim denominado[36] por contraste em relação ao “Vicentino”, do qual não faziam parte cantores propriamente jovens, ou não tão jovens quanto nós, que, então, vivíamos a faixa dos 20 anos. Iniciativa que perduraria de 80 até aproximadamente 84, alguns de seus componentes haviam participado daquele coral de 76-77, do fim do colegial[37]. Nossos ensaios ocorriam no Instituto Histórico e Geográfico de São Vicente, e, se não sempre, quase que só em fins de semana[38]. Nosso repertório era bastante pretensioso; na verdade, demasiado assim! Entre outras obras já um bocado difíceis para coros amadores com ainda pouca prática—e tal era o “Coral Jovem”—, ensaiamos e apresentamos o “Kyrie” da missa Se la face ay pale, de Guillaume de Machaut, tal como, noutra ponta, “O Iurupari e o Caçador”, de Villa-Lobos, a segunda de suas Duas Lendas Ameríndias em Nheengatu...
O “Coral Jovem”, além de pela faixa etária, contrapunha-se ao “Vicentino” pelo repertório a que se dedicava [quase que exclusivamente erudito], também pelo fato de que se apresentava “a cappella”; ou seja: sem acompanhamento instrumental. Essa orientação tanto decorria de minha formação geral em música, quanto, em especial, da influência sobre mim exercida pelo Madrigal Ars Viva, no qual cantara entre 78 e 79[39]. Com apoio da Prefeitura local[40], o “Coral Jovem” faria três viagens para fora das fronteiras do estado: duas para Vacaria [RS], participando de encontros corais organizados por músicos daquela cidade e região gaúchas, e uma para Goiânia, a convite do amigo José Veríssimo Teixeira da Mata, colega de graduação na Filosofia da USP.
 
Dediquei-me ao estudo do piano erudito durante pouco mais de 15 anos[dos quase 5 aos quase 20; de 64 a 79], 11 dos quais sob a orientação do Maestro Souza Lima[41]. Meu relativamente longo período de estudo pianístico com Souza Lima, para além da especificidade do ensino técnico, resultou em prolongada imersão no domínio da interpretação musical em geral, não só da relativa ao piano. Nesse sentido, parte não só quantitativamente grande, mas qualitativamente essencial do que hoje[42]haja em mim de músico ecoará esse indelével aprendizado.

Em parte desse mesmo período, fiz muita música de câmera, especialmente com o líder do Quarteto “Gaspar de Almeida”, o violinista Olavo de Almeida, que, a propósito, era o spalla da Orquestra Vicentina de Concertos. Ensaiávamos uma vez por semana no belo auditório do andar superior de uma segunda construção na área da grande propriedade da família, na Bernardino de Campos[43], em Santos, auditório perfeitamente estruturado, dotado de uma plateia com poltronas de assento móvel, palco no qual ficava um piano de meia cauda, além de uma linda vitrina em que eram expostos instrumentos de corda, entre os quais o violoncelo de Gaspar de Almeida, pai do Sr. Olavo, fundador do Quarteto que levava seu nome. Além de várias das Sonatas de Mozart e de Beethoven para piano e violino, muitas obras barrocas, também Brahms, Debussy, Griegetc.[44]

Passado esse período, envolvi-me progressivamente por algum tempo com a regência, em especial a de coros polifônicos adultos mistos. Justo por isso, frequentei as classes de regência de duas edições do Curso Internacional de Férias Pro Arte de Teresópolis, em 78 e 79, ministradas pelo Maestro Roberto Ricardo Duarte[45], além de ter frequentado, ao longo dos meses de maio e junho de 78, um curso livre de regência orquestral ministrado pelo Maestro Eleazar de Carvalho no então Instituto de Artes do Planalto, em São Bernardo do Campo, embrião do futuro “Instituto de Artes” da Universidade Estadual Paulista “Julio de Mesquita Filho” [UNESP], em São Paulo .Selecionado para compor a classe de regência de tal curso, fui-o também para ser bolsista da classe de regência do Festival Internacional de Inverno de Campos de Jordão desse mesmo ano[46].Por fim, no segundo semestre de 81, eu seguiria um curso livre de regência coral na “Escola de Comunicações e Artes” da Universidade de São Paulo [USP], ministrado pelo Maestro Ronaldo Bologna.

Ainda que desde a formação do “Departamento Municipal de Cultura”, em 53, já se falasse da criação de uma “Orquestra Sinfônica” na cidade—assim como da “pedra-fundamental” do “futuro Teatro Municipal de São Vicente”[47] [que jamais existiu]—, só em 68, durante o governo do interventor estadual Tenente-Coronel Jorge Conway Machado, seria fundada a Orquestra Vicentina de Concertos[48]. Segundo matéria do S. Vicente Jornal[49], a estreia do grupo formado por 26 instrumentistas dera-se a 30 de agosto de 1968, na inauguração do “Cine Teatro Jangada”, na Martim Afonso[50].Tendo participado da gravação de dois LP’s[51], a orquestra viria a ser extinta[52], assim parece[53], no governo municipal de Jorge Bierrenbach Senra[54].

Em sua edição de “12 DE JANEIRO DE 1969” [e, pois, a pouco mais de duas semanas da passagem de cargo na qual tomaria posse o prefeito eleito Jonas Rodrigues[55]], o S. Vicente Jornal, em matéria de primeira página, intitulada: “MACHADO DINAMIZOU A CULTURA”, acompanhada de imagem na qual se viam, da esquerda para a direita, Aldo Nilo Losso[56], Jorge Conway Machado e José Jesus de Azevedo Marques, elencava as realizações do interventor estadual militar em tal campo, entre as quais, a saber, figurava a criação da Orquestra Vicentina de Concertos.

Nessa matéria jornalística contextualmente justificável, para os que permaneciam importava, mais do que louvar os feitos já conhecidos de quem partia, estimulara continuidade deles por parte de quem chegava. No âmbito em que se situava tal matéria, não era de modo nenhum relevante o então ainda Interventor Estadual ser ou não um homem verdadeiramente ligado à cultura e às artes—o que, se dele bem me lembro, parecia mesmo não ser o caso, e não porque fosse profissionalmente um militar, mas porque, pessoalmente, não parecia nutrir nenhuma familiaridade para com aquelas, nenhum conforto especial diante de suas manifestações próprias.
 
Não obstante isso, será notória uma dupla coincidência geral às avessas: num caso, entre Brasil e São Vicente; noutro, entre um Executivo militar e outro civil. Assim, se por um lado tinha início o período de maior endurecimento da ditadura civil-militar no país[57] [então havia mais de 4 anos no poder], representado pelas ações do segundo governo militar[58],dava-se por outro uma fase de relativo florescimento de ao menos parte das atividades e órgãos oficiais ligados à cultura vicentina. Mas, se tal desenvolvimento teve lugar justo quando a cidade fora durante pouco mais de ano governada por um Interventor oriundo das Forças Armadas,o retorno civil ao Executivo calunga não marcaria nenhum tento significativo em tal campo.
 
Sem ter de prestar contas a nenhum partido, quaisquer correligionários, Câmara Municipal, mas só ao então Govenador Abreu Sodré[59] [escolhido em eleição indireta pela Assembleia Legislativa de São Paulo em setembro de 66],o Interventor Estadual Jorge Conway Machado—que, por assim dizer, terá sido competentemente assessorado a respeito, na hora e na medida exatas—não terá enfrentado nenhum contratempo em seu apoio à fundação da Orquestra Vicentina de Concertos, bem como na destinação dos recursos que a subvencionassem. Isso, porém, não quererá dizer—na verdade, será bem provavelmente o contrário—que tal decisão tenha recebido o aval daqueles que, fosse ele um político, outro o contexto geral ,ter-lhe-iam feito oposição. Dessa maneira, uma contrarieda de represada em 68 poderá ter-semanifestado alguns anos depois. Se de fato houve algo assim, essa contrariedade terá sido de ordem político-econômica. Ou seja: uma que outra esfera da administração vicentina—que não, por certo, o de sua Diretoria de Cultura Artística...—terá considerado que um município com recursos relativamente parcos não deveria dar-se ao luxo de manter uma orquestra, e sim os empregar, tais recursos, em setores cuja carência fosse maior ou mais urgente do que no campo artístico, e cujas façanhas garantissem representativos e duradouros dividendos políticos àqueles que os empreendessem.
Seja como for, sem a posse de dados suficientemente confiáveis que permitam uma avaliação criteriosa e objetiva dos fatos, bem pouco se poderá dizer, quer sobre as condições de fundação da orquestra, quer sobre as de sua extinção[60].
 
Tendo deixado o dia a dia vicentino desde março de 80[61], desconheço ou mal conheço o que se tenha feito na cidade no âmbito da música a partir de 84. Não sendo, nem nunca tendo sido pesquisador voltado à história do município, parece-me mesmo assim que São Vicente, ao menos há várias décadas, terá pouco se importado com a música e com as artes em geral[62]. Haverá muitas razões que expliquem tal estado de coisas, uma conjuntura que, ironicamente, não parece existir em Praia Grande, por exemplo, cidade que há 52 anos deixou de ser parte de São Vicente[63].

Sem que jamais me ocorresse dizer algo do tipo: “Oxalá São Vicente volte a brilhar no campo da música e das artes!”[64], penso que seria sobremaneira relevante—para o exercício da plena cidadania de seus munícipes—a população vicentina [e a brasileira, de modo geral]dar-se conta da importância de uma infraestrutura de apoio à formação artística—não ao entretenimento fácil o ua eventos de apelo turístico travestidos de relevância histórica—, garantida pelo Poder Público, que perdurasse para além do calendário político-eleitoral.


A pequena concertista Elisete de Souza Pereira, de 9 anos, se apresentando no recital do Instituto Musical Carlos Gomes, tocando trechos de peças clássicas. Aluna da professora Maria Felicidade dos Santos Rocha, a concertista começou tocando acordeão, passou para o piano e desenvolveu-se em apenas 18 meses. Cidade de Santos, 20 de setembro de 1969. (Nota do ORG)




Jornal Cidade de Santos, 28 de agosto de 1969. 

Orquestra Vicentina com os corais Vicentino e Cosipa no palco do Cine Jangada.  


Nota do jornal Cidade de Santos posterior ao evento no Cine Jangada. 


NOTAS

[1]Os documentos impressos aos quais me referirei no presente texto—uma carta; matérias e notas jornalísticas; programas de apresentações musicais—, devo-os todos ao paciente, metódico zelo de meu avô paterno, Ivo de Azevedo Marques, que os compilou [junto a um grande número de imagens fotográficas] em 4 álbuns, os quais tinham por objetivo reunir material alusivo à carreira musical de seu filho mais novo, meu pai, José Jesus de Azevedo Marques. Quando eu próprio comecei a ter alguma carreira musical, meu avô deu início a um álbum com matérias referentes às apresentações que eu fazia ou deque participava. Tais álbuns todos, ele sempre os chamava—apropriadamente, por sinal—de “dossiês”. Em todas as citações que faço de documentos neles encontrados, mantenho sempre a grafia original dos mesmos.
[2] Ubirajara Rancan de Azevedo Marques, vicentino, é docente e pesquisador do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia e Ciências da Universidade Estadual Paulista “Julio de Mesquita Filho”, em Marília; ubirajara.rancan@gmail.com
[3] Ao que parece, essa edificação ainda está em pé: cf. “R. João Ramalho, 432 – Centro. São Vicente – SP. 11310-050”. Disponível em: https://www.google.com/maps/place/R.+Jo%C3%A3o+Ramalho,+432+-+Centro,+S%C3%A3o+Vicente+-+SP,+11310-050/@-23.9666108,-46.3842097,17z/data=!3m1!4b1!4m5!3m4!1s0x94ce1c97d3421983:0x537c3f87d9d91a2!8m2!3d-23.9666108!4d-46.382021 Acesso em: 22 jan. 2019.
[4] Por aquela época ainda havia efetivamente ensino de música nas escolas. No ginásio do “Martim Afonso”, cursado por mim entre 71 e 74, a turma de que eu fazia parte teve aulas—creio que em 71, na 1ª. série ginasial—com o Professor Luiz Gomes Cruz, que, afora os hinos pátrios, ensinava rudimentos de teoria musical. Registre-se que, em 1952, Professor Cruz compôs versos e música do «Hino da Escola Normal Estadual “Martim Afonso”» [cf. BEATOVE, Rosa Maria del Salvador. Ginásio Estadual “Martim Afonso”: uma reconstrução histórica por meio de imagens (1931-1971)]. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação stricto sensu em Educação da Universidade Católica de Santos como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre. Santos: 2014; p. 51. Disponível em: http://biblioteca.unisantos.br:8181/handle/tede/1262Acesso em: 06 fev. 2019.
[5] Em matéria do S. Vicente Jornal de 22 de fevereiro de 1953, que reproduzia “palestra” de meu pai proferida havia alguns dias “através do microfone de uma emissora” [provavelmente a “Rádio Cultura de São Vicente”], encontrava-se menção dele ao “Departamento Municipal de Cultura”, recém-criado pela administração do então Prefeito vicentino, Charles Alexander de Souza Dantas Forbes, e sob sua responsabilidade. Nessa mesma palestra, em tal matéria reproduzida, o “prof. José Jesus de Azevedo Marques” dava conta de ações que tinha em mente implementar no Departamento em questão. Embora sem a posse de dados objetivos que possam comprovar todas essas impressões, suponho que a criação do “Departamento Municipal de Cultura” da Prefeitura Municipal de São Vicente [a partir de algum momento: sua “Diretoria de Cultura Artística”] terá decorrido da feliz confluência de ao menos 3 fatores, entre si independentes: 1. A demanda por algo do gênero, já há algum tempo capitaneada por intelectuais da cidade; 2. Os efeitos do sucesso da estreia do Coral Vicentino, por meio de trabalho concebido, organizado e dirigido por meu pai; 3. O fato de meu pai e sua primeira esposa estarem em processo de separação, o que o levaria a desvincular-se da «Escola Musical “São José”», em Santos.
[6] Não foi meu caso, mas creio tenha sido o de muitos meninos e meninas de fins dos anos 60 e começo dos 70. Por outro lado, observe-se que as escolas de língua não tinham ainda o apelo que logo mais passariam a ter.
[7] Por meio de uma leitura que a situasse para além do mero entretenimento, assim já se poderia antever na obra do compositor norte-americano Leroy Anderson [1908-1975], The Typewriter, composta em 1950 e estreada três anos depois: cf. “The Typewriter”. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=A2Rj2UxJRtU Acesso em: 24 jan. 2019. Dez anos após essa estreia, o ator norte-americano Jerry Lewis [1926-2017] protagonizaria uma cena fílmica em que ele executava imaginariamente The Typewriter, ouvida em playback; cf. “Jerry Lewis - The Typewriter (Scene From Who’s Minding The Store[?])”. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=EcDQr75GlxI Acesso em: 24 jan. 2019. Mas essa cena com Lewis dificulta uma leitura musicalmente transgressora da obra de Anderson [possibilidade que, por seu turno, essa mesmapeça não parece originalmente respaldar], ou uma que a fizesse conter um pormenor de relevância sociológica, pois, naquela, a proposta é a da comicidade fácil, não a da reflexão estética ou social.
[8] Houve também o Anchieta, do qual falavam meus pais, mas que não cheguei a conhecer, sequer a ver. Em 68, no mesmo local em que estivera esse cinema, foi erguido o “Cine Teatro Jangada”, cuja inauguração contou com a Orquestra Vicentina de Concertos e com o Coral Vicentino, dos quais mais abaixo falarei.
[9] Num programa musical da “JUVENTUDE MUSICAL BRASILEIRA – DISTRITO MUNICIPAL DE SÃO VICENTE”, executado em “8 de Novembro de 1953 às 15 horas” no “GINÁSIO DO SÃO VICENTE PRAIA CLUBE”, lia-se que o «“Coral Municipal de São Vicente”» fora “fundado em 1º. de setembro de 1952”. Precisamente assim ou não, a estreia do “Vicentino” deu-se efetivamente a 19 de outubro de 1952,no encerramento do “SEGUNDO CONGRESSO DOS MUNICÍPIOS BRASILEIROS”—realizado no antigo “Cassino da Ilha Porchat”—, em cuja “Instalação”, uma semana antes, discursara o então Presidente da República, Getúlio Vargas.
[10] “Sob medida”; ou seja: tendo sempre em conta, quer o número e a qualidade dos coralistas com que em diferentes momentos ele podia contar, quer a formação do público que a seguir os ouviria. Meu pai, de fato, tinha um grande especial talento para compor arranjos corais, e, também, um aguçado feeling para o fazer de acordo com aqueles a quem eles se destinassem.
[11] Lembro-me de ter algumas vezes visto e ouvido, durante as festividades da “Semana Santa”, Dona Hermínia interpretar o “Canto de Verônica” pelas ruas do centro da cidade.
[12] Seu nome—dir-se-ia melhor: seu nome artístico—era comumente grafado“Manoel Di Castro”.
[13] Em São Vicente, A Melodia; em Santos, na Praça Mauá [onde ainda hoje está], A Musical.
[14] Cf. “Hino do município de São Vicente (São Paulo)”. Disponível em: https://pt.wikisource.org/wiki/Hino_do_munic%C3%ADpio_de_S%C3%A3o_Vicente_(S%C3%A3o_Paulo) Acesso em: 22 jan. 2019; “Hino Oficial da Cidade de São Vicente (São Paulo) SP”. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=jX-Z_WlxACE Acesso em: 29 jan. 2019.
[15] Junto a outras peças, esse trecho operístico seria também interpretado, mais adiante, pela mesma Eugênia Pires e pelo tenor Aldo Nilo Losso, ambos então acompanhados pela Orquestra Vicentina de Concertos.
[16] Por uma pequena nota publicada na imprensa [não sei se em A Tribuna ou no S. Vicente Jornal], supostamente em 15 de março de 1953, a primeira sede propriamente dita do Coral Vicentino, também do ainda recém-criado “Departamento Municipal de Cultura”, ficava numa “chácara ao lado do Clube Hipico”,na “avenida Antonio Emmerick”. Digo “supostamente”, pois a referência à data em questão, feita provavelmente por meu avô paterno, Ivo de Azevedo Marques [cf., aqui, n. 1]—“15 - 3 -1953”—, é manuscrita. Sem memória, nem dados suficientes para registrar todos os locais de ensaio do mesmo grupo, lembro-me de que alguns deles [para o período que aqui considero] foram as diferentes sedes da Diretoria de Cultura Artística na Freitas Guimarães e na Jacob Emmerich [nas quais também ensaiou a Orquestra Vicentina de Concertos], e, depois, o “Instituto Histórico e Geográfico de São Vicente”, na Frei Gaspar, para o coral. Recordo-me ainda de meu pai comentar sobre um antigo local de ensaio do coro, creio que o Atlântico Clube Vicentino, cuja sede social estava localizada na esquina das ruas João Ramalho e Tibiriçá, e que, se bem me lembro, era apelidado de “Tranquinha”, em provável alusão ao jogo de cartas chamado “tranca”.
[17] José Miguel formou-se pela Universidade de São Paulo, na qual, sob a orientação de Antonio Candido, obteve o Mestrado e o Doutorado, e em cuja Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas é ora professor aposentado; cf. “José Miguel Wisnik”. Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa1244/jose-miguel-wisnik Acesso em: 07 fev. 2019.No texto do website em questão, onde se lê: “Estuda piano erudito no Conservatório Aymoré do Brasil de São Vicente com o pianista C. Maurides”, dever-se-ia ler: “Estuda piano erudito no Conservatório [Musical] Aymoré do Brasil de São Vicente com a pianista [Maria] C[ecília Brasil] Mavrides”.
[18] Cf. “A BANDA VOLKSWAGEN”. Disponível em: http://opasgarage.blogspot.com/2012/12/a-banda-volkswagen_17.html Acesso em: 15 jan. 2019.
[19] Pelo que vejo, essa banda continua em atividade; cf. “Banda Musical Carlos Gomes/Santos-SP”. Disponível em: https://www.facebook.com/pg/bmcgsantos/photos/?ref=page_internal Acesso em: 15 jan. 2019. Com o Maestro Ignácio, estudei solfejo.
[20] Residente noutra linda mansão daquele literalmente magnífico centro vicentino, na mesma quadra da Visconde do Rio Branco em que habitavam os Kealman, Dorothy Barhan, Dona Dolly, também amiga de Tia Mimi, era presença constante nessas reuniões “en petit comité”.
[21] Mesmo que em período anterior ao aqui por mim considerado, há registros de atividades de um “Movimento Cultural Vicentino”, cujo “sarau de arte inaugural” ocorreria no “dia 24, às 21 horas, na sede do Clube de Regatas Tumiarú”. Não encontro referência ao órgão de imprensa que publicou tal nota, tampouco à data em que ela foi veiculada, ou ao mês e ano do anunciado sarau. Não obstante, por um programa que data de “24 de Julho de 1953”, no qual se lê: “O ‘MOVIMENTO’ que hoje se inicia artisticamente, teve sua origem no dia 3 deste mês [...] O ‘MOVIMENTO CULTURAL VICENTINO’, uma idealização de dna. Beatriz Galvão Forbes, é uma Sociedade nos moldes das inúmeras existentes nos mais adiantados centros mundiais, com o fito exclusivo de propagar a verdadeira Arte [...]”, suponho que aquele “sarau de arte inaugural” tenha ocorrido no dia 24 de julho de 1953, uma 6ª. feira. Quanto à “idealização” desse “Movimento” por obra da então primeira-dama do município, haverá que matizar tal referência, cujo conteúdo será talvez da ordem da cortesia, não da da realidade efetiva.11 anos depois, precisamente a “6 de abril” de 1964, o S. Vicente Jornal, em sua edição de “12 DE ABRIL DE 1964”, noticiava a fundação do “Movimento Cultural Vicentino”, ocorrida “na sede do Instituto Histórico e Geográfico de S. Vicente, gentilmente cedido”. Mas a própria notícia dava conta do caráter de verdadeira re-fundação dessa entidade, afirmando que tal entidade fora “inspirada no movimento assim denominado havido em 1953 por iniciativa de dona Beatriz Galvão Forbes [...]”.
[22] Ou seja: recordo-me de um a que fui, dele provavelmente tendo participado como aluno de Dona Mimi, mas sem com isso de forma nenhuma pretender afirmar que ali só tenha havido um.
[23] Desconheço se Professora Sarah lecionava noutra ou noutras escolas da cidade e da região. Seu marido, Professor Edmundo Capellari, além de lecionar no mesmo I.E.E.M.A., fazia-o também em ao menos outra escola, em Santos.
[24] Tratava-se de um teatro municipal para a cidade de São Vicente.
[25]CAPELLARI, Sarah Ortiz. [Correspondência]. Destinatário: Maestro Azevedo Marques. São Vicente, 24 dez. 1964. 1 carta. 3 f. [Manuscrita em tinta azul e assinada pela própria remetente].Imediatamente a seguir, Professora Sarah nomeava alguns de seus estudantes, entre os quais “José Miguel”, José Miguel Soares Wisnik, de quem e de cuja família, sempre com muito carinho e admiração, ela, nessa mesma missiva, ainda voltaria afalar. De acordo com matéria do S. Vicente Jornal assinada por “Elaine” [no recorte da mesma não há menção à data em que foi publicada], a 31 de novembro de 1968 fora oficialmente inaugurada a Biblioteca Municipal de São Vicente, cujo endereço físico, porém, não era fornecido em tal notícia. Afora as autoridades de praxe, nessa ocasião solene estivera também presente, descerrando a fita simbólica de inauguração da Biblioteca, a Professora Sarah Ortiz Capellari, ali referida como “presidente da Comissão Organizadora”. Hoje, já desde algumas décadas, a Biblioteca Municipal “Frei Gaspar da Madre de Deus” encontra-se na “Casa do Barão”; cf. “Biblioteca Municipal conta com 17 mil títulos de diversos gêneros”. Disponível em: http://www.saovicente.sp.gov.br/publico/noticia.php?codigo=2509 Acesso em: 13 fev. 2019.
[26] Quando aluno do pré-primário e do primário no “Grupão” [de 66 a 70, inclusive], corria pela praça do Correio com os coleguinhas de escola, brincando de pega-pega, de esconde-esconde. Numa dessas vezes, lá por 69 ou 70, topei com alguns cartazes, pequenos, afixados numa das paredes externas dos Correios, nos quais se viam os rostos de “terroristas” procurados pelas forças de segurança do Estado. Muito conhecido, estimado, simpático com todos, meu pai obtinha com facilidade a vista-grossa dos responsáveis de plantão para que eu, com meros 10 ou 11 anos, entrasse com ele e minha mãe no “Cine Rosário” para juntos ali assistirmos aos faroestes em cartaz. Com essa referência, mais nenhuma, interpretei aqueles cartazes da praça a partir dos bangue-bangues do cinema, nos quais alguma coisa muito similar dizia: “Wanted”, “Dead or Alive”, “Reward $...”
[27] Nos anos 60 e 70, estava à frente do “Expansão” o casal Agostinho Costa e Carolina Martins Costa.
[28]Esta, claro, uma atividade refinadamente conservadora, à qual, na ponta oposta, correspondia o trabalho vanguardista da Sociedade Ars Viva, a cujo Madrigal mais abaixo me referirei. Em15 de outubro de 1973, tive a oportunidade de apresentar-me como pianista solista no “Expansão” [na segunda parte de um programa que incluía o Quarteto “Gaspar de Almeida”], executando as seguintes obras:de Beethoven, a Sonata op. 57, Apassionata; de Villa-Lobos, A Maré Encheu; de Souza Lima, Maria; de Chopin, Scherzo op. 31, no. 2.Ainda sobre o “Expansão”, cf.: “Centro de Expansão Cultural”. Disponível em: http://www.novomilenio.inf.br/cultura/cult075b.htm Acesso em: 4 fev. 2019; “As Associações culturais (2-b)”. Disponível em: http://www.novomilenio.inf.br/cultura/cult075c.htm Acesso em: 4 fev. 2019.
[29] Cf. “Cultura Artística”. Disponível em: http://www.culturaartistica.com.br/ Acesso em: 04 fev. 2019. Entre 78 e 80, passei a frequentar com regularidade os concertos promovidos pela “Cultura Artística”, especialmente os da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, então liderada pelo Maestro Eleazar de Carvalho, seu regente titular. Em alguns desses concertos, estava em companhia dos amigos músicos Jamir Carlos dos Santos e Paulo César Lopes Franco.
[30] A programação da “Cultura Artística” segue de vento em popa, também a reconstrução de seu Teatro, quase inteiramente consumido pelo fogo em 2008. Por outro lado, desconheço qual seja a atual realidade do “Expansão”, do qual, parece, não há um website disponível.
[31]Embora não todas, boa parte dessas mansões estava situava no quadrilátero compreendido entre a Américo Brasiliense e a Tibiriçá, a Presidente Wilson e a Frei Gaspar.
[32] Recorde-se a fundação do Anglo-American Club of São Vicente,em 1915; cf. “Santos São Vicente Golf Club”. Disponível em: http://www.santossaovicentegolfclub.com.br/clube/historia.php Acesso em: 04 fev. 2019.
[33] Creio que ao menos parte desse uniforme tenha sido bancada pela própria escola, cuja Diretora, a querida Professora Cleuza Ferreira Velloso, socióloga, tinha especial carinho por nossa atividade coral. Lembro-me de por ela ter sido presenteado [em 77, meu último ano no “Martim Afonso”] com LP’s de seu próprio acervo, os quais registravam músicas e execuções de Geraldo Vandré, autor que fora censurado pelo regime civil-militar ditatorial [havia então 13 anos no poder], especialmente por conta de “Pra não dizer que não falei das flores” / “Caminhando” [1968].
[34] Por uma tola e excessiva precaução minha, fizemos, naquela ocasião, somente a primeira parte do “Aleluia”, embora pudéssemos tê-lo feito inteiro...
[35] Antes, por volta de 78-79, quando lá estudei, formei, com autorização de seu então Diretor, Monsieur Payant, um grupo coral na Aliança Francesa de Santos, que ensaiava em espaço para eventos artísticos e intelectuais da escola, no qual, a propósito, eu já me apresentara como pianista: o então conhecido Le Caveau. Lembro-me de termos feito ao menos uma apresentação na própria escola, na qual, entre outras peças, executamos o Graduale “Christus factus est”, de Anton Bruckner, obra bastante difícil para um coro amador.
[36] Essa denominação, que não me lembro de quem tenha partido, acabou por pegar. Quando foi preciso dar um nome ao grupo, não havia outro, nem se quis pensar em algum.
[37] Entre outros: Aílton Moraes, baixo; Eveli Messias de Mello, soprano; Miguel Ferreirós Alvares, baixo; Orlando Rodrigues Junior, tenor. O “Coral Jovem” contava também com integrantes do “Coral COSIPA” [Companhia Siderúrgica Paulista], dirigido por meu pai, e vice-versa.
[38] Ao menos nos períodos letivos, pois uma parte do grupo—eu próprio, inclusive—não estava em São Vicente durante a semana, mas em faculdades da capital ou de cidades próximas a ela.
[39] Já na época, e ainda hoje, o Madrigal Ars Viva tinha e tem como regente o Maestro Roberto Martins. Por outro lado, em 81, já no Curso de Graduação em Filosofia da Universidade de São Paulo, participei durante tal ano do “Coral do Meio-Dia”, um dos grupos do CORALUSP, dirigido na ocasião pela Maestrina Mara Campos. Mas já no final dos anos 70 eu havia participado, como cantor e pianista acompanhador, do “Coral COSIPA”, acima citado, dirigido por meu pai. O itinerário de meu ingresso no Ars Viva começa em 77 [creio], no Teatro Municipal Brás Cubas, no qual assisti—em companhia do amigo Miguel Ferreirós Alvares—a um belo concerto desse Madrigal, no qual as peças executadas eram todas vilancicos ibéricos. Algum tempo depois, A Tribuna noticiaria a realização de testes para a admissão de novos cantores no grupo, convocação a que de bom grado acedi... Como cantor, porém, eu primeiro participara de um orfeão dirigido por meu pai, do qual, pelo que me lembro, participavam alunos de escolas vicentinas. Afora a recordação daquele mundaréu de crianças cantando sob a regência do Maestro Jesus [creio que os ensaios ocorriam num ginásio de esportes, talvez o do Beira-Mar], recordo-me até hoje de uma das músicas então ensaiadas, a para sempre linda As Pastorinhas, de Noel e Braguinha...
[40] Numa dessas viagens, já não me lembro qual, tivemos também o apoio do empresário José Joaquim Sobral, graças ao empenho de meu pai junto a ele.
[41] Durante um pequeno período, estive sob a tripla orientação de Dona Mimi, Ciro Gonçalves Dias Júnior e Souza Lima; depois, por mais tempo, sob a orientação principal de Souza Lima, também sob a de Ciro, seu assistente, com quem tinha aula uma vez por semana, em Santos, em sua residência no Gonzaga, na Mário Carpenter. Com o Maestro Souza Lima, eu tinha inicialmente uma aula por mês, em Santos, no Conservatório Carlos Gomes, na Bernardino de Campos [no qual ele orientava outros alunos], mais adiante em São Paulo, uma vez por semana, em sua residência na Avenida Higienópolis, no bairro de mesmo nome.
[42] Na UNESP de Marília, na qual já era docente e pesquisador do Departamento de Filosofia havia então 10 anos, fundei em abril de 99 o Coral “Boca santa”, que, alguns anos depois, viria a ser o Coro da Faculdade de Filosofia e Ciências dessa mesma instituição universitária. Tendo-o dirigido até abril de 2007, retomei sua direção em setembro de 2016, nela prosseguindo até a presente data.
[43] Algum tempo depois, Sr. Olavo e Dona Eunice mudar-se-iam para uma outra casa, desta feita na Alfredo Porchat, no Boqueirão.
[44] Esse período como camerista foi muito especialmente produtivo para mim em minha formação musical, não só por permitir-me contato com uma refinada forma coletiva de fazer música, mas também pelo treino constante de leitura à primeira vista. Naqueles anos, além de com o Sr. Olavo de Almeida, tive o privilégio de conviver, entre outros, com Archibaldi Martins da Silva [violista] eMarina Rodrigues Agapito [violinista].
[45] Numa dessas ocasiões, conheci as Maestrinas Cleofe Person de Mattos e Elza Lakschevitz, que lá estavam para também desenvolver atividades no curso de férias. Embora estivesse particularmente interessado nas aulas de regência—coral e orquestral—, também participei, em 79, do curso de música de câmera ministrado por Santino Parpinelli. Nessa oportunidade, conheci a pianista curitibana Maria Beatriz Wolff de Carvalho [depois: Maria Beatriz Carvalho Schnell, já há muito radicada na Alemanha, onde exerce atividades musicais], com quem formaria um duo de piano a 4 mãos, que, entre maio e junho daquele ano, apresentar-se-ia em Santos, Cubatão, Curitiba [2 concertos], Buenos Aires [2 concertos] e Vacaria. Essa foi minha derradeira atuação como pianista comprometido com o estudo regular de seu instrumento. A partir daí, só em poucas ocasiões voltei a apresentar-me como pianista erudito na Baixada Santista—sempre então como camerista—, lembrando-me de tê-lo feito em companhia de José Carlos Keremian Simonian, Maria Cristina Mie Nishi, e como membro de um pequeno grupo de câmera ad hoc constituído por José Carlos como flautista, uma oboísta e uma violoncelista, ambas de São Paulo.
[46] Daquela turma da qual eu era o caçula, então ainda com 18 anos, faziam parte, um pouco mais velhos do que eu, alguns dos futuros grandes nomes da regência coral e orquestral brasileira: Fábio Mechetti [hoje à frente da Orquestra Filarmônica de Minas Gerais]; Lutero Rodrigues [hoje docente e pesquisador da UNESP]; Naomi Munakata [hoje regente do Coral Paulistano Mário de Andrade].
[47] Encontro tais informações na contracapa de um programa que apresentava: “Recital do Soprano Nilce Lassalvia Fonseca”, evento “[p]atrocinado pelo Dr. Charles A. de Souza Dantas Forbes”, ocorrido no “[d]ia 20 de Maio de 1953”, às “21 horas”, no “CINE – ATLÂNTICO”, em Santos.
[48] De acordo com a informação a seguir referida, o Tenente-Coronel Jorge Conway Machado [depois: Coronel Jorge Conway Machado], nomeado interventor estadual na Prefeitura Municipal de São Vicente, esteve à frente do Executivo vicentino pelo período de 20 de dezembro de 1967 a 31 de janeiro de 1969; cf. “EX-PREFEITOS DE SÃO VICENTE”. Disponível em: http://www.saovicentealternativa.com.br/publico/noticia.php?codigo=238 Acesso em: 07 fev. 2019. Cf. “Prefeitos vicentinos”. Disponível em: http://www.novomilenio.inf.br/sv/svprefeito.htm Acesso em: 07 fev. 2019; “Jorge Conway Machado”. Disponível em: http://www.novomilenio.inf.br/sv/svpoli1967.htm Acesso em: 07 fev. 2019.Na Baixada Santista, a Orquestra Vicentina de Concertos foi precedida, no gênero,pela Orquestra Sinfônica de Santos, naquele tempo dirigida pelo Maestro Bruno Roccella.
[49]Cf. ELAINE.S. Vicente Jornal. Já temos uma orquestra. São Vicente, 15 nov. 1968.
[50]Uma pequena matéria jornalística—creio que publicada pela “Sucursal de São Vicente” de A Tribuna [não há identificação do jornal que a veicula, tampouco da data em que o faz, nela havendo somente a seguinte anotação manuscrita: “JAN. 1972”]—dá conta de “outra iniciativa da administração Jonas Rodrigues para levar cultura musical ao povo vicentino e turistas”. Tratava-se do programa Sempre aos Domingos, que, das 10:00 às 12:00, era realizado no “Cine Teatro Jangada”, cujo principal protagonista era a Orquestra Vicentina de Concertos. Conforme a matéria em pauta, tal programa teria sido criado e levado a efeito ao longo de todo o ano anterior, 1971.
[51]“Cantata 1968 – Jangada”; selo “Chantecler” [CMG-1028]; “Sesquicentenário da Independência”; selo “Copacabana”; [CLP-11.672]. A “Cantata 1968 – Jangada” foi especialmente composta por meu pai para a inauguração do “Cine Teatro Jangada”. Já para o LP “Sesquicentenário da Independência” ele comporia “Extroversão”, fascinante obra orquestral que atraiu a atenção e o elogio do Maestro Souza Lima, quem, a propósito, também teve participação nesse mesmo disco.
[52] O último registro jornalístico que tenho de uma apresentação da Orquestra Vicentina de Concertos é do domingo “16 - IV - 1972” [informação manuscrita na própria notícia, provavelmente publicada pela Sucursal de São Vicente de A Tribuna]. A data em pauta, um domingo, estará correta se referida à apresentação, não à publicação da notícia, cujo início diz: “A Orquestra Vicentina de Concertos executou ontem pela manhã, no Cine Jangada [...]”. Tendo-se presente esse texto, a apresentação em pauta terá decerto ocorrido no âmbito dos programas Sempre aos Domingos, os quais tinham lugar no “Cine Teatro Jangada”, das 10:00 às 12:00. Em tal caso, a notícia terá sido publicada na 2ª. feira, 17 de abril de 1972. Esse ser o último registro jornalístico que tenho de uma apresentação da Orquestra Vicentina de Concertos não significará tenha sido essa sua derradeira aparição, mas só o fato de meu avô, compilador de todo esse material [cf., aqui, n. 1], não ter podido continuar com tal trabalho arquivístico.
[53] Cf. LICHTI, Fernando Martins [ed.]. Poliantéia Vicentina. São Vicente: Caudex, 1982; p. 197.A Poliantéia Vicentina é fonte de agradável leitura, mormente para quem seja vicentino ou nutra interesse ou curiosidade pela cidade de São Vicente. Embora não pareça ter sido escrita segundo os cânones de uma metodologia científica, mesmo assim constitui importante referência inicial para pesquisadores voltados à mesma temática.
[54]Cf. “EX-PREFEITOS DE SÃO VICENTE”. Disponível em: http://www.saovicentealternativa.com.br/publico/noticia.php?codigo=238 Acesso em: 11 fev. 2019: “Eng. Jorge Bierrenbach Serra, 1/1/1973 a 31/1/1977”.
[55] Cf. “Jonas Rodrigues”. Disponível em: http://www.novomilenio.inf.br/sv/svpoli1963.htm Acesso em: 08 fev. 2019.Se não me falha a memória, Jonas Rodrigues e família residiam numa bela e grande propriedade na esquina da Presidente Wilson com a Rangel Pestana.
[56] Aldo Nilo Losso—que morava com a esposa e as 3 filhas numa confortável residência na Presidente Wilson, creio que entre a Visconde do Rio Branco e a Tibiriçá—viria a ser o Chefe de Gabinete do então futuro Secretário de Cultura, Esportes e Turismo do Estado de São Paulo, Pedro de Magalhães Padilha, durante o governo de Laudo Natel [1971-1975].
[57] Havia pouco menos de um ano da intervenção estadual no Executivo vicentino, era editado o “Ato Institucional Número 5” [a 13 de dezembro de 68]. Menos de 4 semanas depois de concluída tal intervenção, seria publicado o “Decreto-Lei 477” [a 26 de fevereiro de 69]. Em dezembro de 68 [para lembrar somente alguns nomes do meio artístico], Caetano Veloso e Gilberto Gil seriam presos, partindo em julho do ano seguinte para a Inglaterra. Perseguido pelo regime, Chico Buarque partiria no início de 69 para a França, depois permanecendo na Itália. Por fim, dos cerca de mil estudantes reunidos em Ibiúna, em congresso da União Nacional dos Estudantes, todos presos em 12 de outubro de 1968, alguns deles, ao que parece, teriam permanecido detidos durante certo tempo em delegacias e quartéis de São Vicente e Praia Grande [já então emancipada]: cf. “A queda de Ibiúna”. Disponível em: http://www.vladimirpalmeira.com.br/ano1968_6.html Acesso em: 07 fev. 2019.
[58] Trata-se do governo do Marechal Arthur da Costa e Silva, transcorrido entre 15 de março de 67, data de sua posse, e 31 de agosto de 69, data de seu falecimento.
[59] O governo paulista tinha então à frente Roberto Costa de Abreu Sodré, que por ele respondeu no período de 67 a 71.
[60] Em nota publicada no S. Vicente Jornal referente à “Semana 17 a 23 – janeiro de 1972”, perguntava-se ao futuro prefeito municipal “JORGE BIERRENBACH [SENRA]” [que seria eleito em novembro daquele ano]: “O que pensa sobre a Orquestra Vicentina de Concertos?” Eis sua resposta: “A Orquestra Vicentina de Concertos tem um grande valor artístico, tão bem regida por este notável maestro Jesus de Azevedo Marques. É um patrimônio cultural da cidade, pelos grandes serviços prestados a cultura de nossa terra e de outras cidades do interior. Portanto deve a Secretaria de Turismo do Estado voltar as suas vistas para a Orquestra, proporcionando recursos necessários para um maior brilhantismo da mesma”.
[61] Só me transferi em definitivo da cidade em janeiro de 87, quando fixei residência em São Paulo.
[62] Uma exceção será representada pelas atividades desenvolvidas e programadas pela “Casa do Barão”, sede do Instituto Histórico e Geográfico de São Vicente; cf. “Casado Barãoem São Vicente”. Disponível em: https://www.cidadeecultura.com/casa-do-barao-sao-vicente/ Acesso em: 21 fev. 2019.
[63]Cf.“COMPLEXO CULTURAL PALÁCIO DAS ARTES”. Disponível em: http://www.praiagrande.sp.gov.br/turismo_n/pda.asp Acesso em: 21 fev. 2019.
[64] Penso que, como cidade, São Vicente jamais terá se destacado em tal campo, não obstante,vicentinos ou não, importantes nomes que nela brilharam por algum tempo.
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Ubirajara Rancan de Azevedo Marques, vicentino de 59, é docente e pesquisador no Departamento de Filosofia da UNESP, em Marília, há 30 anos. Fez Doutorado, Mestrado e Bacharelado em Filosofia na USP, tendo realizado estágios pós-doutorais na França, na Itália e em Portugal.
Filho de José Jesus de Azevedo Marques [Maestro Jesus] e de Maria Thereza Rancan, iniciou seus estudos de piano com Maria Guilhermina Martins Machado [Tia Mimi], tendo depois estudado por 10 anos com Souza Lima, bem como frequentado, entre 1978 e 1981, cursos de regência coral e orquestral ministrados por Eleazar de Carvalho, Roberto Ricardo Duarte e Ronaldo Bologna.
Estimulado por um primeiro experimento coral no “Martim Afonso” em 76-77, fundou e dirigiu, em fins dos anos 70 e princípios dos 80, o “Coral Jovem”, em São Vicente, e o “Coral da Aliança Francesa de Santos”.
Fundou o “Boca santa” em abril de 1999 [tornado em 2003 “Coro da Faculdade de Filosofia e Ciências” da UNESP, em Marília], tendo estado à frente dele até 2007. Retomou a direção desse mesmo grupo em 2016, permanecendo novamente, desde então, seu regente.
Como pianista solista, apresentou-se na Baixada Santista e em São Paulo; como pianista camerista [ao lado de cantores, flautistas, pianistas, violinistas, também em trios, quartetos e quintetos], na Baixada Santista, em Buenos Aires [Argentina], Curitiba [PR], Teresópolis [RJ] e Vacaria [RS]. Como regente, na Baixada Santista, bem como na capital e em cidades do interior e do litoral norte paulista, em Ibiporã [PR], Poços de Caldas e Tiradentes [MG].
Em janeiro de 2018, apresentou-se com o “Boca santa” na “Casa do Barão”, em São Vicente.








CORAL JOVEM DE SÃO VICENTE

Em imagens de outubro de 1980, momentos de uma viagem do "Coral Jovem" de São Vicente a Vacaria, no Rio Grande do Sul, onde participamos de um encontro de corais.
Cortesia de Fernando Ribeiro, a quem muito agradeço.







MINICONTOS






 O “Rabo”.


Um bar pra receber amigos. Sem tino pro negócio, não gostava quando vinha gente “estranha”, clientela normal que ele não conhecia, nem queria conhecer.

O lugar, a edícula [também o gramadinho na frente dela] de uma velha casa própria, que, agora movimentada, não perdera o ar de esquecida.

Com tudo pra ser um fiasco, e malgrado o proprietário, a coisa vingou.

Duas placas metálicas, retangulares, de fundo verde, anunciavam em vermelho, frente e verso, o rodízio de identidade que definia aquele espaço: “O Bar” e “Rabo”; “Rabada” e “Rabanada”.

Quando fui, não notei que “Rabo” era “O Bar” de trás pra frente. Ao dizer-lhe que aquilo tudo era “um verdadeiro experimento”, Ernani, gozador, apontando a cor predominante das placas, corrigiu-me: “verdedeiro experimento!”

De 3ª. a 5ª., “O Bar”; sexta e sábado, “Rabo”; “Rabada” pro almoço de domingo; na segundona, café com “Rabanada”.

Como não gostar da ideia? Um só lugar, diferentes públicos e ambientes, sempre o mesmo point.

Já a provocação de “o bar” ao contrário... Mas Ernani dizia que “rabo”, “rabada”, “rabanada” era “uma simples sequência de nomes, silabicamente crescente, a partir do mesmo radical”.

O fato é que, tudo indo bem de 2ª. a 2ª. , a concorrência passou a financiar matérias espontâneas... da imprensa local, que davam o “Rabo” como “ponto de comércio de sexo em bairro de classe média alta”, e pá de cal“às portas de um recém-inaugurado templo católico” etc. etc.

O “verdedeiro experimento” duraria pouco mais de 3 meses. Terreno, casa, edícula abandonados de vez [o amigo nunca voltaria à cidade], a mais antiga das profissões, valendo-se da propaganda indireta que lhe fora oferecida  de graça pelos opositores do empreendimento original, tomou o “Rabo” sem nenhum incômodo a “oposição” passara a frequentá-lo...

No final daquele ano de 83, alguém pôs ali uma placa metálica, retangular, verde na qual se lia, em vermelho: “Rabo Preso”.


Coisas d’antanho...


Quando eu começava a aprender o alfabeto, o meu avô Ivo tinha 75 anos. Nessa época, aposentado havia tempo, apoiava o seu fim de tarde no canto direito do largo portão de madeira que separava calçada e rua da área residencial em que morávamos. Ao lado dele, seu Antônio, vizinho. Conversavam? O tempo todo. Mas o que faziam mesmo era ver a “banda passar”, de acordo com a formulação eufemística do meu pai, que, valendo-se do premiado sucesso lançado ano antes do novíssimo Chico Buarque, assim classificava aquele olhar sênior pela “preferência nacional”... Pudera! Para quem, nos primeiros anos do século, extasiava-se ao surpreender os tornozelos descobertos das moçoilas de então, minissaias em desfile eram um escândalo tão inimaginável, quanto infelizmente tardio.

Já para rapazes imberbes feito eu, os sutiãs eram o verdadeiro ícone da feminilidade. Não se concebia uma garota que não os usasse, mesmo que não tivesse com o que os preencher.

Como demoraria um pouco para que a fumaça da queima feminista na América [no ano seguinte] fosse avistada por aqui, alterando padrão de comportamento e indumentária das meninas-moças, garotas, mulheres, o fato é que o soutien-gorge ainda se sustentaria, quase intocado, por bom tempo.

Apesar da atração que exercia, desabotoar o dito-cujo era um persistente desafio! Como nada é mais inoportuno do que perder o timing da preliminar, muitas garotas, em atitude solidária, cuidavam elas mesmas de abrir o próprio, evitando, assim, o inevitável constrangimento do desajeitado da vez.

Outra coisa incrivelmente atraente naqueles tempos era a cinta-liga. Supondo-se você saiba o que ela seja, quantas mulheres conhece que ainda usam esse acessório? A quase totalidade delas prefere a brochante meia-calça irmã gêmea do minhocão, ou, cedendo enfim à insistência, permite-nos alguns minutos de fantasia privée. Como peça da elegância feminina cotidiana? Nem na cidade-luz!

Em 88-89 e 93-94, a caminho da então Bibliothèque Nationale de Paris, ou da estação de metrô mais próxima, todo dia eu passava diante de uma vitrine na qual se expunham refinadas porte-jarretelles. Há pouco mais de 5 anos, lá fui eu revê-las. A loja, encontrei; já as cintas-ligas... Vestir uma, hoje, será tão “boko moko” quanto enviar um cartão postal.

De comum entre sutiã e cinta-liga, certo ar indireto, como convém de transgressão e libertinagem. Ou você não reparou nas alças, fechos e presilhas de um e outra, que prendem, firmam, seguram, retêm? Seja como for, em tempos de fast-food também em sentido metafórico, cultivar a sedução e os seus acessórios requer um tipo de convivência incompatível com a cultura majoritária da nossa época.


Anya.


Russo-italiana, quatro línguas na bagagem, Romina Yurenko era para uns o símbolo de um revival; para outros, o emblema de um passado em extinção.

Tempos de glasnost e perestroika, os que trabalhavam naquele exemplo de arquitetura neostalinista do Boulevard Lannes havia doze anos sede da Embaixada soviética em Paris faziam das tripas coração para manter as aparências, inclusive no que se referia à rubrica “espionagem”. Assim, se a estonteante camarada Yurenko passava por espiã, tanto melhor, embora ela fosse, de fato, somente a filha mais nova de um velho burocrata moscovita, que, recém-viúvo, queimara os últimos cartuchos da sua influência política, enviando a caçula para uma temporada como assistente do adido cultural soviético na França. Diante do futuro temeroso, o cioso genitor desejava era um vantajoso matrimônio para a sua querida Anya [nome que, recusado pela mãe, sempre lhe dera e, por extensão, para si mesmo.

Na própria Embaixada, não eram poucos os que a tomavam pelo que, não o sendo, ela parecia, mais do que só lembrar, efetivamente ser; já no território da contraespionagem local e de países da Aliança Atlântica, eram muitos os que, aguardando um movimento seu, vigiavam-na com a esperança de, além de a surpreender com a boca na botija, reunir ofício e prazer, numa autêntica confirmação de que “a vida imita a arte”, ou pelo menos o cinema.

Vítima da avaliação precipitada de tantos candidatos a “Bond. James Bond”, Romina, sem o querer, insuflava as perspectivas com que era regularmente monitorada. Fosse por não fazer contato com os alvos de praxe o que levava à suspeita de a sua mira visar os figurões, fosse pelos seus passeios regulares no Bois de Boulogne, a dois passos da Embaixada quando às vezes conversava com um ou outro], ela tornara-se, havia mais de ano, o centro das atenções de alguns dos principais serviços de espionagem e contraespionagem em Paris.

Ignorando completamente as elucubrações profissionais de toda essa gente, mas atento à beleza que flanava no Bois pela hora do almoço, Berêncio Lampréia, mesmo não tendo porque estar ali três ou quatro vezes à semana, fizera daquele parque o recanto preferencial do seu modesto déjeuner. Em meio à baguette, à cerveja, ao cigarro, o encanto de Anya não lhe passara despercebido.

Numa linda tarde de fim de verão de 88, agastado com tanta notícia ruim do Brasil, hiperinflação, escassez de alimentos, o conterrâneo governador a dizer que em Minas não faltaria carne bovina, nem “porquina”... , Berêncio, sem a perceber que se aproximava, lança abruptamente o Monde, o Pariscope, o resto da sua baguete no cesto ao lado do banco do qual já se levantava. Vendo-o assim irritado, a moça que nunca lhe dirigira a palavra indagou-lhe, entre receosa e solidária: “Des mauvaises nouvelles?...”

Sem estar à cata de interação social, Anya tencionava aperfeiçoar o seu francês, sobretudo o sotaque. Dando-se conta do engano que acabara de cometer, despediu-se polidamente daquele estrangeiro, sem nem mesmo saber de onde procedia ele. Na verdade, não tendo se apresentado entre si, eles trocaram algumas poucas frases durante a ligeira convivência que os dispôs naquela zona de falsa intimidade regida pelas règles de politesse.

Mas tudo de que precisava Berêncio era de um simplório acaso. Sem nenhuma afobação, deu tempo ao tempo. Passando a cumprimentá-la, sorria-lhe às vezes. Da sua parte, pouco exitosas as tentativas de aproximação linguística com os nativos, Anya registrou cumprimentos e sorrisos. Não indo ao Bois por conta deles, sabia que ao menos isso encontraria por lá.

Se ela registrara esse avizinhamento à distância, o mesmo fizeram os que a seguiam, ou que já os observavam. Contudo, sem presença nos registros documentais da contraespionagem, o contato de Romina Yurenko não pôde ser identificado. Ninguém o conhecendo, não se sabia a serviço de que país, ou países, ele estivesse. Feita a descoberta, a identidade de Berêncio causou inda mais perplexidade do que a surpresa inicial sobre quem fosse aquele novo agente: por que diabos um brasileiro e uma agente soviética interagindo um com outro em Paris?

Alheios a essas representações, Anya e Berêncio já se sentavam juntos no mesmo banco, reconheciam-se mutuamente como estranhos um ao outro, e, com o passar das semanas, cada vez mais como menos estranhos entre si. Embora um já soubesse o nome do outro, de que país provinha e o que o trouxera a Paris, tratavam-se formalmente, cumprimentando-se com um leve, discreto aperto de mãos. Certa vez, Romina comentou sobre uma soirée musical na Embaixada soviética. Mostrando-se sinceramente interessado fora um bom violoncelista amador], Berêncio ganhou dela um convite para a apresentação. Pensando que a encontraria, somente a viu, de longe. Acenando-lhe, não foi correspondido.

Acabado o concerto, foi-se embora macambúzio. Quarentão experimentado, Berêncio precipitava-se ao avaliar negativamente o suposto desencontro. O que lhe soara como confirmação incontestável de polidez exagerada, até humilhante, nada mais era do que uma estratégia convergente. Anya queria observá-lo, à distância e em terreno próprio, dando a si a oportunidade de tê-lo como presa sua, a ele, a ocasião de, pelo encantamento da circunstância, pelo fausto ambiente, pela arte que emanava de músicas e músicos russos, aprender a conhecer algo do seu mundo, valorizá-lo e valorizá-la na proporção devida.

Passada uma semana, nada de se encontrarem. Romina mantinha horário, banco, postura. Ensimesmado no seu inverno pessoal, Berêncio negava-se a retomar o lugar cativo. Na metade da semana seguinte, cedeu. Passados 20 minutos da hora em que habitualmente se encontravam, porém, deu-se por definitivamente derrotado. Sem nem sequer um mísero jornal que atirar abruptamente no cesto de lixo mais próximo, murmurou alguma coisa que só um outro mineiro pra decifrar, e prosseguiu.

Chegado à rua, Anya vem ao seu encontro. Sorrindo-lhe como se o conhecesse havia exatos 73 dias e, de fato, eles se conheciam havia exatos 73 dias , abre-lhe os braços como se, íntimos, não se vissem havia muito tempo [eles não se viam havia 11 dias, e, em vez de um cerimonioso: “Comment allez-vous?”, abraça-o e beija-o demoradamente. Só depois de findo o longo cumprimento, diz-lhe: “Tu vas bien?” ao que ele, num perfeito mineirês apaixonado, redarguiu: “Uai sô...”

Tendo acompanhado o desenrolar do duplo descompasso a ausência de um e a presença de outra; a aparente frieza do comportamento de Anya diante da falta de Berêncio por mais de uma semana, o desespero dele pela falta dela num único dia, a contraespionagem de plantão já agora uma verdadeira junta internacional, vendo-os que se abraçavam e se beijavam, não teve dúvida: ela conseguira não só o seduzir, mas o subjugar completamente! Até a inteira dissolução da União Soviética, três anos depois, aqueles contraespiões não sem despeito pelo mineirinho de Arraial do Tejuco ainda se reuniam no Bois já não mais frequentado por Anya e Berêncio, que mergulhavam no quarto inverno comum para discutir sobre qual o objeto da inusitada relação que um dia juntou


A Volta da Ercília.


Não me agradam os revivals dos mais diferentes tipos, amparados no marketing e sem qualquer originalidade. Vem daí eu implicar com o nome daquele estabelecimento: “Empório Santa Ercília”. Já de saída ficava em dúvida sobre “Ercília” ter ou não “h”; depois, se teria havido santa com tal nome. Mas o que mais incomodava era a lojinha metida designar-se “empório”. Assim, só o do seu Tricca, na Frei Gaspar da Madre de Deus da minha infância, com bolacha em lata e barris de azeitona preta!

Ontem, porém, numa rádio local, ouvi que o Ercília começava, naquele dia, não uma liquidação, é claro, mas uma renovação de estoque. Em que pesasse o eufemismo barato, a coisa me atraiu, pois eu gostava duns móveis rústicos em exposição na parte externa do empório. Por que não?

Ao chegar no Santa, notei carros em fila dupla e um montaréu de gente que não fazia questã de manter o salto. Se a cena estimulava o consumidor acanhado a bater em retirada antes de começada a peleja, fornecia ao intelectual de gabinete um álibi de ocasião para entrar em campo. Virando pelo avesso a estratégia do Ercília [o burburinho em volta até lembrava um verdadeiro empório], aquele inusitado sucesso era um prato cheio para o sarcasmo de prontidão.

Querendo estar, nem tanto, agora sim, a distância, sentia-me protegido e regalado. Recuperara a índole crítica! Aproximei-me de toda a gente, mais ao lado do que entre, pois não havia fila que aguentasse tanto empenho.

Vejo uma senhora. Distinta e resistentemente cortês, dirige-se um por um a todos, falando-lhes com educação, sorrindo-lhes amistosamente. Ercília? A mansidão de seu jeito distribuía um apaziguamento duradouro, aglutinando uns e outros em volta dela. Ercília! Aos que estávamos atrás, já então à sua espera, vê-la e a seus gestos tornava-os mais e mais eficazes, quase encantatórios. Como retribuir semelhante delicadeza? Comprando mais, pensei. E, então, Ercília pareceu-me vilã. Confirmando a impressão, percebi que alguns com quem falava iam depressa aos produtos expostos à entrada da loja. Entre vê-la com outros olhos e partir irritado, Ercília já estava diante de mim. Não se apresentou era preciso? , mas pegou-me a mão. Segurando-a firme, olhando-me mais firmemente ainda, disse: “Vá à entrada, pegue o que lhe agrade, volte amanhã para pagar. Há muita gente e ninguém conseguirá dar conta”.

Tão inacreditavelmente simples, quanto absolutamente inacreditável! Tamanha a convicção do gesto, a santa em pessoa a praticá-lo, não titubeei. Encontrando um abajur, sem nenhum constrangimento e feliz pelo experimento sem igual, fui-me embora com ele.

Dia seguinte, pelas 10:00, voltei ao Empório. Lá chegando, algum movimento. Nada, porém, comparado à agitação da véspera. Sorrindo, não encontrei retribuição, antes pelo contrário. “O senhor também veio ver a dona Ercília? Já vou logo dizendo: ELA MORREU!” Chocado com a agressividade e sem-cerimônia da notícia, respondi que estava surpreso, sentia pelo falecimento da proprietária, desejando pagar o abajur levado. “O senhor trouxe a peça?” Não o fizera, embora pudesse descrevê-la. Ao tentar fazê-lo, fui interrompido por uma moça do lado de trás do balcão [seria a filha?], que disse ao rapaz desaforado: “Eu explico”.

Depois de alguns minutos, uma surpresa inda maior do que a da véspera: aquela senhora nunca fora nenhuma “dona Ercília”. “Ercília” é uma gata que se foi. Grande, gorda, amada e morta. A outra “Ercília” ninguém sabe de onde veio, nem pra onde foi...

O prejuízo era grande. Despreparadas pra tanta gente, as moças que atendiam ontem mal viam quem entrava na loja. Não viram “dona Ercília”, nem a caridade praticada.

Pra quem pensara jamais entrar naquele Empório, eu a ele voltava—agora com o abajur e sem nenhuma índole crítica—pela terceira vez em menos de 24 horas... Não me sentindo à vontade pra devolver a peça que não estava no rol de ofertas, paguei por ela uma indecente exorbitância.

Na saída, uma das atendentes fantasiou: “Quem sabe não foi a Ercília que voltou como velhinha?...” Nesse caso, um revival ao pé da letra. E, dessa vez, completamente original.


A Ushanka e o cobertor de orelha.


Primeiro inverno em Paris, avulso e disponível, Berêncio enroscava-se num cobertor de orelha local, mulher de [alto] funcionário da então embaixada soviética na cidade-luz. Um fim de tarde qualquer, encontraram-se os 3—e um punhado mais de gente - num Café em Saint-Germain-des-Prés. Notório gozador, o russo comprazia-se em provocar Berêncio com frases sem sentido no seu perfeito francês, língua inda pouco conhecida do nosso compatriota imprudente. 

Carecão nos seus meros 32 anos, Berêncio não usava gorro, nem boina, mesmo naqueles dias gelados. A certa altura, sempre inconveniente, o russo lhe diz que ele não se preocupe, pois lhe dará uma autêntica Ushanka. Os homens riram e continuaram a beber. Justine, que não podia destoar, sorriu amarelo. Mas compensava o amante tocando-lhe pés e pernas por debaixo da mesa. Encorajado, Berêncio dispara: “L’homme qui a perdu la tête n’a plus besoin de chapeau”... 

Dmitry já se levantava para desabar sobre ele, mas, interrompido pela gargalhada confessional da esposa que valeu como difamação pública, partiu com o seu séquito, levando-a aos puxões.

No restante daquele e em vários dos invernos seguintes, o mineirinho de Arraial do Tejuco, além de um bom cobertor de orelha local por vezes, o mesmo da cena relatada, serviu-se de uma autêntica Ushanka, que, feito espólio de batalha, fora esquecida certo fim de tarde na mesa de um Café em Saint-Germain-des-Prés.



Circulando pela madrugada


Madrugada dessas, dei de lembrar dos ônibus da minha infância e adolescência. Duplas invertidas, o itinerário de um era na ida o do outro na volta.

“1” e “2”; “3” e “5”; “7” e “8”; “9” e “10”; “21” e “24”. “1”, “3”, “7”, “10” e “21” iam pela praia; os outros, pela linha 1” ou “matadouro”. Saíam de São Vicente, passavam por um pedação de Santos e voltavam. Circulares.

O “1” e o “2” pegavam a Conselheiro Nébias; o “9” e o “10”, a Ana Costa; o “3” e o “5”, a Pinheiro Machado, “canal 1”; o “21” e o “24”, a Bernardino de Campos, “canal 2”. O “7” e o “8” faziam o maior trajeto: de praia, o Itararé vicentino e toda a orla santista. Como se não bastasse, boa parte do porto e a “zona”.

Cheio, atrasado, ou pelo simples mau humor do motorista da vez, muito coletivo passava reto. Com chuva, espirrava água em quem praguejava no ponto...

Quando já meio tarde, um ou outro ônibus da “Ultra” ou do “Rápido Brasil”, da linha São Paulo – Santos [Ponta da Praia], parava nos pontos, e, por uma simbólica “caixinha”, levava-nos em confortáveis poltronas...

Naquela época, nos circulares, entrava-se por trás, saía-se pela frente; depois do meio do corredor, cobrador e borboleta. Lembro-me de quando a engrenagem da borboleta não dificultava que as crianças, isentas de pagar pela condução, passassem facilmente por debaixo dela; mais adiante, só raspando o traseiro no chão, ou ajoelhado...

Quando pequeno, os ônibus da “Viação Santos-São Vicente Litoral Limitada” eram pintados em verde e amarelo. Naquela altura, cobradores e motoristas portavam quepe [na cor verde, se bem me lembro].
Na praça do correio—Praça Coronel Lopes—, onde, além do prédio dos Correios e Telégrafos, havia o “Grupão” e o “Club de Regatas Tumiaru”, fazia ponto inicial uma linha de ônibus que levava à Praia Grande e Cidade Ocian, também a Mongaguá e Itanhaém. E no Catiapoã, ao qual chegávamos cruzando a passarela de piso de tábuas de madeira sobre os trilhos da Sorocabana, tinha ponto uma outra linha [seria o “6”?], que, parece, circulava só em São Vicente, indo até perto de onde passara a morar a minha avó materna, o número 68 da rua San Martin, na Vila Valença, então uma lonjura só desde a Frei Gaspar, 1104.
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Afora uma que outra “licença etária”, a maioria dos dados acima estará correta, embora, a bem dizer, o que menos importe aqui seja a frieza do relato preciso...


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