10/07/2019

CUBATÃO


Cubatão em 1826 retratada por Benedito Calixto. Acervo: Museu Paulista.



INTRODUÇÃO E SÍNTESE HISTÓRICA

I - CUBATÃO COLONIAL

II- CUBATÃO PROVINCIAL NO IMPÉRIO

III - CUBATÃO REPUBLICANA PRÉ-INDUSTRIAL

IV- CUBATÃO INDUSTRIAL EMANCIPADA

V- CUBATÃO NO SÉCULO XXI


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O CAMINHO PARA O SERTÃO

UMA LOCALIDADE  BEM ANTIGA E UMA CIDADE MUITO NOVA

  

Apresentado como Caminho para o Sertão ( acima no canto esquerdo), segundo se observa neste mapa do atlas "Roteiro de todos os sinaes e derrotas que há na costa do Brasil", existente na Biblioteca do Palácio da Ajuda em Lisboa, Cubatão aparece ainda vinculado à Vila de Sam Vicente. Não tardaria porém muito e ele - situado no continente - haveria de integrar o grande Município de São Paulo dos Campos de Piratininga. Legenda incluída no livrete de 1974 da P.M.C.


Encravada no sopé da Serra do Mar, Cubatão, desde a pré-história, tornou-se o ponto geográfico mais estratégico da região, por ser uma passagem praticamente obrigatória entre o planalto e o litoral. Há cinco mil anos, antes do grande recuo das águas do Atlântico e da formação das ilhas de São Vicente e Santo Amaro, o mar banhava a serra e penetrava do Cubatão.

Todos o caminhos que nos levam a esses dois pontos extremamente frequentados do estado tem Cubatão como referência indiscutível: 

Os caminhos primitivos dos indígenas;

As primeiras estradas coloniais, pedestres e de tração animal, do comércio de escravos indígenas, do pau-brasil, açúcar e mineração; 

As ferrovias dirigidas ao porto de Santos para escoamento do café; 

E finalmente o complexo de rodovias para atender o polo industrial e a gigantesca demanda turística e veranista que fez expandir a imensa ocupação imobiliária, fixas ou nas temporadas, nas cidades praianas;

Tudo isso passou e ainda passa por Cubatão. 

O Abastecimento de água e a energia elétrica consumida por milhares de residências, nas fábricas e estabelecimentos comerciais e de serviços da Baixada Santista partem de Cubatão. 

Ao mesmo tempo em que se descreve o gigantismo econômico e suas múltiplas dimensões geográficas, o núcleo  urbano e residencial cubatense permaneceu compacto, limitado e restrito aos serviços da vida industrial do seu entorno. Isso porque a maioria da mão-de-obra atuante no município tinha e têm residência nas cidades vizinhas.

Detalhe de um mapa paulista da Estrada de Ferro Paulista do início do século XX


Isso explica também o rápido processo de ocupação dos núcleos residenciais serranos (cotas) - surgidos e ampliados durante a construção das rodovias Anchieta e Imigrantes -  e também as favelas instaladas em diversos pontos periféricos. 

Todas essas rápidas mudanças aconteceram basicamente nas primeiras décadas do século XX, o que explica a recente e rápida organização política da cidade, comandada por forças sem raízes e vínculos históricos com a cidade. Tanto a criação do município como a sua organização estrutural são muito recentes, se comparadas com a sua antiguidade colonial.  

Cubatão é uma localidade de raízes muitos antigas, de particularidades culturais e regionais inconfundíveis. Porém, apesar desse aspecto histórico, foi estabelecida jurídica e politicamente somente após a II Guerra Mundial. Isso aconteceu em função da sua posição estratégica de proximidade ao complexo portuário santista e,  principalmente, aos dois núcleos básicos de industrialização, petroquímico e siderúrgico que ali seria instalados.  



Imagem: bico-de-pena de Lauro Ribeiro da Silva (Ribs), publicado no jornal santista A Tribuna em 10 de agosto de 1952, página 19; e no livro Romagem pela Terra dos Andradas, de Costa e Silva Sobrinho. Também incluído no folheto Cubatão - 2 - Documentação Histórica - Série Cidades (produzido em 1994 por Eletropaulo Eletricidade de São Paulo (Departamento de Patrimônio Histórico, com apoio do Centro de Documentação Histórica da Eletropaulo), acervo do Arquivo Histórico de Cubatão


SÍNTESE CRONOLÓGICA

Tudo começou pelo caminho das águas, partindo do Porto das Naus, em São Vicente, seguindo pelo Mar Pequeno, Canal dos Barreiros, Largo do Pompeba, Rio Casqueiro, Largo do Caneú, Rio Cubatão, Rio Mogi e Rio Perequê. Para alcançar o Planalto, seguia-se no início a trilha dos índios Tupiniquins. Depois, através do Vale do Rio Perequê, o chamado Caminho do Padre José. Mais tarde, a Calçada do Lorena, mais à esquerda, a partir do rio Cubatão, tornou-se o principal caminho entre o litoral e o planalto.

O Porto Geral de Cubatão teve a sua origem na primeira metade do século XVIII. Ao seu lado, desenvolveu-se um povoado, por muito tempo conhecido por essa denominação. Era ali que as cargas e mercadorias trocavam as balsas que vinham do porto pelo lombo das mulas que formavam as tropas que subiam a Serra do Mar.

Por pouco tempo (1833-1841) o povoado esteve elevado à categoria de município, período após o qual foi anexado a Santos, mantendo-se praticamente estagnado até a década de 1920, quando surgiram as obras da Usina da Light e da Companhia Santista de Papel. 

Após 1940, houve um novo surto com a construção da Via Anchieta, culminando com a implantação da Refinaria Presidente Bernardes, inaugurada em 1955, e da Companhia Siderúrgica Paulista, a Cosipa (atual Usiminas), em 1959.

O crescimento de Cubatão levou a que em 1º de janeiro de 1949 a cidade obtivesse a emancipação político-administrativa em relação a Santos. O primeiro prefeito da cidade assume em 9 de abril, tornando-se esta data o dia em que se comemora o aniversário da cidade.

Com a Via Anchieta, o transporte rodoviário foi dinamizado entre São Paulo e a Baixada Santista, tornando Cubatão um grande centro de tráfego de veículos de passeio e de carga, fortalecendo ainda mais sua vocação de caminho do desenvolvimento de São Paulo e do Brasil.

Com o passar dos anos,  Cubatão foi se transformando, ganhando indústrias, fruto do desenvolvimento industrial paulistano e paulista, bem como dos investimentos federais. Nenhum plano orientou a instalação do parque industrial cubatense, porém, as fábricas foram se localizando ao sabor das vantagens imobiliárias ou pré-requisitos necessários às suas operações (perto ou longe de um núcleo urbano, a favor ou contra as correntes de vento, perto ou longe de cursos d’água, etc) e, no decorrer dos anos, começaram a surgir sérios problemas ambientais, com a poluição do ar, água e solo do Município.

Dezoito das atuais 24 indústrias que formam o Pólo de Cubatão foram implantadas no período de 1955 a 1975. Duas dessas indústrias, Ultrafértil e Cosipa, possuem terminais portuários, onde recebem matérias-primas e embarcam seus produtos acabados.

Além da geração de empregos, a concentração industrial de Cubatão trouxe resultados importantes do ponto de vista financeiro e do fortalecimento da capacidade tributária municipal. A base de sustentação do Município é, portanto, a arrecadação do ICMS, ficando o IPTU, o ISS e outros tributos diretos em segundo plano, se comparado com o quadro dos demais municípios da Baixada Santista.

https://www.cubatao.sp.gov.br/cidade/ acesso : 25 de novembro de 2023



Cubatão.  A cidade que abriga o maior polo industrial da América Latina já era importante referência no Brasil Colônia, pela ligação que estabelecia entre o planalto e o litoral. Localizada na encosta da Serra do Mar, de onde jesuítas, comerciantes, tropeiros e autoridades do reino tomavam fôlego para atingir o Planalto, Cubatão tornou-se essencialmente um lugar de passagem, obtendo assim um papel de destaque no cenário da Baixada Santista, do Estado de São Paulo e do Brasil.

Cubatão surgiu como ponto de ligação entre as trilhas que vinham do alto da Serra do Mar e as vias aquáticas que iam para São Vicente, Santos e o mundo. O Porto Geral de Cubatão teve a sua origem na primeira metade do século XVIII. Ao seu lado, desenvolveu-se um povoado, por muito tempo conhecido por essa denominação. Em 1833, esse povoado foi elevado à categoria de município e, em 1841, anexado ao Município de Santos, mantendo-se praticamente estagnado até a década de 1920, quando surgiram as obras da Usina da Light e da Companhia Santista de Papel. 

Após 1940, houve um novo surto com a construção da Via Anchieta, culminando com a implantação da Refinaria Presidente Bernardes, inaugurada em 1955, e da Companhia Siderúrgica Paulista, em 1959. Com a Via Anchieta, o transporte rodoviário foi dinamizado entre São Paulo e a Baixada Santista, tornando Cubatão um grande centro de tráfego de veículos de passeio e de carga. 

Em 1º de janeiro de 1949, a cidade obteve a sua emancipação, permanecendo sob a administração de Santos até o dia 9 de abril do mesmo ano, quando assumiu seu primeiro Prefeito. Com o passar dos anos, a Cubatão foi se transformando e ganhando mais indústrias, fruto do desenvolvimento industrial paulista e de investimentos federais.

Acervo Cartográfico/APESP. Título: Município de Cubatão. Área de interesse da Segurança Nacional. Ano: 1971


TOPONÍNIA CUBATENSE


FRANCISCO MARTINS DOS SANTOS


Cubatão - do árabe-africano ou afro-árabe: Cubata "rancho", com a desinência portuguesa, do aumentativo: Ão, formando Cubatão ou "rancho grande", e aludindo ao grande rancho de tropeiros, que existiu junto ao rio do mesmo nome desde o primeiro povoamento, até a construção e inauguração da Estrada de Ferro, sempre com a denominação portuguesa de Rancho Grande, como era chamado também o correspondente santista, construído à Rua de S. Francisco, junto à antiga Santa Casa, para o mesmo fim. Este hábito africano e árabe-africano produziu para os portos fluviais, onde tais cubatas grandes apareciam, e onde fundeavam e amarravam chatas, batelões, botes, canoas e catraias, a designação de Cubatões, que neste sentido de "porto fluvial" aparece em vários lugares do nosso Estado e do Brasil.

Outra origem, e esta hebraico-africana, é a do hebraico: Cuba "fortificação, distrito fortificado, torre" e Taon "duplicidade, dualidade, duplo", formando o vocábulo Cubataon, como aparece em velhos documentos, com o significado de "torre ou fortificação dupla" ou "distrito fortificado duas vezes ou duplo", às fortificações estabelecidas e criadas pelos portugueses, nas duas margens do rio Cubatão (chamado Cubatão Geral), onde se pagavam os pedágios ou taxas e impostos das mercadorias em trânsito, defendendo o posto fiscal e arrecadador, de assaltos pelos dois lados. Esse posto defendido, chamado Barreira Fiscal, ou simplesmente Barreira do Cubatão, após a abertura do caminho de terra para Santos (a estrada do Aterrado), em 1827, com duração até o advento da Estrada de Ferro, ficou sempre com aquele nome, e isso continuava sendo o Cubataon.

Justifica-se essa dupla denominação na dupla existência dos Cubatões santistas: o Cubatão de Cima e o Cubatão de Baixo, sendo um o Porto Geral e o outro a Barreira ou posto defendido e armado, de cobrança dos direitos.

É esta, aliás, a melhor caracterização deste topônimo. O Cubatão Geral corresponde ao antigo Porto das Almadias (ou "das canoas"), também árabe, de 1532.

Pìaçaguera - do chamado tupi: Pe "caminho" - Haçá "passagem" (por ser infinitivo, sem caso) e Guéra o mesmo que Cuéra, verbal de pretérito, significando "o que foi, o que existiu, o antigo" e formando: Piaçaguéra ou Peaçaguéra "passagem do caminho antigo", nome que deram ao lugar depois da abertura do caminho ou passagem do Cubatão, muito distante dele.

A este caminho realmente antigo chamavam trilha dos guaianases ou esteiro, passagem do Ramalho (João Ramalho); ao novo (do Cubatão) passaram a chamar "Caminho do Padre José", que foi posterior a um primeiro traçado, chamado Caminho do Piraquê ou Perequê, de pouca duração.

 "Embora atribuam ao vocábulo Cubatão a significação de pequeno porto para canoas, a verdade é que chamam cubatões a pequenos e fundos remansos de alguns rios. Esta denominação, que pode ser notada em escrituras e papéis de 1540, 1552 e 1557, é simples corruptela do tupi Cui-pai-ta-ã contraído em cui-pai-tã e transformado por assimilação portuguesa em Cubatão, alusivo à formação do rio que cai do alto [

Francisco Martins dos Santos - História de Santos in O Reformador ed. Especial de 9/4/1952 (periódico cubatense já extinto).


TOPÔNIMOS LOCAIS E REGIONAIS MAIS CONHECIDOS

Caraguatá - do tupi "carauaá tá", designação de espécie de bromélias, das quais os índios confeccionavam cordas.

Casqueiro - Junção do substantivo casca e o sufixo eiro. Lugar onde se descasca madeira para serrá-la. O termo também indica "sambaqui", ou seja, antiqüíssimos depósitos de conchas, restos de cozinha e urnas funerárias datados da pré-história.

Cotia-Pará - Junção das palavras tupis "acuti", significando "que come em pé", e "pará", significando "grande rio, quase mar". Podemos deduzir que seja, portanto, "lugar próximo ao mar onde se come em pé", talvez fazendo referência ao sambaqui existente na região.

Itutinga - do tupi "i", água; "tu", rumorejante, que faz barulho; "tinga", branco. Portanto significando "água branca rumorejante" ou "água branca que cai do alto".

Mogi - do tupi "mboi", cobra; "gy", rio, correspondendo a "rio das cobras".

Nhapium - do tupi seguindo as variantes jatium, nhatium, inhatium. Significa "mosquito que pica". Conforme Gabriel Soares de Souza, "há outra casta (de mosquito) que se cria entre os mangues, a que os  índios chamam inhatium...".

Paranapiacaba - do tupi "Paraná", mar; "apiacaba" vista, visão. Sendo, então, lugar donde se tem vista para o mar. Entretanto, Francisco Martins dos Santos defende que o termo original tupi é "pêranáipiâquaba", que significa "passagem do caminho do porto de mar".

Peaçaba - palavra de origem túpica, se compõe de "pe" e "açaba" e significa "o porto", o lugar onde vem ter o caminho; a travessia. Conforme Teodoro Sampaio: "quando os caminhos desciam até o mar ou grandes rios navegáveis, ao extremo desses caminhos, ordinariamente um porto, davam os tupis o nome apeaçaba que quer dizer saída ou travessia do caminho e de que, por corruptela, se fez peaçaba". Outro estudioso, Paulo Prado, nos cita o seguinte: "outra vereda, deixando a peaçaba do Rio Cubatão, saía ao porto de Santa Cruz, subia a serra também chamada de Cubatão, procurava a margem do Tutinga".

Perequê - do tupi "pira", peixe; "kê", aqui, significando "lugar onde há peixes" ou "viveiro de peixes", onde todos estão pulando como em conflito.

Piaçagera - do tupi "pia", porto; "çaguera", velho, antigo. Portanto, "porto antigo" se referindo ao existente no Rio Mogi e utilizado por Martim Afonso de Souza no encontro com João Ramalho, isto em 1532.

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Francisco Martins dos Santos, em sua História de Santos, de 1937, republicada em 1986 junto com a Poliantéia Santista de Fernando Martins Lichti. (Novo Milênio).  


GEOHISTÓRIA 


Relevo no Planalto - O principal sistema orográfico (orografia é a descrição de montanhas) é constituído pela Cordilheira do Mar ou Geral, recebendo no município os nomes de Serra de Cubatão, do Poço, do Meio e do Mogi, numa altitude de 700 a 800 metros acima do nível do mar, nos aparados da serra. Uma das ramificações desta cordilheira é a Serra do Morrão, que atinge 700 metros de altitude no município. Outros pontos elevados na Serra do Mar são os morros da Mãe Maria, com 500 metros de altura e o Marzagão com 100 metros. Num prolongamento da Serra do Morrão, encontra-se o morro do Casqueiro, próximo ao mangue, com aproximadamente 100 metros de altura. Ainda aparecem o Morro do Manuel Silva (a Noroeste da Cidade) e o de Piaçaguera (a Sudoeste da Cidade), ambos com menos de 100 metros de altura.

Relevo na Planície - Destacam-se os manguezais.

“O povoamento da baixada, na Raiz da Serra do Mar, drenada pelos rios Cubatão, Perequê e Piaçaguera, iniciou-se no próprio século do descobrimento, principalmente, depois da expedição de Martim Afonso de Souza, quando este concedeu a exploração de terras a Rui de Pina, mais tarde transmitidas a seu pai por herança e transferida à Companhia de Jesus.

Com a expulsão dos jesuítas em 1759, todos os seus bens foram confiscados pela Coroa Portuguesa, até que em 1767 D. Luiz Antônio de Souza Botelho entregou as terras da então Fazenda Cubatão para a administração do tenente Antônio José Carvalho.

O topônimo - cubatão - pode ter duas origens: do hebraico - k-batam, que significa: que precipício , ou da língua banto (dos negros do grupo dos bantus, da Angola, Congo ou Moçambique), - cubata: morada.

Por aviso régio de junho de 1818, foram concedidos títulos de sesmaria a colonos dos Açores, os chamados - 5 Manoeis: Manoel Antônio, Manoel do Conde, Manoel Espínola Bittencourt, Manoel Rapouso e Manoel Correia, que com espírito empreendedor trouxeram grande progresso.

A antiga estrada - Calçada de Lorena - , inaugurada em 1792, transformou Porto Geral de Cubatão em importante entreposto entre este e São Paulo e, em 1827, foi inaugurado o aterro ligando-o a Santos.

O destino de Cubatão como ponto de passagem e de centro industrial foi realçado com a Estrada da Maioridade em 1846, inaugurada por D. Pedro II e com a construção da Estrada de Ferro São Paulo Railway, em 1867”.  

Formação Administrativa:

Distrito criado com a denominação de Cubatão, por Lei Estadual nº 1871, de 26 de outubro de 1922, no Município de Santos.

Em divisão administrativa referente ao ano de 1933, o Distrito de Cubatão figura no Município de Santos.

Em divisões territoriais datadas de 31-XII-1936 e 31-XII-1937, o Distrito de Cubatão é apenas judiciário e figura no Município de Santos.

No quadro anexo ao Decreto-lei Estadual nº 9073, de 31 de março de 1938, o Distrito de Cubatão permanece no Município de Santos.

No quadro fixado pelo Decreto Estadual nº 9775, de 30-XI-1938, para 1939-43, o Distrito de Cubatão permanece no Município de Santos, assim figurando no quadro fixado pelo Decreto-lei Estadual nº 14334, de 30-XI-1944, para vigorar em 1945-1948.

Elevado à categoria de município com a denominação de Cubatão, por Lei Estadual nº 233, de 24 de dezembro 1948, desmembrado de Santos, constituído do Distrito sede. Sua instalação verificou-se, no dia 09 de abril de1949.

Assim permanecendo no quadro fixado para vigorar no período de 1949-1953 e 1954-1958, o município é constituído do Distrito Sede.

Em divisão territorial datada de 01-VI-1960, o município é constituído do Distrito Sede.

Assim permanecendo em divisão territorial datada de 15-VII-1999. IBGE



RIOS, CÓRREGOS E LARGOS


Devido à proximidade da Serra do Mar, os rios que banham Cubatão são curtos e torrenciais. É difícil distinguir meandros de braços de rios ou de canais marítimos, que se formam dentro dos lagos.

A Bacia do Cubatão tem uma área aproximada de 177 km². Os rios do extremo Leste são Mogi, Perdido e Piaçaguera, e em seu conjunto abrangem uma área de bacia da ordem de 52 km². Os rios são de caráter torrencial, apresentando enchentes de curta duração e pico acentuado. Destacam-se os seguintes rios:

Rio Cubatão (1) - o mais importante da região, cuja bacia situa-se entre a Grande São Paulo e a Baixada Santista, na vertente atlântica da Serra do Mar. Circunda o estuário de Santos e deságua na mesma cidade através de vários canais de tipo déltico dentro do mangue. O Rio Cubatão passa a banhar o município após receber, à margem esquerda, o Rio Pilões e a vazante da foz do rio Passareúva (2) pertencente ao Município de Cubatão. São afluentes da margem esquerda o Rio das Pedras(3) e o Perequê (4); todos os afluentes da margem esquerda descem a Serra do Mar. O Rio Capivari (5) é considerado o principal afluente da margem direita.

Rio Mogi (6)) - nasce a Nordeste de Cubatão, sendo chamado também de Ururai, e se prolonga quase até a parte central do município. Tem como afluente da margem direita o Córrego da Terceira Máquina. Corre na direção Sudoeste, no vale formado de um lado pelas serras do Meio e Mogi de um lado e do outro pela Serra do Morrão. As águas dos rios Cubatão e Mogi, ao atingirem a baixada do litoral, se misturam formando o mangue e correm para os largos São Vicente, Pompeba e Caneu.

Rio Santana (7) - nasce no Morro Marzagão, dois quilômetros a Oeste da cidade de Cubatão, e recebe, à margem direita, o Rio dos Queirozes, que também nasce no mesmo morro. Uma das ilhas formadas pelo mangue é a Ilha de Santana, sendo formada pelos braços do rio do mesmo nome. Os afluentes do Rio Santana são: Rio Branco (8) e Rio dos Moços (9). Em sua margem direita, encontra o Rio Boturuoca (10), procedente da área continental de São Vicente .

Rio dos Queirozes (11) - tem como afluente, à margem direita, o Córrego de Mãe Maria.

Córrego de Mãe Maria (12) - nasce no morro do mesmo nome e banha o município somente pela margem esquerda.

Córrego da Terceira Máquina (13) - deságua na margem direita do Rio Mogi.

Rio Vapevu (14) - no mangue, deságua próximo aos largos da Pompeba e São Vicente.

Rio Casqueiro(15) - une os largos da Pompeba e Caneu.

Rio Paranhos(16), desde a Vila Natal até o Rio Santana, vendo-se ainda o Córrego da Mãe Maria (17) e o Rio Queirozes. Nasce junto à Vila Natal e depois de diversos volteios deságua no Rio Santana (18), defronte ao Jardim Nova República, entre os traçados das vias Anchieta e Imigrantes.

Rio Cascalho (19) - De traçado serpenteante e indefinido, nasce no manguezal entre a Rua Bernardino de Pinho Gomes e a estação de tratamento de esgotos da Sabesp situada na margem do Rio Cubatão. Segue por diversos leitos acompanhando a margem direita da Avenida Dr. Tancredo de Almeida Neves até encontrar o rio Cubatão e o braço de mar conhecido como Rio Casqueiro. O final de seu traçado se confunde com o do Rio Maria Ribeiro (20).

O Rio Onça (21) ou Rio da Onça na verdade tem a quase totalidade de seu leito no município de Santos, com nascente entre as instalações da Usiminas e do Terminal Integrador Portuário Luiz Alberto Mesquita (Tiplam), entre a Avenida Leste e a Rodovia Governador Mário Covas. Seu traçado principal acompanha a Avenida Leste, no bairro santista do Quilombo, até receber águas de outros traçados e do Rio Quilombo (22), desaguando no Rio Piaçaguera.

Rio Perdido (23) Perdido (há um rio com esse nome na área continental de Santos, bairro do Iriri, desaguando junto com o Rio Tio Maria (24) no Canal de Bertioga); Rio Perequê (25); Rio Pequeno (26); Rio Mourão (27); Rio Piaçaguera (28).  São ainda importantes, por figurarem nas delimitações municipais: Ribeirão Passareúva (29); Rio Curtume da Tapera (30) e Rio dos Bugres (31).


DIVISAS E LIMITES


Cubatão situa-se na latitude 23º 50' a 23º 55' Sul e na longitude 46º 30' Oeste de Greenwich. Ocupa uma área de 148 quilômetros quadrados e situa-se a 57 km da capital paulista e a 16 km de Santos ou São Vicente. Dista aproximadamente 25 km de São Bernardo do Campo e Santo André (tendo como ponto de referência os limites municipais). Limita-se com os municípios de São Bernardo do Campo, Santo André, Santos e São Vicente.

As divisas fixadas (segundo Aziz Nacib Ab'Saber) são:

Com o Município de São Bernardo: começa com o Rio dos Pilões na foz do ribeirão Passareuva, segue pelo contraforte fronteiro até o aparado da Cordilheira do Mar ou Paranapiacaba, segue pelo aparado da cordilheira que aí tem o nome local de Serra do Cubatão até cruzar com o divisor entre as águas do Rio Perequê, à esquerda, e as do Rio Pequeno, à direita.

Com o Município de Santo André: começa no aparado da cordilheira do Mar, onde tem o nome local de Serra do Cubatão no ponto de cruzamento com o divisor entre as águas do Rio Perequê e as do Rio Pequeno; segue pelo aparado da cordilheira que recebe os nomes locais de Serra do Poço, do Meio e de Mogi até encontrar a reta de rumo Sul-Norte que vem da foz do córrego da Terceira Máquina da Linha Velha, para Santos, da Estrada de Ferro Santos-Jundiaí, segue por esta reta até a Serra do Morrão.

Com o Município de Santos: começa no alto da Serra do Morrão, onde esta é atingida pela reta de rumo Norte-Sul que vem da foz do Córrego da Terceira Máquina, segue pela crista da serra à foz mais oriental do Rio Mogi, depois de deixar, à direita, a água do Curtume da Tapera, desce pelo braço do mar que passa a Leste do Morro Casqueiro até o Largo do Caneu, pelo eixo do Largo continua até atingir o braço chamado Rio casqueiro, pelo qual desce até o Largo da Pompeba e por esta ainda até a foz do Rio dos Bugres.

Com o Município de São Vicente: começa na foz do Rio dos Bugres, no Largo da Pompeba, continua pelo leito deste, passando ao Norte da ilha do mesmo nome, até a foz do Rio Santana, sobe por este até a foz do Córrego da Mãe Maria, sobe por este até sua cabeceira mais setentrional, segue em reta até a foz do Ribeirão dos Pilões, no Rio Cubatão, sobe por aquele até a foz do Ribeirão Passareuva, onde tiveram início estes limites.


Antigo leito do Rios das Pedras. Novo Milênio. 

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FONTE: O que você precisa saber sobre Cubatão, de Francisco Rodrigues Torres, João Carlos Braga Júnior e Welington Ribeiro Borges, editado em 2002 pela Design & Print, de Cubatão, com o apoio do Arquivo Histórico Municipal de Cubatão. As referências complementares são do 2º Boletim Informativo sobre o Município de Cubatão, editado em setembro de 1973; do 4º Boletim Informativo - 1976 - Cubatão e do 5º Boletim Informativo - Cubatão - 1981, editados pela Prefeitura deste município nos anos citados. (citados e publicado em Novo Milênio)



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A MINERAÇÃO E O DECLÍNIO 

DE S.VICENTE, S. PAULO E CUBATÃO



              

     ESTAGNAÇÃO DO POVOADO-REFLEXOS NA CAPITANIA


INEZ GARBUIO PERALTA


Tendo a capitania de São Vicente, desde o início, atraído o interesse dos colonizadores do Brasil - tanto que Martim Afonso de Souza e sua gente estabeleceram-se na "costa do ouro e da prata", isto é, no Sul do Brasil -, não há dúvida que a região alentou grandes esperanças em seu donatário. O grande objetivo de Martim Afonso era transformar São Vicente, porto de escravos, em porto de ouro (1).

Buscando a metrópole portuguesa uma balança favorável dentro dos cânones do mercantilismo, interessou-se desde logo pela descoberta de metais preciosos. Assim sendo, logo após sua chegada, Martim Afonso enviou ao interior duas expedições à procura de ouro, embora nenhuma tenha atingido seu objetivo.

Sem o encontro de metais nobres, a colonização de Santos e São Vicente processou-se lentamente e pobremente.

Várias foram as causas aventadas para explicar a pobreza da capitania, como por exemplo a falta de produtos para os navios retornarem à Europa (2).

Diante dessa circunstância, era lógico que o desânimo do donatário de São Vicente logo se manifestasse, embora tivesse enviado alguns recursos, colonos, gado e ferramentas para a capitania. Assim, tão logo apresentou-se-lhe a oportunidade de doar sesmarias, de imediato quis outorgar toda sua terra ao seu parente, o Conde de Castanheira (3).

Embora a capitania de São Vicente fosse também uma ponta-de-lança em direção às terras espanholas, além do Meridiano das Tordesilhas, viu-se abandonada até a descoberta das minas de Cuiabá e Goiás, cujo ouro era exportado ao exterior pelo porto de Santos (4). Por conseqüência, também Cubatão ficou estagnado, até essa ocasião.

Despovoamento de São Paulo - Ciclo do ouro - Um dos fatores e talvez o mais importante do despovoamento de São Paulo, já sobejamente apontado, foi a descoberta do ouro.

As bandeiras que partiam para Minas Gerais em busca do ouro fomentaram, pois, um ciclo despovoador e não povoador de São Paulo, como ensina Capistrano (5). Esse despovoamento, que havia se iniciado com o apresamento de indígenas, intensificou-se com o início da mineração.

As investidas em busca do ouro, ou de melhores perspectivas de riqueza, aumentavam a decadência da capitania.

Embora a migração em direção às Minas proviesse de várias regiões, inclusive da metrópole, São Paulo parece ter sido a região mais atingida se considerarmos o seu número relativamente baixo de habitantes: cerca de 70% da população brasileira concentrava-se no Nordeste, região açucareira.

Roberto Simonsen, em sua conhecida obra, História Econômica do Brasil, registra em 1690 uma população brasileira livre de 100.000 habitantes. A capitania de São Paulo contava nessa época com 15.000 habitantes; a maioria de suas vilas orçavam entre 30 e 500 almas, enquanto Santos e S. Vicente juntas chegavam a 1.500. Piratininga possuía então cerca de 3.000 habitantes (6).

Como se vê claramente pelos números apresentados, o empreendimento aurífero era grande demais para tão poucos homens. Ao saírem para as minas, esses homens deixavam seu povoado abandonado.

Mafalda Zemella, em sua tese sobre o abastecimento das Minas Gerais, descreve de forma bastante marcante a situação de Piratininga, afirmando: "O vilarejo de Piratininga despojou-se da nata de seu potencial humano. Os elementos mais vigorosos e ativos emigraram. Transformou-se numa cidade fantasma, de janelas e portas fechadas, ruas desertas" (7).

A fuga de braços para as Minas Gerais contribuiu para a estagnação de São Paulo. Ela se manifestou em todos os setores da vida, até mesmo as igrejas da Capitania eram simples e pobres, comparadas com as da Bahia - região a respeito da qual se dizia que não havia dinheiro miúdo.

A pobreza da agricultura e a falta de artigos exportáveis provocaram a fuga de moedas para outras regiões. Os inventários feitos até meados do século XVII dão bem a idéia da pobreza paulista, comparada com a riqueza das regiões açucareiras do Nordeste (8).

Essa miséria vinha desde o século anterior. Alcântara Machado chegou a afirmar que "dos 400 inventários seiscentistas há apenas vinte e um que denotam alguma abastança" (9).

As atas da Câmara freqüentemente pedem isenção de impostos e ajuda para diminuir a pobreza da capitania. Existia na Capitania apenas uma policultura de subsistência e pequenos rebanhos (10).

Cassiano Ricardo afirmou que aos paulistas "faltavam-lhes bens de fortuna para aquisição de maior conforto, num sentido de civilização, mesmo considerada apenas em seu aspecto físico" (11).

Contudo, a alimentação era sadia, possibilitando aos bandeirantes bons músculos e bons ossos para as longas caminhadas (12).

Os primeiros capitães-generais da Capitania de São Paulo, após sua restauração, confirmam sua penúria e tentaram desenvolvê-la através do incentivo à agricultura.

Isolamento de São Paulo - Escoamento do ouro pelo Vale do Paraíba - Seria de se esperar no entanto que, após o primeiro impacto negativo, da descoberta do ouro, o fato redundasse em progresso para São Paulo. Ocorreu o inverso. Descoberto o ouro em Minas Gerais e em Goiás, o mesmo era transportado para o Rio de Janeiro pelo vale do Paraíba e porto de Parati. Os caminhos de São Paulo, difíceis e perigosos - principalmente o caminho da serra e a passagem Cubatão-Santos - foram substituídos ou abandonados devido à valorização de outros caminhos.

Começaram a se desenvolver Taubaté e os portos mais próximos da zona de mineração, sendo ainda abertos caminhos mais rápidos que levavam direto - sem passar pela Capitania de São Paulo - o ouro das Minas, para o Rio de Janeiro.

Até mesmo os governadores paulistas passaram a fixar residência próxima à zona de mineração, na atual cidade de Mariana.

A Capitania de São Paulo tinha sido não só praticamente abandonada como também isolada do foco do desenvolvimento que eram as Minas Gerais, devido à utilização do Vale do Paraíba como escoadouro do ouro para o Rio de Janeiro.

Em 1709, chegou mesmo José de Góis Morais a propor a compra da Capitania de S. Paulo e São Vicente por 40.000 cruzados, no que não consentiu D. João V, comprando a mesma por esse preço. São Paulo passou nessa época a ser Capitania independente e Piratininga substituiu S. Vicente como sede, sendo elevada à categoria de cidade (13).

São Paulo teve o mérito da descoberta do ouro e sofreu os prejuízos deste fato, sem, contudo, usufruir seus benefícios.

Só restava o golpe oficial para acabar com a capitania, e esse chegou em 1720, quando a Coroa Portuguesa resolveu, para facilitar a administração, separar as Minas Gerais da Capitania de São Paulo.

O povoado de Cubatão, solidário à sorte da capitania de São Paulo, de cujo desenvolvimento dependia, continuava estagnado. Tomemos aqui ainda a afirmação de Mafalda Zemella, quando se refere à situação de penúria e despovoamento a que chegara Piratininga: "O mesmo aconteceu a Taubaté, Guaratinguetá, Itu, Jacareí, Mogi das Cruzes, Atibaia, Jundiaí, Parnaíba, Santos e demais vilas vicentinas" (14).

O paulista não esmoreceu; pelo contrário, cerceado em seus interesses em uma direção, transferiu-se para outra em busca de novas riquezas.

Progresso momentâneo e rápida decadência - Logo após a separação de Minas do território de sua capitania, os paulistas descobriram jazidas de grande importância em Mato Grosso e Goiás (1725), incorporando-as à Capitania de São Paulo.

Sendo extremamente difícil, longo e perigoso o transporte do ouro das novas regiões mineiras para o Rio de Janeiro via São Paulo, preferiu-se uma saída melhor pela Bacia do Amazonas. Este fato seria novamente pernicioso para a capitania de São Paulo, pois afastaria as regiões auríferas de sua sede (15). Assim, em 1744, Mato Grosso e Goiás passaram a capitanias independentes, desligando-se de S. Paulo (16).

Os paulistas já haviam realizado também a penetração em direção ao Sul do território, na conquista de São Pedro do Rio Grande do Sul - que, desde 1736, fora separada da administração paulista. A capitania perdia assim mais uma de suas regiões arduamente conquistadas.

A cada conquista dos paulistas se sucedia novo cerceamento, logo após a consolidação de tal empreendimento.

Aqueles que palmilharam o território nacional, realizando épica marcha para Oeste, escavando as riquezas do solo que engrandeceram a nação e a Corte portuguesa, expandindo as fronteiras do Brasil, trouxeram para a sua capitania, São Paulo, o abandono e a miséria. Trouxeram? Não. Deixaram (17).

A miséria era comum em todas as vilas, que viviam da venda de mantimentos - que dava apenas para se vestirem e comprarem o sal.

Os moradores da beira-mar, São Sebastião e Ubatuba, viviam da pesca, de fumo, águas-ardentes que vendiam no Rio de Janeiro e ainda da plantação de mandioca que dava para se manterem. Os de Santos estavam em situação um pouco melhor devido à existência do porto onde desembarcavam as fazendas provenientes do Rio de Janeiro, e porque ali se armazenava o sal, como também por conseguirem monopolizar a exportação em algumas épocas.

Os moradores das vilas de São Vicente, Itanhaém, Iguape e Cananéia levavam uma vida também miserável, pois praticavam a pesca, produziam alguma farinha e mandioca e extraíam a madeira para venderem aos navegantes (18).

E o povoado de Cubatão, era melhor sua sorte? Certamente não: deveria viver tão pobremente como os demais, vendendo fumo, aguardente, como a maioria das vilas, além de explorar a navegação por barcas.

Cubatão permanecia, pois, um mísero e inexpressivo povoado, seguindo a sorte da capitania. O destino de Cubatão, estando ligado ao da capitania, se encontrava, guardadas as proporções, na mesma situação que São Paulo.

A decadência e desvalorização da capitania de São Paulo se acentuava cada vez mais, chegando mesmo a se tornar, em 1748, simplesmente uma comarca do Rio de Janeiro, passando a ser governada pelo comandante da praça de Santos (19).

Essa situação durou mais de quinze anos, quando recobrou sua independência e passou a ser governada por D. Luiz Antonio de Souza Botelho Mourão, o Morgado de Mateus, que permaneceu no governo da capitania de 1765 a 1775 (20).

Este governador teve uma atuação decisiva na transformação e progresso de São Paulo pelo incentivo que deu à agricultura, intensificando a cultura da cana-de-açúcar. Imbuído dos ideais pombalinos (21), ele conseguiu dar à capitania uma posição de destaque no cenário colonial.

O comércio para o porto de Santos passou a ser feito através de Cubatão, que atingiu, na época de euforia açucareira da capitania - primeira metade do séc. XIX - o auge de seu desenvolvimento.

 

Detalhe do mapa da Capitania de S. Paulo. Acervo do Museu Paulista da USP

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Notas bibliográficas:

(1) Roberto Simonsen - História Econômica do Brasil, 6ª ed., São Paulo, Ed. Nacional, 1969, p.205 e nota 3.

(2) Ibid, p. 206.

(3) Cassiano Ricardo - Marcha para Oeste, 4ª ed., Rio de Janeiro, Ed. USP e José Olympio, 1970, p. 12.

(4) Roberto Simonsen - op. cit., p. 206.

(5) J. Capistrano de Abreu - Capítulos de História Colonial & Os Caminhos Antigos do Povoamento do Brasil, Brasília, Ed. da U. Brasília, 1963, p. 264. "Concorreram antes para despovoar que para povoar nossa terra...".

(6) Roberto Simonsen - p. 228.

(7) Mafalda P. Zemella - O abastecimento da Capitania de Minas Gerais no século XVIII, São Paulo, 1951 (Boletim da Cadeira de História da Civilização Brasileira, USP), p. 37.

(8) Roberto Simonsen, op. cit. p. 217.

(9) Alcântara Machado - Vida e Morte de Bandeirante, p. 19, apud. Cassiano Ricardo - Marcha para Oeste, 4ª ed., São Paulo, Ed. USP e J. Olympio, 1970, p. 152.

(10) Myrian Ellis - As Bandeiras na Expansão Geográfica do Brasil, p. 281 e sgs. in História da Civilização Brasileira, vol. I - A Época Colonial, sob a direção de Sérgio B. de Holanda, São Paulo, 1963.

(11) Cassiano Ricardo - Marcha para Oeste, p. 153. A situação depauperada da capitania de São Paulo é tratada ao longo do cap. V, com farta documentação.

(12) Idem, ibid. p.40.

(13) Simonsen - op. cit., p. 232.

(14) Mafalda Zemella - op. cit. p. 37.

(15) A ligação entre São Paulo, isto é, Porto Feliz e Cuiabá, era longa, demorada e penosa: seguia-se pelos rios Tietê, Paraná, Pardo, Coxim, Taquari, Paraguai e São Lourenço. Esse percurso demorava nada menos de cinco meses, tempo empregado na navegação de Lisboa à Índia. Nem todos chegavam: a maioria ficava pelo caminho, com suas barcas e suas despesas, quer vitimados pela febre, quer por naufrágios. Sendo assim difícil, perigosa e demorada a viagem, os bandeirantes tentaram um outro roteiro, em direção ao Norte via Bacia Amazônica, seguindo os rios Araguaia, Tapajós até o Madeira, para chegar ao porto de Belém. Para maiores esclarecimentos, veja-se Sérgio B. de Holanda - As Monções, in Hist. Geral da Civ. Bras., I - A Época Colonial - S. Paulo, 1963, e R. Simonsen - História Econômica do Brasil, p. 230.

(16) Capistrano de Abreu afirmou que essas regiões tiveram que se desligar de São Paulo para não sucumbirem. Op. cit. p. 265.

(17) Em troca de tão arriscada empresa, verdadeiramente heróica, os bandeirantes elevaram bem alto o nome de sua terra, caracterizando seu povo como um povo arrojado, empreendedor e progressista - o que o caracteriza até hoje. A tenaz sagacidade dos bandeirantes construiu um Brasil muito mais amplo do que as fronteiras de Tordesilhas, que foram por eles definitivamente estraçalhadas. Não construíram São Paulo, mas construíram o Brasil.

(18) Simonsen - Hist. Econ. Brasil, p. 232.

(19) "...o ouro do sertão arruinava São Paulo e reduzia-o à miséria, tanto que tiveram seus filhos de suportar a própria perda da autonomia, ficando inteiramente subordinados ao governo do Rio de Janeiro por um período de mais de quinze anos". Sérgio B. de Holanda - As Monções, in Hist. da Civilização Brasileira, I, A Época Colonial, Dif. Europ. do Livro, São Paulo, 1963, p. 310.

(20) Primeiro capitão-general da Capitania de São Paulo após sua restauração, desligando-se do Rio de Janeiro. Esteve à testa do governo de junho de 1765 a junho de 1775. Portugal temia perder a Capitania de São Paulo para a Espanha, por isso anulou a provisão de 1748 que unia a capitania de São Paulo ao Rio de Janeiro. Cf. Américo Brasiliense Antunes de Moura - Governo do Morgado de Mateus no Vice-Reinado do Conde da Cunha, separata da Revista do Arquivo Municipal nº III, São Paulo, 1938.

(21) Política econômica objetiva e realista do Marquês de Pombal - "déspota esclarecido". Este, desde o início do seu governo, voltou suas idéias e atividades para os domínios ultramarinos de Portugal, visando seu rápido progresso para possibilitar maior rendimento à Coroa. 

Fonte: O Caminho do Mar - Subsídios para a História de Cubatão, editado pela Prefeitura Municipal de Cubatão em 1973 (1ª edição), 


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O PRIMEIRO RECENSEAMENTO


O mais antigo recenseamento que se conhece da população paulista é de 1765 e se intitula Listas Gerais da Ordenança das Vilas desta Capitania. Dentro da parte da Vila de Santos, há o recenseamento de Cubatão, então um bairro desta vila, que reproduzimos na íntegra - Novo Milênio.

SOUZA, Alberto. Os Andradas. S. Paulo, Tipografia Piratininga, 1922, 3º volume, páginas 216/220.


Detalhe da pintura de Calixto: Cubatão no século XIX. A pequena vila cortada pelo rio que deu nome à cidade e ligada por uma porte coberta feita em madeira, ainda tinha aspectos rurais do passado colonial e revelava os primeiro sinais de urbanização. A paisagem bucólica seria progressivamente substituída e afetada no século seguinte pela rápida industrialização.


"BAIRRO DO CUBATÃO GERAL ATÉ O RIO GRANDE


1 - Antonio Xavier de Lima, alferes de ordenança branco casado 48 anos - Vive de lavoura e aluguel de bestas. Maria Joaquina, sua mulher branca casada 40 anos. FILHOS: Antonio branco solteiro 17 anos. Francisca branca solteira 1 ano. Tem 5 escravos.

2 - Bento Francisco branco casado 60 anos - Vive de aluguel de bestas. Ana Francisca, sua mulher branca casada 40 anos. FILHOS: Joaquim branco solteiro 12 anos. Salvador branco solteiro 10 anos. Rosa branca solteira 8 anos

3 -  Maria Francisca branca viúva 36 anos - Vive de sua venda. FILHOS:José branco solteiro 9 anos. Joaquim branco solteiro 2 anos.

4 - Raphael Joaquim branco casado 50 anos - Carpinteiro. Mathilde, sua mulher branca casada 40 anos.

FILHOS:Alexandrina branca solteira 20 anos. Mafalda branca solteira 11 anos. Tem 2 escravos

5 - Rosa Maria parda solteira 80 anos - Vive de sua venda.Tem 2 escravos.

6 - Francisco Manuel da Silva pardo casado 30 anos - Vive de seu negócio. Maria das Dores, sua mulher parda casada 20 anos.

7 - Antonio Francisco Pereira branco solteiro 20 anos. Agregada. Antonia branca solteira 10 anos.

8 - Antonio Espinola branco casado 30 anos - Vive de sua venda. Catarina, sua mulher branca casada 35 anos. FILHOS: Antonio branco solteiro 12 anos. Joaquim branco solteiro 8 anos.

9 - Gregório da Silva pardo casado 60 anos - Vive de sua venda. Maria, sua mulher parda casada 40 anos. FILHOS: Fernanda parda solteira 16 anos. Maria parda solteira 20 anos. Miguel pardo solteiro 10 anos. Delphim pardo solteiro 8 anos. José pardo solteiro 5 anos. Thereza parda solteira 4 anos.

10 - Manuel de Mello branco casado 50 anos - Vive de negócio de sua venda. Maria, sua mulher branca casada 40 anos. FILHOS: Manuel branco solteiro 18 anos. Domingos branco solteiro 12 anos. Marianna branca solteira 16 anos.Maria branca solteira 14 anos.

11 - Manuel Antonio branco casado 30 anos - Vive de negócio de sua venda. Domingas, sua mulher branca casada 28 anos. FILHOS: Manuel branco solteiro 12 anos. Antonio branco solteiro 6 anos. Maria branca solteira 4 anos. Rosa branca solteira 5 anos.

12 - Cypriano Pereira pardo casado 70 anos - Vive de sua venda. Felizarda, sua mulher parda casada 30 anos. FILHA: Florinda parda solteira 12 anos. 13 - João Ferreira negro casado 50 anos - Vive de lavoura. Maria, sua mulher negra casada 40 anos. FILHOS: Juliana negra solteira 16 anos. Florinda negra solteira 10 anos. 14 - Miguel Francisco do Couto branco casado 24 anos - Vive de seu negócio. Maria, sua mulher branca casada 20 anos.

15 - Joaquim Gomes alferes reformado branco casado 30 anos - Vive de seu negócio. Anna, sua mulher branca casada 20 anos.

16 - Fernando Gomes, alferes reformado branco casado 40 anos - Caixeiro do Contrato. Gertrudes, sua mulher branca casada 28 anos. FILHOS: Antonio branco solteiro 4 anos. Fernando branco solteiro 2 anos. Tem 1 escravo.

17 - José de Siqueira branco casado 50 anos - Carpinteiro. Rosa, sua mulher branca casada 35 anos.

18 - Joaquim Rodrigues d'Oliveira, capitão reformado, e Com. do Cubatão, branco casado 50 anos - Vive de seu soldo. D. Gertrudes, sua mulher branca casada 40 anos. FILHOS: Maria branca solteira 20 anos. Joaquim branco solteiro 12 anos, João branco solteiro 10 anos. Polyena branca solteira 8 anos. Antonio branco solteiro 3 anos. Tem 1 escrava.

19 - Maria Joaquina parda viúva 40 anos - Vive de sua venda.

20 - Manuel Espinola branco casado 60 anos - Vive de aluguel de pasto. Ana sua mulher branca casada 50 anos. FILHOS: Francisco branco solteiro 20 anos. José branco solteiro 16 anos. Tem 2 escravos.

21 - José Machado soldado pago branco casado 60 anos - Vive de seu soldo. Maria, sua mulher branca casada 50 anos FILHA: Anna branca solteira 20 anos.

22 - Joaquim pardo casado 60 anos - Vive de lavoura. Ignácia sua mulher parda casada 20 anos.

23 - Lusitano Gomes negro casado 60 anos - Vive de lavoura. Maria, sua mulher negra casada 50 anos."


NOTA EXPLICATIVA

Este recenseamento do Bairro do Cubatão Geral até o Rio Grande é valiosa fonte de informações sobre o Cubatão do século XVIII.

Contava o Cubatão com 23 casas, sendo que em cada uma morava uma família. O total de pessoas era de 94, dessas 94 apenas 13 eram escravos. A média dos moradores por casa era de 4,08. Apenas 6 famílias possuíam escravos, um ou dois, no máximo 5.

Do total, 81 eram livres e 13 escravos, ou seja 86% livres e 14% escravos.

Quanto à cor: havia 58 brancos ou seja 61,7%; 17 pardos ou 18,0% e 6 pretos ou seja 6,3%. A cor desses foi declarada, por serem livres. Havia, ainda, 13 escravos cuja cor não foi registrada. Se eram pretos, o total dessa cor sobe a 19 pessoas, ou seja 20,1% (cálculos aproximados). Não há menção de índios.

A maioria esmagadora da população compunha-se de famílias, casais com vários filhos, o que dá idéia de estabilidade social.

Quanto às atividades da população livre, fica evidente o seguinte: 9 viviam de sua venda, sendo que dessas pessoas, 3 eram mulheres e os 6 restantes, homens.

Uma pessoa declarou viver de seu negócio, sem especificar nada.

Quatro se dedicavam às atividades agrícolas. A produção agrícola era, provavelmente, destinada ao abastecimento dos viajantes do Caminho do Mar, sem esquecer a lavoura de subsistência.

Dois carpinteiros atendiam às necessidades do povoado e podemos supor que construíssem ou consertassem barcos para a travessia de 4 léguas entre Cubatão e Santos e vice-versa.

De alugar pastos vivia uma pessoa; do aluguel de bestas, duas.

Relativas ao Contrato ou cobrança da Passagem fluvial havia o Comandante do Cubatão, um caixeiro, um soldado e dois alferes reformados.

Havia um alferes da ordenança, mas as ordenanças formavam tropas de reserva, nada recebiam, o que obrigava o alferes de Cubatão a viver da lavoura, sendo também um dos que viviam do aluguel de bestas.

A maior parte destas atividades está relacionada à função de passagem e de mudança do meio de comunicação, de terrestre para fluvial ou vice-versa.

Por estas rápidas considerações, podemos concluir que a população de Cubatão, na 2ª metade do século XVIII, estava ligada ainda à condição de porto de pé-de-serra.

A vida era, de modo geral, modesta, familiar e socialmente estável.

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Texto incluído na obra Antologia Cubatense, selecionada e organizada pela professora Wilma Therezinha Fernandes de Andrade e publicada em 1975 pela Prefeitura Municipal de Cubatão, nas páginas 172 a 176:

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CUBATÃO: CAMINHOS DO PLANALTO E DO MAR




Tropeiros cargueiros na Calçada de Lorena, que ligava o litoral ao planalto paulista. 1826, pintura de Oscar Pereira da Silva a partir do desenho de Hércules Florence.

Cais do porto santista em fase de aterramento, e a ferrovia S. P. Railway,em quadro de Benedito Calixto, final do século XIX


DO  POUSO DE TROPAS À ERA DA PETROQUÍMICA

Planície de Cubatão, vista do Arco do Lorena, no Caminho do Mar. Foto de capa do livro Cubatão Ontem e Hoje - Um Marco no Desenvolvimento, 1970, Hallison Publicidade Ltda., São Paulo/SP


(...)
Tudo parece indicar que o principal caminho a transpor a Serra do Mar foi a "trilha dos Tupiniquins", que ligava os Campos de Piratininga ao litoral. Sua utilização pelos europeus verificou-se desde o alvorecer do quinhentismo. Por ele, João Ramalho subiu ao planalto e fez o tráfico e escravos indígenas para Tumiaru na futura vila de São Vicente. Os indígenas desceram para o litoral por este caminho, quando aqui chegou Martim Afonso de Souza. E por este mesmo caminho Martim Afonso visitou os Campos de Piratininga.

E assim, pouco a pouco, iam aparecendo novos pontos, iam-se fazendo novos contatos; o primeiro donatário Martim Afonso de Souza, querendo atingir o planalto, chegou ao largo do Caneú, e daí a Cubatão - um dos portos -, dando-lhe o nome de Santa Cruz, cujo apelido antes era de Porto das Armadías.

As informações de Frei Gaspar a respeito da viagem de Martim Afonso de Souza deixam margem a algumas dúvidas. Através de seus relatos, parece que o cubatão, onde teria chegado o donatário, estaria no Rio Perequê. Por outro lado, tudo indica que o porto de pé-de-serra, na trilha dos Tupiniquins, estaria junto ao Rio Mogi e era chamado Piaçagüera.

Segundo Batista Pereira, Martim Afonso viajara até Perequê por água, atingindo o Mogi, em Piaçagüera, por terra.


Elemento de fixação - Os fatos relativos ao percurso de Martim Afonso de Souza até a escarpa da Serra do Mar contribuem para fixar, desde já, alguns dos mais significativos aspectos das ligações com o planalto.

Em primeiro lugar, na Baixada, grande parte do percurso era feito por água. O caminho não deveria ser apenas um, dado que os pontos de partida eram pelo menos dois. Do largo de Caneú, verdadeiro centro de convergência de cursos d'água, e que era realmente um elemento bastante sugestivo ao longo dos caminhos que eram seguidos na época, navegava-se pelo Rio Cubatão acima, por intermédio do qual chegava-se a um porto fluvial na linha de contato entre a baixada e a escarpa da Serra. Seria o porto de Piaçagüera de Cima, cuja posição exata não é bem certa, devido às grandes modificações produzidas pelo crescimento dos mangues e pela terra trazida da serra, pela ação das enxurradas.

O porto de Piaçagüera - nome composto do substantivo piaçaba, que significa porto, e do adjetivo quera, cousa velha - permite considerar a importância dos denominados cubatões. O nome cubatão não aparece somente na Baixada Santista, mas também em várias partes do País. Relaciona-se com baixadas litorâneas, como as que se verifica no Paraná e em Santa Catarina. Seu significado está intimamente relacionado com o problema da circulação para o interior em face da presença, vizinha ao litoral, de uma escarpa, responsável pela mudança brusca, inevitável, de tipo de transporte utilizado. Na Baixada, os cursos d'água são todos navegáveis, mas quando se atinge as vizinhanças do pé-de-serra é-se obrigado a iniciar um trajeto por terra. Daí os portos fluviais que se dispõem no alinhamento do referido pé-de-serra: o cubatão de Santos, de Paranaguá, de São Francisco. São todos verdadeiros pé-de-serra.

O mais longo - O percurso da velha trilha dos Tupiniquins parece ter sido o mais longo entre todos os caminhos que se sucederam na tarefa de ligar Santos ao planalto. Por outro lado, foi o primeiro caminho utilizado nos tempos da colonização e o mais importante para a penetração do interior.

Segundo o relatório da viagem de Schmidel, a distância entre João Ramalho (Santo André) e São Vicente seria de 20 milhas. Maack, para quem as milhas de Schmidel devem corresponder às léguas marítimas espanholas, calculou esta distância em 111 km. Esta seria uma distância grande demais. Mas, como antigamente eram necessários desvios extensos para vencer a Serra do Mar, pode-se conservá-la.

Não demorou muito para que fosse providenciada a abertura de novo caminho, que se chamou Caminho do Padre José, que durante séculos constituiu, praticamente, a única forma de subir ao planalto.

Da mesma forma que muitos fatos relativos aos primórdios da colonização, as origens dos demais caminhos que tentavam ligar Santos ao planalto foram difíceis de explicar. Sabe-se que foram muitos e com um só objetivo: ligar o litoral às demais partes da nova terra.

Sua importância - Mesmo com estas dificuldades, o litoral só teve participação positiva no processo de colonização. O europeu que participou deste processo aproveitou as possibilidades oferecidas pelas vias aquáticas. De resto, esta valorização se fez em grande parte como um instrumento das condições físicas regionais. De um lado, a presença de uma riquíssima rede de canais intrincada; de outro, a presença de charcos, brejos e manguezais e, também de vias naturais, permitindo que qualquer parte da baixada pudesse ser atingida por água. E por último, as dificuldades de encontrar caminhos por terra em terrenos menos encharcados, uma vez que a rede de canais obrigava a travessias freqüentes de cursos d'água.

Um dos primeiros percursos a se definir foi entre a barra de Santos e a de São Vicente. Enquanto as maiores embarcações ancoravam junto à foz do Rio de Santo Amaro ou do outro lado da Barra, no porto de São Vicente, cargas e pessoas transitavam por água até São Vicente, através de dois caminhos: ou navegava-se pela bacia de Santos, frente às praias, entrando-se pela barra de São Vicente, em canoas, fazendo um caminho muito perigoso, ou então, ainda, contornava-se toda a ilha de São Vicente, pelo estuário de Santos ou barra Grande, Largo do Caneú, Casqueiro e estuário de São Vicente.

Havia uma terceira possibilidade, a de percorrer parte do trajeto por terra. Nesse caso, verificava-se a travessia da barra Grande até um ponto fronteiro ao Rio de Santo Amaro e daí seguia-se pelas praias de Embaré e Itararé, até atingir São Vicente.

As relações entre as duas barras modificaram-se em função da definição do porto de Santos. Localizando-se este bem no interior do Estuário, justificou o abandono da foz do rio de Santo Amaro e, em conseqüência, a decadência ou abandono dos trajetos anteriormente citados.

Em compensação, verificou-se a valorização de um novo caminho, desta vez inteiramente por terra, entre os dois núcleos. Trata-se do caminho que foi aberto pelos antigos proprietários do Enguaguaçu, Pascoal Fernandes Genovês e Domingos Pires, e que provavelmente aproveitou-se dos lugares enxutos ao pé dos morros que se encontravam na parte central da ilha, e contornou as suas partes setentrionais e ocidentais até chegar a São Vicente.

O referido caminho deve ter sido um dos mais antigos, isto sem relacionar os que aproveitaram as praias.

Outros séculos - O século XVIII representou uma fase de profundas modificações nas estruturas tradicionais do planalto paulista, com influências marcantes nos quadros demográficos, econômicos, sociais e políticos.

O descobrimento de jazidas de ouro contribuiu desde fins do século XVII para fixar as atenções e os esforços dos que vinham para cá. O fato mais significativo foi o de quase isolamento do planalto em relação ao exterior, com importantes decorrências quanto à circulação.

O bandeirismo fora, sem dúvida, um fenômeno que valorizara a posição geográfica de São Paulo, especialmente como instrumento de penetração para o interior.

O caminho de Cubatão - Um documento de 1775 comprova a utilização do caminho do Cubatão por tropas. A situação do porto de Cubatão relaciona-se, no trecho da Serra, com uma modificação verificada no percurso, dado que ao invés do vale Perequê o caminho passou a aproveitar o vale do Rio das Pedras. Este passou a ser escalado pela vertente da margem esquerda do rio. É possível que durante algum tempo os dois percursos tenham sido utilizados indiferentemente, como também é possível que se tenham alterado, com a definição, no século XVIII, de novo trajeto.

Pouco a pouco, a Passagem de Cubatão torna-se, como se vê, uma importante fonte de renda para o governo, tendo chegado, para certos triênios, a 12:900$000 rs. As transformações que se verificaram no continente europeu, no decorrer do século XVIII, especialmente na segunda metade, marcada pelo processo de industrialização, que logo foi chamada de Revolução Industrial, repercutiram fortemente nas estruturas econômicas das demais partes do mundo e, dentro do nosso território, não deixaram de influir, principalmente no planalto paulista.

Comunicação - O novo significado adquirido pelo caminho do mar em conseqüência do desenvolvimento econômico do planalto fez com que, no último quarto do século XVIII e nas primeiras décadas do século XIX, as atenções da administração se voltassem com maior freqüência às nossas terras. Principalmente porque se tratava de adequar ou aparelhar o caminho de modo a satisfazer as novas necessidades de circulação.

Na Baixada, os mais importantes eram, ainda, os caminhos pelos cursos d'água. Se a utilização das vias aquáticas havia sido interessante no passado, satisfazendo às necessidade de circulação, sempre modestas, já não poderia ser considerada satisfatória em face da circulação ter aumentado e mesmo porque o tipo de carga transportada era diferente.

A ligação entre o pé-da-serra e o porto de Cubatão foi resolvida, inclusive porque se tratava de um trecho relativamente pequeno. A solução foi a construção de um aterrado, da raiz da serra até a margem do rio. A importância deste aterro pode ser avaliada pelo fato de que muitos anos depois Aires de Casal (historiador) refere-se ao Cubatão como um "pequeno arraial", na margem setentrional do rio, que lhe dá o nome e o danifica com suas grandes cheias.

Na verdade, o projeto a que se refere Aires de Casal não era o primeiro, pois anteriormente haviam sido feitas outras tentativas no mesmo sentido. A primeira mais séria foi empreendida pelo governador Antônio Manoel de Mello Castro e Mendonça, que esteve à testa da capitania de 1797 a 1802.


Situação atual - O trajeto de Santos a Cubatão fora muito facilitado com os aterrados: encurtara a distância e a viagem tornara-se mais rápida.

O Cubatão (porto de pé-de-serra) continuou - antes e depois da construção do aterrado até Santos - como um dos mais significativos pontos em todo o percurso da estrada [entre] São Paulo e o mar.

Em seguida à construção do aterrado para Santos, modificou-se a sua função, praticamente limitada. Nas proximidades do porto já movimentado de Santos e da decadente São Vicente, lentamente definiu-se o núcleo embrionário de Cubatão. De pequeno arraial, localizado a quatro léguas ao poente de Santos, muito danificado pelas cheias do rio, Cubatão passa a povoado. Mas, seu crescimento não foi grande, como cidade.

A nova era - Cubatão: sua história se perde entre os séculos XV e XVI. Nome que se originou, provavelmente, do vocábulo K'abataom, que - traduzido do hebraico - significa precipício. Mas, tudo indica que o certo mesmo, através dos dicionários do vernáculo, Cubatão quer dizer "pequeno morro, porto de pé-de-serra".

Seu primeiro documento oficial, isto é, sua primeira referência, data do século XVI (10 de fevereiro de 1533). Após um ano do início da colonização da Capitania de São Vicente, feita por Martim Afonso de Souza, havia naquela região três sesmarias. Como eram muito extensas, Martim Afonso concedeu ao cidadão Ruy de Pinto, com a condição de aproveitar as terras. Quando Ruy de Pinto faleceu, as terras foram herdadas por seu pai, Francisco Pinto, que vendeu as terras em 1550.

Como eram muito grandes, uma das partes foi adquirida pelo mestre-de-campo Diogo Pinto do Rêgo, que por sua vez passou sua parte para os jesuítas, por permuta de alguma coisa.

Somente mais tarde, pela Lei de 19 de janeiro de 1759, que extinguiu a Companhia de Jesus, então detentora das terras, tais bens foram confiscados e incorporados à Coroa. Nesta data, então, foi feito o inventário da Fazenda de Cubatão e, através de portaria baixada pelo Morgado de Mateus, dom Luís de Souza Botelho, foi a Fazenda entregue à administração do tenente Antônio José de Carvalho.

Os cinco Manoéis dos Açores - Os títulos de sesmarias foram recebidos por alguns colonos, oriundos da Ilha dos Açores, que se estabeleceram na Fazenda. Condição esta feita através do aviso régio datado de 2 de julho de 1818, expedido pela Secretaria de Estado dos Negócios do Reino.

Esses colonos eram dotados de grandes qualidades e apegados à família e às terras, demonstraram bastante atividade no trabalho. Moravam numa casa que ficava perto do atual Cruzeiro Quinhentista, à esquerda de quem ia para o planalto, pela Estrada Geral (hoje chamada Av. das Indústrias), cujas terras eram medidas assim: "471 braças de frente (1.036 metros) até a raiz da serra".

Tais colonos eram chamados: Manoel Antônio, Manoel do Conde, Manoel Correia, Manoel Raposo e Manoel Espínola Bittencourt. A bravura destes cidadãos era demais realçada na época, e por coincidência bastante singular eram todos Manoéis, apelidados de "Cinco Manoéis".


Cubatão começa a despertar - Cubatão não podia ficar atrás daquele progresso que as regiões litorâneas vinham tendo. São Paulo, Piratininga e "serra cima", mais precisamente a região da Borda do Campo. Cubatão também caminhava. E começou sendo ponto de localização, tanto no período colonial como nos primeiros anos do Brasil-Império.

Fizeram-se presentes os armazéns para recolhimento de mercadorias, enquanto que as casas de pedras e tijolos, cobertas de telhas, foram edificadas ao lado, substituindo as casas de pau-a-pique ou de taipa.

Os viajantes provindos de "Terra Acima", com destino ao porto de Santos, até 1827, chegavam a pé ou cavalo até Cubatão. Como se vê, Cubatão era caminho para toda aquela gente que queria atingir o porto de Santos, rumando em botes ou canoas.

E não tardou muito - 12 de agosto de 1833 - para que a Regência, em nome do Imperador Dom Pedro II, sancionasse a Lei de número 24 que elevou o Porto Geral de Cubatão (abreviado Cubatão) à categoria de Município, desmembrando-se de São Paulo. Porém, esta autonomia foi interrompida pela sansão da Lei Provincial de número 167, de 1º de março de 1841, exarada pelo brigadeiro Rafael Tobias de Aguiar, anexando Cubatão a Santos. Em agosto de 1922, pela Lei nº 1.871, foi criado o Distrito de Paz.

Emancipação - Como a localidade caminhava a passos largos, um jornal cubatense, Voz de Cubatão, em 28 de fevereiro de 1930, endossava a idéia de emancipar a localidade, aventada por alguns residentes que defendiam a medida.

Desta forma, foram reiniciadas as negociações para a conquista de sua emancipação política, tendo sido formada até uma comissão destinada a cuidar do assunto e composta pelos cubatenses Antônio Simões de Almeida, Armando Cunha, Celso Grandis do Amaral, Domingos Rodrigues Ferreira, João Olcese, José Rodrigues Lopes e Lindoro Couto.

Os trabalhos foram levados avante, cada dia que se passava: com o apoio de outros colaboradores da região, estes cidadãos lutavam para dar forma material à idéia de elevar Cubatão à categoria de município. Até que um plebiscito foi realizado no dia 17 de outubro daquele mesmo ano e apontou 1.017 votos pró desmembramento, contra 82 que votaram pela manutenção e 1 voto em branco.

Em decorrência do resultado do plebiscito, a 24 de dezembro de 1948 o governador do Estado promulgou a Lei de número 233 que fora apresentada na Assembléia Legislativa, pelo deputado Dr. Lincoln Feliciano. Esta Lei fixa o quadro territorial e administrativo do Estado, a vigorar no quinqüênio 1949-1953. De acordo com este diploma legal, Cubatão foi elevado à categoria de município no dia 1º de janeiro de 1949, continuando sob a administração do prefeito de Santos até a eleição e posse dos seus dirigentes.

Cubatão teve o seu primeiro prefeito - Armando Cunha - a 9 de abril de 1949, sendo composta nesta data também a Câmara Municipal de Cubatão, com 13 vereadores.
 
Cubatão Ontem e Hoje - Um Marco no Desenvolvimento. Hallison Publicidade Ltda. 1970


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SERRANDO DE CIMA : O MUNICÍPIO DE PORTO GERAL


Resumo da história cubatense 2º Boletim Informativo do Município de Cubatão, da Prefeitura Municipal. Administração:  Zadir Castelo Branco, em 1973:



Ao passar por Cubatão, em 1825, Hercules Florence (que depois seria conhecido como o pai da Fotografia) documentou com desenhos o que viu: casebres pobres e pouso de tropas.
Gravura da obra Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829


1 - A gente do Cubatão da Serra no caminho de Entrada para o planalto - O professor Lucas Junot, no seu ensaio Morpion, descreve a região do paleoarquipélago santista, formado por pântanos e mangues, e refere-se a Cubatão como local intermediário entre o planalto e a Ilha de Guaió. Situado no continente, em terra firme, o Cubatão da Serra é, sem dúvida, uma região geográfica bem peculiar.

Ademais, o atlas Roteiro de todos os sinaes e derrotas que há na Costa do Brasil, existente na Biblioteca do Palácio da Ajuda em Lisboa, assinala junto à Serra de Paranapiacaba o "Caminho de entrada para o sertão".

Nesse sentido é que também Cassiano Ricardo, em Marcha para o Oeste, fala dos grupos de serra acima (e o Cubatão é dos primeiros) como grupos humanos que estavam dentro de sua casa; favorecidos extraordinariamente pela muralha imensa com que a natureza havia separado terra e oceanidade, entrincheirando aquela gente na Serra do Mar.

"Serra acima, serra abaixo" ia e vinha também o famoso caminho, o tal que o bom Frei Gaspar achou o pior do mundo, mas que acabou tomando partido de quem estava de cima.

É que aquele sendeiro a quem Taunay chamava de "o mais ilustre dos velhos caminhos do Brasil" tornara-se mais segregador do que acolhedor, na fase do observador de Paulística. Essa função e papel do caminho de Cubatão já haviam sido considerados numa carta de el-Rei de Castela ao governador interino do Rio da Prata sobre as bandeiras que haviam invadido o Paraguai. Referia-se el-Rei ao "inacessível" da viagem e ao caminho "por onde não podia passar senão uma pessoa" e que era essa a razão de não se sujeitarem mui facilmente os seus moradores a prestar obediência aos governadores, "conociendo las ventajas de su situacion". As vantagens do encastelamento que se iniciava no sopé e ia, pela encosta da serra, até aos descalvados.

Coisa também digna de nota, nesta questão do caminho e da gente do Cubatão da Serra, passou a ser a grita dos padres, mas só dos padres que subiam por ele... Talvez porque em geral os padres, impregnados de uma formação mais universalista, não compreendessem um caminho tão localista e obstinado em lhes trancar o acesso ao altiplano! Parece que o diabo do caminho vivia agarrando padre pela batina. E não era só Frei Gaspar que o increpava com tanto horror. Fernão Cardim também não se continha diante da "terrível picada". Dois jesuítas espanhóis que acompanharam os índios trazidos por Antônio Raposo Tavares passaram a referir-se à subida da serra como "uma cuesta azedísima que por ella no pueden subir cabras montesas sin peligro".

A serra abrupta teve, quer parecer, sem dúvida, influência decisiva sobre o grupo de Piratininga.

Quem subisse a cordilheira de Paranapiacaba, veria logo que ela era uma nova motivação, além de ser um divisor de águas. Beyer contempla em 1813, do alto da serra, a "mais deslumbrante vista que talvez haja no mundo". Vejam só como os de foram contemplam o miramar de Paranapiacaba!

Mas quem alcançasse o Planalto adquiriria logo, em seguida, duas vantagens seriíssimas: pois ficaria entrincheirado no Cubatão da Serra e ficaria, principalmente, olhando de cima. Ou melhor, "serrando de cima..."

Uma outra transformação, e esta mais importante ainda, se verificaria: quem subisse ao Planalto, que deixasse os preconceitos de fidalguia, de cor e de origem em baixo, isto é, na Planície do Cubatão. Sim, porque Cubatão, sendo uma região intermediária, também é Baixada. Depois disso, que subisse. Mas que o fizesse de acordo com quem já estava na posse do altiplano. Em desacordo é que, por certo, não subiria. Em absoluto! Porque as pontas desse caminho possuíam as pontas de um segundo dilema. Era também uma questão de hierarquia geográfica, contra a qual as hierarquias sociais seriam inicialmente frágeis e sem sentido.

Por isso, a passagem pelo Cubatão da Serra só poderia atrair algum degredado indômito ou então gente abnegada e renitente como o jesuíta. Somente gente assim subiu ao altiplano.

A escalada do paredão da Serra de Paranapiacaba, em 1532 ou antes, foi, nesse sentido, como que a passagem pelo cadinho que forjou a têmpera do homem bandeirante, do paulista desbravador.


2 - Os portos de Piaçagüera, Perequê e Cubatão - O Cubatão da Serra, situado na chamada região do "Campo de São Vicente", conservou-se até o primeiro quartel do século XIX como uma localidade vinculada ao piemonte da Serra de Paranapiacaba.

Suas principais denominações foram Porto (ou Peaçá) de Cima, daí Peaça-guera Velha; Porto do Perequê ou Peaçaba de Baixo; e por último, Porto Geral do Cubatão.

Tanto "Peaçá", como "Perequê" e mesmo "Cubatão": todas as denominações significam, etimologicamente, "porto ou baía abrigada". Elas foram de fato as três primeiras localizações do povoado, não passando sempre de outras tantas variações de portos ao longo do rio da Lapa ou Cubatão.

A toponímia local também, como se vê, não se afasta da de toda a região, que é acentuadamente tupi-guarani.

Somente após a construção do aterrado é que boa parte da atual área urbana do município ficou configurada na planície do Cubatão, integrando-se plenamente também na problemática da Baixada.


3 - Do porto fluvial ao terminal marítimo - Afonso Schmidt, por um equívoco que não foi seu, mas de Frei Gaspar, e versões pouco corretas que circularam até o começo deste século (N.E.: século XX), chegou a confundi-lo com o Porto Seguro, fazendo desembarcar aqui João Ramalho não em 1517 mas em 1490, antes portanto de Cabral e mesmo de Colombo, que chegaram ao Brasil e à América em 1500 e 1492, respectivamente. Mas tudo por causa da errônea leitura do testamento do antigo povoado destas plagas.

No entanto, o secular arraial no sopé da Serra e à margem do maior rio da Baixada foi sempre um porto fluvial colocado em terra firme do continente sul-americano, mesmo antes de João Ramalho.

Nesse mesmo porto, mais tarde, o próprio Martim Afonso de Sousa esteve em 1532. "Martim Afonso de Sousa desembarcou no porto de Piaçagüera, onde João Ramalho e o chefe índio Tibiriçá lhe indicaram o caminho de Piratininga. O fidalgo e conselheiro da coroa dava assim início à tarefa que lhe fora confiada pelo Rei D. João III, de firmar definitivamente o domínio português em terras do Brasil" (História do Brasil - 2º fascículo - Bloch Editores - 1972).

Em 1533 deparamos Martim Afonso de Sousa enviando ao sertão um grupo de homens de armas, devidamente acompanhado por índios amigos. Estavam sob comando de Pero de Góis e Rui Pinto, incumbidos de pesquisar pelo paradeiro da precedente expedição, demorada além do prazo previsto.

E é nestas cartas de doação das sesmarias de Pero Góis e Rui Pinto que encontramos Martim Afonso batizando o Porto das Barcas ou Almadias como Porto de Santa Cruz, coincidentemente o próprio nome primitivo da Terra. Este porto no continente era a sua menina dos olhos, pois por ele esperava desembarcasse todo o ouro com que sonhara... A respeito deste porto cita J.F. de Almeida Prado palavras da Carta de Dada referentes às canoas que, com destino a Piratininga, transportavam os viajantes "da ilha para o continente, no início da picada serra-acima, compreendida na doação até chegar aos descalvados do planalto".

Fechado o antigo porto de Piaçagüera em 1560 por Mem de Sá, devido aos crescentes riscos da passagem pelo Sendeiro do Ramalho e conseqüente transferência da sede da vila para Piratininga, passou a ter uma especial importância o outro porto no pé da serra, o do Perequê, junto ao caminho do Padre José. E foi este o que serviu o núcleo serrano por maior período de tempo.

A este ancoradouro de barcas sucede o Porto Geral do Cubatão, sempre e ainda na margem esquerda do rio do mesmo nome.

Extensíssima passa a ser então a sua movimentação, e as atividades referentes à cobrança de direitos da antiga e sempre importante Alfândega chamam sobre o povoado as atenções das autoridades da Regência, que logo lhe concederam a autonomia em 1833, desmembrando-a do Município de São Paulo sob a denominação de Município do Porto Geral do Cubatão, mais tarde abreviado para simplesmente Cubatão, isto é, para Porto, apenas.

Não era esse ainda, porém, o momento destinado para a consolidação da sua emancipação.

Cubatão passou mais de um século incorporado à jurisdição santista, sendo nesse hiato de tempo conhecido como o "Cubatão de Santos" (1841-1949).

Alcançada a definitiva autonomia, e iniciada algum tempo depois a sua fase de industrialização, Cubatão, o Porto, encontrou não mais no rio e na alfândega, mas no mar, a sua grande e insistente inspiração.

É fato notório que todo o surto industrial do município teve como fator primordial sua proximidade geográfica com o mar e a previsão da iminente tomada de seu território pelos canais marítimos que mais tarde seriam os terminais da Cosipa e Ultrafértil. E são bastante conhecidas também as transformações sofridas por portos vizinhos e distantes com vistas a uma adequação às exigências cada vez maiores que Cubatão tinha de estar, o mais possível, próximo do mar. Tudo por causa do acesso das matérias primas. Tudo por causa de sua Indústria.

Agora sim, situado na área de maior concentração industrial do País, bem poderia Martim Afonso de Sousa chamá-lo com o nome de Santa Cruz, ao Porto Marítimo que chegou à idade adulta e cuja importância deixou de ser intermediária, isto é, de um porto de pé de serra entre o planalto e a ilha de Guaió, para ter um valor próprio e significativo por si mesmo: O Porto da Indústria Básica da Nação!


4 - Datas de importância histórica do Município - O primeiro documento com referência oficial a Cubatão data de 10 de fevereiro de 1533, quando Martim Afonso de Sousa concedeu a Ruy de Pinho uma das três sesmarias da Capitania de São Vicente. Após seu falecimento, as terras foram herdadas por seu pai Francisco de Pinto, que as vendeu em 1550.

Uma das partes foi adquirida por Diogo Pinto do Rego e este por permuta passou sua parte aos Jesuítas.

Pela lei de 19 de janeiro de 1759, que extinguiu a Companhia de Jesus, tais bens foram confiscados e incorporados à Coroa.

Por aviso régio, datado de 2 de junho de 1818, expedido pela Secretaria de Estado dos Negócios do Reino, os títulos das sesmarias foram recebidos por colonos oriundos da Ilha dos Açores que se estabeleceram na Fazenda. Eram os "Cinco Manoéis dos Açores".

D. Pedro II, a 12 de agosto de 1833, sancionou a Lei nº 24 que elevou o Porto Geral de Cubatão à categoria de Município, desmembrando-o de São Paulo.

Em 1º de março de 1841 esta autonomia foi interrompida pela Lei Provincial nº 167, quando foi anexado a Santos.

O jornal cubatense Voz de Cubatão, a 28 de fevereiro de 1930, propagava pela primeira vez a idéia da sua emancipação política.

Foi realizado no dia 17 de outubro de 1930 um plebiscito, apresentando na apuração o seguinte resultado: 1.017 votos pró desmembramento, contra 82 votos pela manutenção e 1 voto em branco.

Em 1948 foi organizada uma comissão de trabalho para lutar pela elevação de Cubatão à categoria de Município.

Em decorrência do resultado do plebiscito, a lei nº 233, apresentada na Assembléia Legislativa pelo deputado Lincoln Feliciano, foi sancionada pelo governador do Estado de Sâo Paulo, no dia 24 de dezembro de 1948, fixando o quadro territorial e administrativo do Estado, a vigorar no qüinqüênio 1949-1953.

Cubatão foi elevado à categoria de Município a 1º de janeiro de 1949, ficando sob a administração do prefeito de Santos até o dia 9 de abril do mesmo ano, quando assumiu o poder seu primeiro prefeito, o Sr. Armando Cunha, sendo composta nesta data a Câmara Municipal de Cubatão, com 13 vereadores.

O Município é considerado como Área de Interesse para a Segurança Nacional, pela Lei nº 5.449 de 4 de junho de 1968.

A 29 de dezembro de 1971 foi criada a Comarca de Cubatão pela Resolução nº 1 do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.



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PRIMEIROS CAMINHOS


FRANCISCO MARTINS DOS SANTOS

DIGITALIZAÇÃO:  NOVO MILÊNIO

O primeiro caminho que houve entre a região de Santos e o Planalto (região de São Paulo), antes mesmo de existirem as três vilas (Santos, Santo André e São Paulo), foi, como se sabe, a trilha dos goianases, chamada nos mais antigos documentos Caminho de Paranapiacaba - percorrida, aliás, por Martim Afonso de Souza em sua primeira escalada de 1532, em companhia do patriarca João Ramalho, até os campos de Piratininga.

Ficava esse caminho histórico onde hoje está a chamada Estrada Velha da Inglesa, com pequena diferenciação, sobre o vale de Ururaí, e vinha sair no porto velho de Piaçagüera (Peaçágoara), ou Piassaguera de Cima, próximo de onde construíram a Estação da Estrada de Ferro da mesma localidade. Por sua vez, aquele riozinho, que servia a esse porto, apareceria naqueles documentos com nome significativo de Esteiro do Ramalho, como a dizer que era o seu caminho de água, em continuação ou em articulação com o seu caminho de terra [1].

Posteriormente, em 1553, foi aberto outro caminho, também pelos índios, segundo a tradição, ao que diziam os cronistas, sob a direção do padre José de Anchieta ou com a sua aprovação e adoção subseqüente. Este novo caminho do mar foi, em 1560, mandado preferir ao outro, pelo Governador Geral Mem de Sá, em sua visita daquele ano, por achar-se o primeiro muito infestado do gentio contrário [2], e foi conhecido durante muitos anos pela denominação popular de Caminho do Padre José, que deslocava inteiramente o percurso para o planalto, passando para alguns quilômetros abaixo, de Piaçagüera para Cubatão (porto de Santa Cruz ou das Almadias) [3], a penetração que se fazia alguns quilômetros acima do novo porto fluvial - muito superior a este e muito mais racional, seja dito de passagem.

Verificando até que ponto ia a verdade do que afirmaram os cronistas e autorizava a tradição, sobre o novo caminho ou trajeto, encontramos um documento que parece contrariar e desfazer a quase lenda do padre José transformado em panacéia para todos os casos e para todos os males [4].

É o seguinte [5]:

Vindo o ouvidor-geral de Sam Vicente me dise que na dita Capitania avia hum caminho de cinquo ou seis legoas, ho qual era laa mao e aspero por causa dos lameiros e grandes ladeiras que se nam podia caminhar por ele, o que era grande perda da dita capitania pela necesidade que ha do campo e das fazendas dos moradores que nele tem pera onde he o dito caminho polos muitos mantimentos que ha do campo de que se sustenta a dita capitania, o qual caminho se nam podia fazer sem muito dinheiro E QUE HUM JOAM PEREZ O GAGO DALCUNHA MORADOR DA DITA CAPITANIA sendo acusado pela justiça perante o dito ouvidor-geral por se dizer que matara hum seu escravo do gentio desta terra com açoutes, cometeu o dito ouvidor que queria fazer o dito caminho à sua custa e por logar por onde se bem pudesse caminhar e a contentamento dos moradores, contanto que se nam procedesse contra ele polo dito caso, pareceo bem ao dito ouvidor por razam da obra ser tam necesaria e tam custosa dise-me que o escrevesse a Vosa Alteza o que Vosa Alteza deve de aver por bem polo grande proveito que à terra diso vem e pelo muito que custa...

Por este trecho da carta de D. Duarte da Costa (3 de abril de 1555, não esqueçamos), vê-se que o ouvidor-geral de São Vicente (deve se tratar do Capitão-mor Brás Cubas), que governou, pela segunda vez, de 1552 a 1556, aceitou o oferecimento de João Perez ou Pires ("o Gago"), adiantando-se ao referendum do Rei, tido ele como certo, pela expressão ou importância econômico-financeira do fato.


Tropeiro paulista atravessando um rio, 1827: desenho de Charles Landseer. Imagem: Iconografia Paulistana do Séc. XIX, 1998, Metalivros/BMeF, SP/SP

Assim, como a época coincide exatamente com a atribuída pela tradição e pelos cronistas, à feitura do referido caminho (1553/1554), é de deduzir-se, como verdade mais aproximada, que quem abriu o segundo Caminho do mar, com a aprovação do Capitão-mor e do Governador Geral do Brasil - o celebrado Caminho do Padre José, só muito mais tarde assim chamado - foi esse João Perez ou Pires, sujeito rico como se depreende da informação do Governador, utilizando-se dos seus escravos indígenas, em troca da impunidade pela morte do escravo - motivo bastante para que ele se empenhasse na realização daquela obra, sabido que um degredo na Bertioga (que era o castigo que o esperava) valia àquela altura por uma legítima condenação à morte, infestado e dominado como estava aquele ponto do litoral, pelas hordas miramomis e tamoias, além dos tapanhunas (talvez miramomis), principalmente as tamoias, açuladíssimas contra os portugueses de Santos e S. Vicente.

Quanto à denominação popular Caminho do Padre José (que nunca foi oficial), mais tarde aplicada ao novo Caminho de Cubatão, teria sido promovida pelo seu uso ou adoção pelo Padre José de Anchieta (ainda irmão ou noviço) ou pelos jesuítas, entre os quais ele seria o mais simpático ao povo, o que nos parece mais racional e confirmável pela analogia com tantos outros casos ocorridos pelo tempo adiante.

Não é de esquecer porém a visita a S. Paulo, pelo padre Fernão Cardim, o jesuíta que acompanhava o Visitador Cristóvam de Gouveia, seguindo ambos para Santos pelo Caminho do Mar e fazendo o percurso marítimo e fluvial do porto santista ao Canéu e deste ao rio e Porto Geral de Cubatão.

Afonso de Escragnolle Taunay e Herbert Baldus nos dão a notícia completa dos fatos de 1583. Fernão Cardim escrevera um Tratado da Terra e da Gente do Brasil, com diversos Capítulos, em 1584, e em 1601 esse manuscrito foi tomado pelo pirata Francis Cook, o conhecido companheiro de Thomas Cawendish, e foi parar em Évora (Coleção Purchas, His Pilgrimes, v. IV, London, 1625 - Treatise on Brazil) e também no Museu Britânico, sendo os dois primeiros capítulos já traduzidos em inglês.

A narrativa incluía a viagem de São Vicente ao Colégio de Piratininga. O célebre padre partiu de Santos ao meio-dia de 21 de janeiro de 1583, a fim de tomar parte nas comemorações da fundação da então Vila, caminhando uma légua por água e duas por terra.

Não foi ele, decerto, quem criou a história (hoje tão difundida) da construção do segundo Caminho do Mar, pelo padre José de Anchieta, atribuindo aos seus jesuítas aquela construção e insinuando a hipótese de ter sido um deles aquele famoso irmão, e sim o padre Antonio Franco, em seu livro de 1662, Vida do Padre Manuel da Nóbrega, dizendo: 

Nesta ocasião (1553), com o favor de Mem de Sá fez o padre abrir novo caminho de São Vicente para Piratininga em uma espaçosa montanha, porque, no ordinário, eram os passageiros assaltados e comidos pelos Tamoios, inimigos cruéis do nome português. Por agência de dois Irmãos, nossos engenhosos, se abriu com grande trabalho este caminho, de que todos receberam grande segurança e proveito.
Fernão Cardim diria:

Todo o caminho é cheio de tijucos, o pior que nunca vi, e sempre íamos subindo e descendo serras altíssimas, e passando rios caudais de água frigidíssima...
e a seguir, em relação ao planalto:

Ao terceiro dia navegamos todo o dia por um rio de água doce, deitados em uma canoa de casca de árvore, em a qual além do fato iam até vinte pessoas; íamos voando a remos... etc.
Este depoimento de Fernão Cardim não era muito elogioso para os autores de tal caminho; mas o que demonstra, em definitivo, que não fora o chamado Caminho do Padre José obra dele mesmo e talvez nem dos jesuítas, como diria o padre Antônio Franco, é a declaração do próprio Anchieta, de 1584 e de 1585, sobre o Caminho do Mar (naquela altura, ainda o mesmo de 1553):

Os mais trabalhosos caminhos que creio há em muita parte do mundo...
- depois:

...umas serras tão altas que dificultosamente podem subir nenhuns animais, e os homens sobem com trabalho e às vezes de gatinhas por não despenharem-se e por ser o caminho tão mau e ter ruim serventia, padecem os moradores e os nossos grandes trabalhos [6]
Se o Caminho do Mar, ou Caminho do Padre José, tivesse realmente como autor o declarante ou seus companheiros da Companhia, como se explicariam estas suas palavras tão contrárias à sua localização e ao seu estado permanente? Ou mesmo as palavras de Simão de Vasconcelos, que ao final daquele século afirmava "tremerem-lhe as carnes ao subi-lo"?

A história não pode estar sujeita a sentimentalismo e paixões. Retifiquemo-la pois, sempre que o pudermos fazer, no sentido da verdade.


São Paulo vista do Caminho para Santos, 1827: aquarela de Charles Landseer. Imagem: Iconografia Paulistana do Séc. XIX, 1998, Metalivros/BMeF, SP/SP



A 21 de março de 1598, uma provisão do Capitão-mor Jorge Correia determinava que se reparasse o dito Caminho do Mar "devendo os índios ajudar os branquos"... "sendo escolhido hu home soficiente que nisto fale a este gentio". Os oficiais da Câmara lembraram então esse homem: "Gaspar Colasso, aqui morador, e o elegerão para isso".

Gaspar Colasso, notável povoador seiscentista de Santos, conhecedor da língua dos índios, aceitou a incumbência, prometendo entender-se com os nativos. Naquela época, quando se tratava de iniciativas assim e ordem do Governador como essa, não só se empregavam homens brancos do povo, como os seus respectivos escravos, e ainda os índios livres, para os quais se apelava principalmente das aldeias de Ururaí e Mamoré (ou Maroré) - ambas na Serra de Cubatão -, os quais constituíam mão-de-obra valiosa. Bastava, então, que alguém conhecedor de sua língua, e regularmente diplomata, se entendesse com os chefes das respectivas aldeias, como aconteceu desta vez.

A documentação existente sobre a construção deste Caminho, abertura, construção, reparação, reconstrução, aterros, empedramentos, alargamentos de trechos e outros detalhes, é muito grande, e foge ao nosso objetivo que é dar síntese aos acontecimentos e fatos principais da realização daquilo que seria, em nossos dias, a moderna Via Anchieta, de tão alta significação econômica e social na vida do litoral santista e vicentino e de todo o interior da antiga Província e atual Estado de S. Paulo - que é o que faremos, referindo-nos daqui para diante apenas aos acontecimentos reputados mais importantes e também mais interessantes da estrada quadrissecular, principalmente em suas últimas fases [7].


Tropperros (Tropeiros), 1817, desenho de Thomas Ender. Imagem: Iconografia Paulistana do Séc. XIX, 1998, Metalivros/BMeF, SP/SP

NOTAS DO AUTOR:

[1] Pouco se apercebeu o Brasil, até hoje, apesar do tempo que houve para isso, de que este Caminho foi a negação antecipada ao que afirmaria muitos anos depois o baiano Frei Vicente do Salvador, tornando-se o verdadeiro e histórico caminho da conquista do Hinterland, do sertão, e do próprio Brasil, como início da penetração gradual e do devassamento interior, não apenas da Capitania de São Vicente, mas também de outras, onde, por sua causa e influência, surgiria o primeiro povoamento, e, com ele, a primeira civilização e a primeira economia. Lugar especial, pois, deveria ser concedido no quadro histórico do Serviço do Patrimônio Histórico Nacional, a esse Caminho vicentino e santista, que, somado a outros caminhos posteriores e às vias fluviais da penetração bandeirante - o Tietê e o Paraíba principalmente -, respondeu pela conquista dos sertões brasileiros, e pela quebra definitiva do meridiano de 1494, que os Tratados de Madri e de Santo Ildefonso apenas oficializariam.

[2] Esta circunstância, repetida na serra de Jurubatuba, conforme demonstra o Auto de Posse de 1540 (em favor de Brás Cubas), está ligada, embora muitos autores não o percebessem, ao desaparecimento de Piquerobi, que acompanhou seu genro, o bacharel Mestre Cosme Fernandes Pessoa, preferindo apoiá-lo contra a nova ordem instaurada com a vinda de Martim Afonso.

Antigo domínio de Piquerobi, a serra chamada de Ururaí tornou-se, com o tempo, proibida aos homens da nova ordem (Capitania Oficial) pela oposição crescente do gentio remanescente de Piquerobi ou para ali voltado, após sua partida (com algum acompanhamento local) para o Sul, cujos reflexos atingiriam a região mais afastada, de Cabraiaquara e Jurubatuba, acusados no referido Auto de Posse.

Apenas nas zonas de influência de Tibiriçá e Caiubi ficaram os indígenas favoráveis à nova ordem, e esta foi a razão principal do abandono do antigo Caminho como do imperfeito ou quase nenhum aproveitamento de Jurubatuba pelo bravo e rico Brás Cubas, mesmo depois dos novos recursos trazidos de Portugal naquele ano do Auto de Posse.

[3] Piaçagüera - do chamado tupi: Pe "caminho" - Haçá "passagem" (por ser infinitivo, sem caso) e Guéra o mesmo que Cuéra, verbal de pretérito, significando "o que foi, o que existiu, o antigo" e formando Piaçaguéra ou Peaçaguéra "passagem do caminho antigo", nome que deram ao lugar depois da abertura do caminho ou passagem do Cubatão, muito distante dele.

A este caminho realmente antigo chamavam trilha dos guaianases ou esteiro, passagem do Ramalho (João Ramalho); ao novo (do Cubatão) passaram a chamar "Caminho do Padre José", que foi posterior a um primeiro traçado, chamado Caminho do Piraquê ou Perequê, de pouca duração.

[4] A doença ou mania anchietista, desaprovada pela ciência histórica, chegou a ponto de atribuir ao grande canarino a fundação da própria S. Paulo de Piratininga, com abandono total dos seus postulados (hierarquia, documentação, pronunciamento próprio, lógica, razão etc.). Este caso é apenas mais um. Como é que, chegando naquele mesmo ano (1553), Anchieta, ainda mal ambientado, frágil, sem a ascendência necessária sobre os indígenas, só mais tarde adquirida, e sem designação especial do superior (Nóbrega), poderia incumbir-se da construção de um penosíssimo caminho do mar, através de regiões e serras escabrosas que ele não conhecia? Em matéria de história, precisamos ser, antes de mais nada, racionais.

[5] Arquivo da Torre do Tombo - Corpo Cronológico - I, 95, 36. Carta de D. Duarte da Costa ao Rei D. João III, escrita de São Salvador da Bahia, aos 3 de abril de 1555. Transcrição em Hist. da Colonização Port. do Brasil, v. III, p. 372.

[6] Dr. Manoel Rodrigues Ferreira - Os Municípios de S. Paulo - edição especial - 1956, S. Paulo, p. 25.

[7] Seria longo e obviamente impraticável enumerarmos e detalharmos, aqui, todas as utilizações comuns e especiais, algumas brilhantes e gloriosas, cheias de pormenores, deste Caminho do Mar, em quatro séculos de existência, compondo, aliás, a parte mais bela da sua história (o que foge também à nossa finalidade).

Como exemplo e resumo dessas ocupações ou utilizações do Caminho, citaremos: aquela de Martim Afonso e João Ramalho, em 1532, que teria como conseqüência a fundação da primeira Piratininga (mais tarde Santo André); a de 1549, pelo padre Leonardo Nunes, pioneiro e apóstolo da primeira catequese vicentina (paulista); a de 1553, pelos 13 padres da Companhia de Jesus, chefiados por Manuel da Nóbrega e Manoel de Paiva, em que ia Anchieta, cuja conseqüência foi a fundação de São Paulo; a de 1591, pelas forças descidas contra os homens de Cawendish, ao final da invasão; a de 1615, pelas tropas de Amador Bueno da Ribeira e Lourenço Castanho Taques, em socorro de Santos, assediada então pelos navios holandeses de Joris Van Spilbergen; a de 1685, pelas forças de Timóteo Corrêa de Góis e Pedro Taques de Almeida (Provedor da Fazenda e Capitão-mor da Capitania), em três dias e três noites de travessia, para prisão e punição de José Pinheiro e Diogo Pinto do Rego, o ex-Capitão-mor; a de 1710, pelas tropas de Amador Bueno da Veiga, Mestre de Campo Domingos da Silva Bueno e Capitão Domingos Fernandes Pinto, opondo-se à invasão de Francisco Duclerc; a daquele mesmo ano de 1710 e 1711, pelas tropas de Bartolomeu Fernandes Faria, descido em busca do sal sonegado; a de 1821, pelas tropas do Coronel Daniel Pedro Muller (depois Marechal) e do Coronel Lázaro José Gonçalves, para sufocação da Revolta de Francisco das Chagas; a do mesmo ano, pelas tropas do Marechal Cândido Xavier de Carvalho e Sousa, para evitar as agitações de S.Paulo;
a de setembro de 1822, que foi a cavalgada magnífica do Príncipe Regente D. Pedro, de descida e subida, que culminou com o Grito do Ipiranga e a proclamação da Independência brasileira, ainda em plena Estrada e Caminho do Mar, constituindo o ponto máximo da história do próprio Caminho;
a de 1846, pelo Imperador D. Pedro II e a Imperatriz Da. Tereza Cristina, e sua grande comitiva;
e finalmente, já em fase de abandono, ao final do século XIX, das cavalgadas libertadoras de Quintino de Lacerda e seus homens de choque (de 1881 a 1888), enfrentando a polícia e os capitães-do-mato, da Ponte do Casqueiro ao alto do Zanzalá (S. Bernardo), consagrando o Jabaquara (a Vila da Redenção) e a cidade de Santos, os pontos mais altos da Abolição no Brasil; além de muitas outras utilizações, econômicas, estratégicas, científicas, comerciais, políticas, administrativas, e aquelas que aqui descrevemos, compondo realmente uma grande História, de fazer inveja a outras estradas antigas e semelhantes, do País ou de fora dele, ligada à História de Santos.

TENTATIVA DE MELHORAR O CAMINHO DO MAR


Em 1660, o governador da Capitania, Jorge Fernandes da Fonseca, para disfarçar a crise entre os paulistas e os padres da Companhia de Jesus, anunciou grandes obras no Caminho do Mar. Em 1661 era ele recebido em sessão solene pela Câmara de São Paulo, e na Ata da sessão respectiva ficou registrado que o governador "havia mandado fazer a Estrada do Mar de modo que possa andar carro por ela, cortando serras, indo em pessoa ver este benefício na república, donde se fizeram mais de setenta pontes: obra que ainda aos que dizemos nos parece impossível".

Manoel Rodrigues Ferreira, observando esta passagem, verdadeira "tirada" ou "gabolice" do governador, comentou:

É fácil verificar que não se trata da Serra, pois, como veremos, o trecho da Serra era tão ruim, que posteriormente Bernardo José de Lorena fez novo caminho. Pela quantidade de pontes (setenta), verifica-se que só pode ser o trecho do planalto adaptado para estrada de carros. Aliás, é bem provável que esse tenha sido o primeiro caminho por terra, abandonando-se a viagem antes feita por canoas para S. Paulo, usando-se os rios Pequeno, Grande, Jurubatuba e Pinheiros.
Por outro lado, é bem possível que o governador tenha mandado fazer o caminho terrestre por uma questão de estratégia, depois da experiência do fechamento anterior, pelos paulistas, da via fluvial no Rio Pequeno. Assim, constituem pois um momento importante na história do Caminho do Mar esses melhoramentos executados pelo Governador em 1660/1661, no trecho do planalto.

Em 1681, governando a Capitania o capitão-mor Diogo Pinto do Rego, o famoso paulista Lourenço Castanho Taques com Luís P. Penedo e João Francisco Viegas assinaram um contrato com os vereadores da Câmara e homens bons da Vila de São Paulo, obrigando-se a fazer à sua custa, dentro de um ano, a Estrada de São Paulo a Santos, tendo em remuneração o privilégio de só eles venderem os líquidos mar-fora, dentro do termo da Vila de São Paulo.

Depois dessa tentativa, cumprida apenas em parte pelos contratantes, os diversos governadores da Capitania de S. Paulo empregaram mais ou menos esforços na abertura de uma via de comunicação entre os dois pontos, ligando cada vez melhor o litoral ao planalto, porém nada ou quase nada conseguiram, sempre por falta de recursos adequados, notadamente o capitão-general Dom Luís Antônio de Sousa Botelho Mourão, que chegou a conseguir fosse aplicado, à construção do Caminho, o produto do imposto, que durante muitos anos existiu na Capitania, sob o título de Novo Imposto para a Reedificação de Lisboa.

A 17 de fevereiro de 1770, ele mandava publicar (afixar nos lugares da praxe em toda a Capitania) o seguinte "Bando" ou edital:

Porquanto são notórias as ruínas e precipícios com que se acha desbaratado o caminho de Cubatão, e tão grandes as dificuldades que nele experimentam, que têm afugentado dele os viandantes, transportando o comércio a outras partes com notável detrimento do bem comum dos povos, o que constitui uma das maiores causas da decadência e pobreza desta Capitania.
Além disso, acha-se o dito caminho tão interrompido e embaraçado que por ele se faz impraticável o transportar as munições e petrechos que é preciso mover repetidas vezes para as expedições do real serviço.

Vejo que tudo necessita de uma pronta e eficaz providência, para que cessem totalmente os danos e inconvenientes que se padecem há tantos anos.

Ordeno ao sargento-mor Manoel Caetano Zuñiga a fazer imediatamente consertar o dito caminho, para o que lhe dou o poder a fim de que possa obrigar todas as pessoas de qualquer estado, grau ou condição, que tiverem terras na estrada que vai desta cidade para o Porto de Cubatão, a que logo mandem compor as suas testadas na referida estrada, e a façam por tal modo franca, que não haja o menor embaraço para passarem por ela carros.

E para o referido se tirarão dos armazéns da Vila de Santos as ferramentas necessárias, e para este trabalho se buscarão todos e quaisquer soldados da Praça de Santos, o mestre do "Trem", carpinteiro da Ribeira das Naus com os índios do escaler e todos os negros da fazenda de Cubatão, que pertencem a S. Majestade, o que tudo se unirá a mais gente e escravatura que os donos das testadas trouxerem em sua companhia, e para o referido ordeno a todos os oficiais militares, justiças, oficias de Auxiliares e Ordenanças lhe prestem o auxílio que para o referido lhes for pedido.

O que tudo se cumprirá sem dúvida alguma, sob pena de serem presos todos os que faltaram em executar esta minha determinação.

Outras providências tomou ainda, além das citadas, o grande governador, sem conseguir fazer, contudo, nem metade do que pretendera.

Frei Gaspar da Madre de Deus, o celebrizado historiador santista, subindo e descendo freqüentemente o velho Caminho, a esta altura do século, classificou-o: "talvez o pior que tem o mundo", mas, em seguida, que entusiasmo lhe provocava a evocação do panorama oferecido pela serra escabrosíssima de Paranapiacaba "aos que lhe vencem as quebradas e asperezas, o jardim ameníssimo de ruas alagadas e canteiros de vegetais sempre verdes que o mar e a floresta formam aos olhos deslumbrados do viajor", rematando com estas palavras: "Prospecto mais agradável que este não há", esquecia-se até da ruindade do Caminho.

O capitão-general Martim Lopes Lobo Saldanha foi quem mandou, depois de 1776, construir o aterrado que passava por ser o primeiro que houve, entre os rios Grande e Pequeno (e que pelo visto não era), e, mais tarde, ao governador interino José Raimundo Chichorro da Gama Lobo caberia tentar o primeiro aterrado que ia do sopé da serra até o rio Cubatão.

Aquele capitão-general Martim Lopes Lobo fizera outra interessante comunicação ao Reino, no ano de 1781, que vale ser conhecida:

...me obrigou o meu zelo a fazer o caminho que vai desta cidade a Cubatão de Santos, o qual era quase invadiável e não se transitava sem que fosse aos ombros dos índios e sempre em evidente perigo de vida, por se passar por uns apertados tão fundos, nascidos da primeira picada que os primeiros habitantes tinham feito, e tão estreita, que não cabia mais do que uma pessoa ou animal, ficando muitas vezes abafados debaixo da terra que com as chuvas desabava e outros mortos nas profundas covas que com os pés faziam, o que aqui chamam "Caldeirões", me resolvi a escrever à Câmara desta Cidade, à de Santos, Itu, Atibaia, Sorocaba, Parnaíba, Jundiaí, Mogi-Mirim e Mogi-Guaçu, uma carta, cuja cópia vai inserta, de que resultou darem-me o donativo gratuito de 2:668$905 réis com que dei princípio ao sobredito caminho no mês de maio do corrente ano e tenho quase vencido, porque espero até o fim deste mês completar o melhor de toda a América e ainda de muitos da Europa, tendo-se-lhe formado infinitas pontes das mais duráveis madeiras, confessando todo este povo que, em um século, nem estas, nem o caminho poderão ser arruinados...
As fantasias e gabolices do capitão-general eram patentes. Incluía entre seus trabalhos o que já fora feito por outros e o que ainda não estava feito nem mesmo por ele, pintando o seu "Caminho" com cores de verdadeiro poeta. Até a importância recebida devia ser menor.

Não foi preciso um século. Dez anos depois já o Caminho do Mar sofria justos ataques e recebia novos reparos necessários e urgentes, indo aperfeiçoar-se e transformar-se inteiramente às mãos e aos cuidados de quem ficaria célebre com isso - o capitão-general Bernardo José de Lorena, que realizou sobretudo a construção do percurso da Serra, conhecido depois, e pela posteridade, como o Caminho Calçado do Lorena, em zig-zag, ou simplesmente: Calçada do Lorena em zig-zag, que trouxe a vantagem de firmar a marcha dos animais que escalavam a serra em grande número, e mesmo dos pobres tropeiros e outros viajantes, libertando-os dos imensos sacrifícios das antigas travessias sobre terra batida, libertando-os, em última análise, das maravilhas estradeiras daquele Martim Lopes Lobo Saldanha... facilitando e beneficiando, realmente, os transportes comuns e especiais.

No alto da Serra ele abandonou o caminho antigo e tomando à esquerda vai sair em ponto bem distante do anterior. O velho caminho, antigo trilho dos índios ou então mandado fazer pelo padre Manuel da Nóbrega, e que chamaram Caminho do Padre José e depois Caminho do Mar, que subia pelo Tutinga, acompanhando o Rio das Pedras, ia ser agora abandonado. O novo Caminho Calçado do Lorena ficou, depois de pronto, com cento e oitenta curvas. Calçou-o com pedras, numa largura de três metros e numa extensão de nove quilômetros.

E, para comemorar esse evento, Lorena fez erguer, no local, um padrão ou marco comemorativo, em homenagem à rainha D. Maria I. E por essa nova estrada, em que as tropas transitavam com segurança, em setembro de 1789, Lorena enviava ao Reino, de presente, uma indiazinha apanhada nos sertões de Curitiba, e alguns quadrúpedes e pássaros e várias coisas em três caixotes numerados, entre os quais iam alguns trastes que se achavam no alojamento dos gentios, e três pitos dos antigos paulistas... [1].

O trecho da Serra encontrava-se, pois, em ótimas condições. Entretanto, o mesmo não acontecia com o percurso do Cubatão às Vilas de Santos e São Vicente, que era feito em embarcações, ao longo dos canais. E por isso começa a idéia de se fazer um aterrado que substituísse esse percurso. Alguns anos depois, em 1797, o Capitão-General Antônio Manoel de Melo, tratando do mesmo assunto, informava:

Seguem por água até a Vila de Santos, tendo que passar em más embarcações pelo largo do Canéu, onde são temíveis as trovoadas, porque tendo em muitas partes, muito pouco fundo, altera-se de forma que muitas vezes vira as embarcações, outras as enche de água, o que arruína os açúcares e mais gêneros, e tem morrido bastante gente neste sítio, e mesmo na Enseada do Porto de Santos.
A 14 de março de 1798, principiava na Capitania de S.Paulo uma contribuição popular, organizada pelo capitão-general Antônio Manoel de Melo Castro e Mendonça, para o fim especial de ser feito o aterrado de Cubatão, isto é, o trecho final da estrada, que conduzisse do sopé da serra e da barreira fiscal de Cubatão, até a Vila de Santos, evitando o trajeto por água (rio e mar), com baldeação difícil e encarecedora dos produtos, do lombo dos animais para as canoas e outras embarcações.

As obras tiveram início em setembro daquele mesmo ano de 1798; entretanto, sabe-se que não continuaram por muito tempo, devido às grandes dificuldades existentes e à falta de aparelhamento adequado.

Caberia esse grande feito, vinte e nove anos depois, a Lucas Antônio Monteiro de Barros, primeiro presidente da Província de S. Paulo, que veria inaugurar-se o sonhado trecho, conhecido por Aterrado de Cubatão, no dia 7 de fevereiro de 1827, sob a direção do notável engenheiro militar, mais tarde Marechal, Daniel Pedro Muller.

Daquele ano em diante, e notadamente de 1848 a 1870, os diversos presidentes e a Assembléia Provincial de S. Paulo ocuparam-se constantemente do velho Caminho do Mar, que, de meados do século XIX em diante, seria conhecido por Estrada do Vergueiro, pela circunstância que adiante explicaremos.

O aterrado de Cubatão daria nova expressão econômica à velha estrada e talvez à antiga Província e a Santos; provocaria o deslocamento da lavoura cafeeira da zona da Central para as novas zonas e novos municípios, equivalendo à criação da grande lavoura de rubiácea, e o crescimento rápido da produção e da exportação pelo porto de Santos, onde se construiria o Rancho Grande dos tropeiros, a exemplo daquele de Cubatão.

NOTA DO AUTOR:

[1] Dr. Manoel Rodrigues Ferreira - Os Municípios de S. Paulo - edição especial - 1956, S. Paulo, p. 27.
Interessante para o estudioso de hoje é conhecer a expansão verificada no século XIX e a opinião dos diversos viajantes estrangeiros sobre a velha estrada e seu movimento. É o que proporcionaremos ao leitor nas linhas a seguir, desenvolvendo mais do que pretendíamos o presente capítulo:



Interessante para o estudioso de hoje é conhecer a expansão verificada no século XIX e a opinião dos diversos viajantes estrangeiros sobre a velha estrada e seu movimento. É o que proporcionaremos ao leitor nas linhas a seguir, desenvolvendo mais do que pretendíamos o presente capítulo:




Em cima Pontilhão da Raiz da Serra marca a presença em Cubatão do Caminho do Mar, primeira estrada brasileira pavimentada em concreto. Novo Milênio. Embaixo : foto mais recente publica nas redes sociais.





Conhecem-se depoimentos interessantes desde as primeiras décadas do século XIX. De início temos o do inglês John Mawe e do sueco Gustave Beyer. Mawe, em 1807, fez a viagem de Santos para S. Paulo, e, quando estava ainda em Cubatão, observou que havia ali um terreno amplo, circundado pela alfândega (Barreira Fiscal) e por outros edifícios, para onde eram conduzidas cerca de cem mulas carregadas. Surpreendeu-se com a docilidade dos animais e com a habilidade dos tropeiros negros.

Começando a subir a serra, notou que a estrada era boa e bem pavimentada, mas estreita, e, devido às subidas íngremes, fora talhada em ziguezague, com voltas freqüentes e abruptas. As mulas que viajavam por esses declives escarpados, embora mais resistentes que os cavalos, caíam freqüentemente, vitimadas pela fadiga. Encontrou algumas delas mortas à beira da estrada. Dizia ele:

As tropas de mulas carregadas, que encontrávamos em caminho para Santos, dificultavam-nos a passagem, tornando-a desagradável, muitas vezes perigosa. Em alguns lugares a estrada atravessa vários pés de rocha. Em outros sobe perpendicularmente, conduzindo com freqüência a umas montanhas cônicas, ladeando precipícios, onde o viajante está sujeito a ser lançado numa floresta inacessível, trinta jardas abaixo. Esses lugares perigosos estão protegidos por parapeitos.
As florestas eram tão espessas, exceto na trilha das mulas, que não se enxergava o solo. Os galhos das árvores, em certos trechos, se entrelaçavam formando um caramanchão sobre o caminho e protegendo o viajante da chuva ou dos ardores do sol.


Rancho de Tropeiros, 1827: óleo de Charles Landseer. Imagem: Iconografia Paulistana do Séc. XIX, 1998, Metalivros/BMeF, SP/SP

A despeito das deficiências e dos perigos, reconheceu Mawe o que representava a Estrada do Mar:

Poucas obras públicas, mesmo na Europa, lhe são superiores, e se considerarmos que a região por onde passa é quase desabitada, encarecendo portanto muito mais o trabalho, não encontraremos nenhuma, em país algum, tão perfeita [1].
Do alto da serra em diante, no trecho do planalto, observou que o caminho era marginado por belas árvores e enormes espinheiros, mas que estava em vários pontos danificado em conseqüência das chuvas torrenciais da estação.

No decorrer da viagem, passamos por vários grupos de negros e alguns índios, trabalhando na reparação da estrada ou em abrir novos desvios.
Nessa parte, o caminho comportava - como anotaria o viajante Bayer em 1813 - trânsito de veículos de rodas. O trecho da Serra, esse cronista sueco o descreveu assim:

O caminho em ziguezague de ângulos curtos é protegido por um parapeito ladrilhado e continua até a altitude de setecentos metros, levando a subida cerca de duas horas. Quatro ou cinco caminhos em ziguezagues pareciam, em muitos lugares, correr acima de nossas cabeças e davam ensejos novos de admiração por uma obra para cuja conclusão foi necessário vencer tantos obstáculos naturais e aplicar milhões de cruzados, que foram gastos para derrubar a mata, e finalmente calçado com lajes, contribuindo para dar uma idéia da energia do brasileiro e sua inclinação para grandes empresas.
Na segunda e terceira décadas do século XIX, outros viajantes estrangeiros deixaram seus depoimentos sobre o Caminho do Mar. Luiz D'Alincourt, capitão e engenheiro militar português, elogiado por Sant'Hilaire, visitando a região em 1818, punha em relevo ainda a realização de Lorena, dizendo:

A subida da serra é assaz íngreme e em ziguezague; o terreno é todo coberto de alto e espesso arvoredo; em alguns lugares passa a estrada junto a medonhos precipícios que se abrem entre montes e montes, e horrorizam a vista; tem este caminho a grande vantagem de ser todo calçado, obra utilíssima e que saneou a dificuldade do trânsito, principalmente em tempo chuvoso.
Quatro anos depois, verificava-se um grande acontecimento no Caminho do Mar. Corria o ano de 1822, quando, na madrugada de 5 de setembro, descia uma cavalgada ilustre, em direção a Santos; era o Príncipe D. Pedro, regente do Império, com a sua notável comitiva.

Desceram pela mesma estrada descrita por D'Alincourt, a Calçada do Lorena; chegaram ao porto de Cubatão, onde eram aguardados pelas altas autoridades e pessoas da sociedade e do comércio de Santos. Tomaram as lanchas especiais que aguardavam junto à Barreira Fiscal e às 4 horas da tarde (16 horas) desembarcavam todos junto ao Consulado, no chamado Largo da Alfândega Velha, onde a massa popular aclamou o Príncipe D. Pedro, dando vivas ao Imperador do Brasil.

No dia 7 pela manhã, voltava o Príncipe com os seus acompanhantes, já agora em maior número, e tomando os animais guardados e reservados em Cubatão, encetaram todos a subida do secular Caminho, notando-se que uma grande preocupação e um mal qualquer agitavam o imperial cavaleiro.

E foi nessa subida, quase ao término da estrada do planalto, já saindo do Ipiranga e tendo São Paulo à vista, ao longe, que se deu a cena extraordinária, do encontro da comitiva que seguia de Santos, com o oficial do Correio Paulo Bregaro, que vinha do Rio de Janeiro passando por São Paulo - cena que culminaria com a revolta do Príncipe, sua conhecida exaltação e seu grito redentor: "Independência ou Morte", significando a separação política de Portugal e do Brasil e a criação de uma Pátria livre e soberana, a fundação do Império, realizadas em pleno Caminho do Mar.

Três anos depois, a viagem foi feita e descrita por um francês que se radicaria em São Paulo e ali se notabilizaria por vários inventos e descobertas e que participou da trágica bandeira científica do conde russo Langsdorf, como desenhista (bandeira essa que o levaria ao casamento com a filha do brigadeiro Álvares Machado, e à constituição de uma grande família paulista) - era esse homem o extraordinário Hércules Florence.

Verificou ele que Cubatão era muito freqüentado devido ao seu caráter de entreposto, apesar de não passar de povoação de suas vinte ou trinta casas. Durante os oito dias que permaneceu ali, viu chegar, todos os dias, três a quatro tropas de animais, e partirem outras tantas - cada uma delas compondo-se em geral de quarenta a oitenta bestas de carga, guiadas por um tropeiro e divididas em lotes de oito mulas dirigidas por um camarada. Desciam de São Paulo carregadas de açúcar bruto, de aguardente, de toicinho, e retornavam com sal, com vinhos portugueses, com vidros e ferragens.

Em relação às comodidades do caminho, mostrou-se Florence menos otimista que Mawe e D'Alincourt. Na subida da serra achou que a estrada era péssima, pavimentada com grandes lajes em sua maior parte deslocadas - o que tornara a ascensão bastante cansativa: "Galgamos a metade do caminho a pé, a fim de poupar os nossos animais. A cada passo, as bestas paravam ofegantes de cansaço".

Do alto da serra em diante, em direção a S. Paulo, o caminho lhe pareceu sofrível, se bem que muito estreito em certos trechos. Sabe-se, aliás, que, embora fosse mais curto o trajeto por terra, era possível ainda ir por água, pelos cursos dos rios Pequeno, Grande e Jeribatiba ou Pinheiros, utilizando-se às vezes essa navegação para o transporte de objetos de grande peso, como sinos ou canhões [2].

Aires do Casal, em sua Corografia Brasílica, que tem a data de 1817, escrevia:

Projeta-se comunicar a ilha (de S. Vicente) com a terra firme, por meio de uma calçada através do canal de S. Vicente, a qual só depois de completa será uma obra magnífica, evitadora de muitos naufrágios.
Pizarro, na mesma época, observava:

Projetando-se fazer um caminho por terra, que da Vila de Santos vá a Cubatão, tem sido esse trabalho grandemente dificultoso pela necessidade de um aterro sólido na extensão mais ou menos de duas léguas. Esta obra, que conta já alguns anos e gastará ainda outros até se completar, não cessa, nem esfriará por falta de meios...
...Esses trabalhos - que incluíram o transporte de terra em cestos, na cabeça de escravos negros - estiveram em sua última fase sob a direção de Daniel Pedro Muller, vencendo-se a vasta região de mangues, gamboas e lamarões - segundo relata um cronista da história santista - por uma espécie de cais, dando passagem a pé enxuto e por uma ponte de madeira sobre o rio São Jorge ou Casqueiro, antigo Iriripiranga. As obras se completaram em 1827.

Em 1837, no governo de Gavião Peixoto (conselheiro Gavião Peixoto), terminava um grande rancho para tropeiros em Santos (o Rancho Grande, levantado na Rua São Francisco, junto ao Largo de S. Francisco de Paula). "Ali encontravam enfim o abrigo de que tanto necessitavam os pobres tropeiros", como rezava o Relatório oficial.


Rancho Grande dos Tropeiros. Benedito Calixto


Desta época é o depoimento do viajante norte-americano Daniel P. Kidder, e ele pôde constatar que o caminho, mesmo no trajeto do planalto, era impróprio para qualquer tipo de veículo.

Compreendia a subida da serra - notou o reverendo - cerca de quatro milhas de sólida pavimentação e mais de cento e oitenta voltas em seu percurso em ziguezague.
A nossa subida se tornou divertida pelo encontro de sucessivas tropas de mulas. A princípio se ouvia a áspera voz dos tropeiros tocando os animais e soando tão por cima de nós, que parecia vir das próprias nuvens; depois, distinguia-se o bater dos cascos, e à distância, os animais. Foi preciso procurar lugar resguardado para deixar passar as várias seções da tropa; passado algum tempo, seu tropel ressoava ao longe, com os ecos afastados de sua voz, perdendo-se nos precipícios embaixo.

A despeito de ser uma das maiores e mais caras estradas construídas no Brasil, não podia ser transitada por veículos, devido à sua declividade enorme.

Parou o viajante nos pousos do caminho: Rio Grande, Ponto Alto, São Bernardo.

Encontramos na parte do planalto tropas de cem a trezentas mulas cada uma, e cada animal levando uma cangalha com dois jacás perfeitamente balanceados, contendo sacos de açúcar ou de outra qualquer mercadoria.
Voltemos um pouco, na palavra de Manoel Rodrigues Ferreira, para chegarmos de novo ao americano Kidder.

Já em 1831, o presidente da Província mandara fazer, na serra, explorações a fim de melhorá-las. Mas foi o governo seguinte, o de Rafael Tobias de Aguiar, que se preocupou a fundo com o problema, interessando-se pessoalmente em resolvê-lo. Os governos seguintes tiveram mais a preocupação de melhorar o aterro de Cubatão a Santos.
Em 1837, Gavião Peixoto interessou-se pelo problema de uma estrada de carros de eixo móvel, na Serra, e, por isso, mandando fazer explorações, informava: "Determinei que se queimasse e limpasse a roçada que se fez na antiga trilha da Serra de Cubatão, por onde subiu a artilharia que foi para Iguatemi".

Gavião Peixoto, pois, aviventava o primitivo Caminho do Padre José, a fim de verificar a possibilidade de ser restaurado para o uso de carros de eixo móvel. Por outro lado, informava o mesmo presidente:

O terreno oferece capacidade para uma boa estrada e mesmo para trânsito de carros, dando-se-lhe, porém, uma outra direção, em alguns lugares, que oferecem dificuldades, mas não invencíveis.


Cruzeiro Quinhentista marca o encontro dos caminhos do Padre José e do Mar, em Cubatão. Novo Milênio.

Em 1839, o norte-americano Kidder fez uma viagem de Santos a São Paulo. No alto da Serra ele encontrou já em ruínas, e quase completamente coberto de lama, o padrão que ali mandara colocar o capitão-general Lorena, quando fizera o nosso Caminho do Mar. O viajante Kidder encontrou, na serra, com freqüência, tropas carregadas de café, em direção a Santos.

A essa época, operários alemães, trabalhando em Cubatão, absorviam toda a renda da barreira que nesse ponto existia e que fora criada pela lei de 1835. O senador Vergueiro, devido ao caminho de Santos, chegou a pedir a destituição do presidente da Província, e, na carta que escreveu a Bernardo de Vasconcelos, dizia que os alemães (imigrantes), "a quem se havia prometido quartel decente, só acharam a sombra do mato para se abrigar". Por isso e outras coisas, o senador Vergueiro pedia a destituição do presidente. Finalmente, os operários de Cubatão se amotinaram, puseram em risco a vida dos chefes e em sobressalto a todos os moradores.

Em 1841, novamente presidente, Tobias de Aguiar volta a preocupar-se com uma estrada de carros para Santos; e por isso informa em Relatório à Assembléia:

Mandei fazer novas explorações para ver se se descobre uma vereda própria, e que não se afaste muito das obras de grande valor que estão sendo feitas abaixo da serra, a fim de se não perder o que ali se tem despendido em pontes, aterrados, calçadas. As notícias que tenho da exploração são lisonjeiras, asseverando o explorador que a vereda que indiquei, pelas margens do "rio das Pedras", na parte que corta a serra, como lugar mais baixo, oferece assento para uma estrada de carro.
Seguindo essa diretriz ou outra, o certo que Rafael Tobias Aguiar iniciou os estudos de nova estrada na serra. A Estrada do Lorena seria, pois, abandonada, logo que esta estivesse concluída. E a este novo caminho, o brigadeiro Tobias de Aguiar deu o nome de "Estrada da Maioridade".


São Paulo (Várzea do Carmo), do Caminho de Santos, 1839, aquarela de Noël-Aimé Pissis. Iconografia Paulistana do Séc. XIX, 1998, Metalivros/BMeF, SP/SP


A Tobias de Aguiar sucedeu, na presidência da Província, Miguel de Sousa Mello e Alvim, que tomou posse a 15 de julho de 1841. Sua grande preocupação foi continuar a estrada iniciada por Tobias de Aguiar. Por isso, em seu Relatório à Assembléia, de 13 de janeiro de 1842, escrevia:

Qualquer indústria que dependesse do emprego de máquinas importadas do estrangeiro parava ante a impossibilidade de conduzi-las para cima da serra, visto que elas são de ordinário volumosas, e dum peso tal, que não podem ser conduzidas em bestas. (...)
Era pois um desideratum para a Província inteira a achada de uma vereda nessa Serra que, com uma ligeira inclinação sobre o horizonte, facilitasse a passagem de toda a espécie de transportes; e cabe-me hoje a fortuna de anunciar-vos que esta dificuldade, longo tempo julgada insuperável, acha-se afinal vencida, com a abertura de uma trilha descoberta o ano passado, mediante os incessantes e bem dirigidos esforços de meu antecessor, que o denominou Estrada da Maioridade (...)

A inspeção da planta e nivelamento, tirados com toda a exatidão possível, vos mostrará, senhores, que já não pode entrar em dúvida que a Província há de, em breve, colher os benefícios de uma estrada de carro por esta Serra.

Talvez, pela primeira vez na história dos Caminhos do Mar, hajam sido empregados instrumentos de engenharia e confecção de plantas, conforme anunciava o presidente.

Com a revolução de 1842 (chefiada pelo brigadeiro Tobias), a construção desse novo caminho foi paralisada, para ser reiniciada posteriormente. Em janeiro de 1844, o presidente Manoel de Souza e Mello informava à Assembléia que, embora se estivesse construindo a Estrada da Maioridade, o Caminho Velho (do Lorena) continuava a ser conservado também, e dizia:

A Estrada da Maioridade, cujas vantagens transcendentes e óbvias só poderão ser cabalmente apreciadas por quem nela transita com suavidade, depois de haver com custo e trabalho atravessado a serra antiga, dará considerável impulso à produção de nossa Província, se apenas conseguir-se a descida e subida de carros carregados; e ela vai em progressivo andamento, obtendo cada dia novos melhoramentos, de modo que já oferece trânsito desde a base até a extremidade superior, não só a cavaleiro e animais de carga, mas também a liteiras, informando-me o respectivo inspetor ter há pouco por ela subido uma traquitanda.

Finalmente, informava que metade da serra já estava aberta, tendo a estrada a largura de 20 a 30 palmos na parte superior, e 15 a 20 na inferior.

NOTAS DO AUTOR:

[1] Este John Mawe, que tão bem impressionado se mostrou com a Estrada do mar e tão generoso, deixou-nos em seu livro Viagem ao Interior do Brasil, principalmente aos distritos do ouro e dos diamantes, ao lado de elogios e boas referências a S. Paulo e seu povo, até mesmo a Cubatão e Bertioga, uma péssima referência a Santos e à hospitalidade de seu povo. Ele trazia duas cartas de apresentação, uma para o juiz e outra para um negociante. Eis o relato:

O juiz recebeu-nos friamente e quando lhe perguntamos onde morava a pessoa a quem era endereçada a outra carta, pareceu muito satisfeito pela oportunidade de se ver livre de nós. O negociante mostrou-se tão frio quanto o juiz, e deu-nos desculpa banal.
Recorremos então ao boticário, de quem recebemos algumas atenções, e que atendeu a um de nossos amigos que, tendo deixado S. Paulo doente, esperou três semanas por uma passagem para o Rio de Janeiro. Expusemos-lhe a nossa situação, explicando-lhe que o tempo chuvoso nos impedia de passar a noite na embarcação. Bondosamente, ofereceu-nos a sua loja para abrigo, por ser o único espaço que possuía disponível.

Solicitamos-lhe oferecesse quatro dólares a um dos vizinhos para que nos desse pousada por uma noite, porém ele alegou nada adiantar, pois o povo de Santos era notoriamente conhecido por sua falta de hospitalidade. A grande afluência de estrangeiros e renegados de outras nações, nesta e em outras cidades do litoral, enrijecera o coração do povo contra esses apelos à sua boa vontade, que os habitantes do interior, menos assediados, estão sempre prontos a ouvir e entender.

Assim desenganados, resolvemos não aguardar navio em Santos, mas seguir para o Rio de Janeiro numa canoa, margeando a costa. Alugada uma, embarcamos, depois de remarmos toda a noite, num estreito que separa o continente da ilha de Santo Amaro (que constitui uma das passagens para Santos por mar), chegando ao nascer do sol a Bertioga, situada no extremo daquela ilha.

Tão desenganado da terra santista se mostrara o mineralogista e comprador de pedras preciosas, que resolvera fugir dela, de canoa mesmo e remando a noite inteira... como se fugisse à peste.

Cremos que isto só acontecia com ingleses... dada sua má fama ao tempo... Santos não seria ainda a terra da Liberdade, da Caridade e da Fraternidade.

[2] Dr. Manuel Rodrigues Ferreira - Os Caminhos do Mar na História de São Paulo - in Os municípios de São Paulo - edição especial, 1956, pp. 25 a 31.
Ao findar aquele ano de 1844, já os carros de eixo móvel transitavam na Serra da Maioridade. O transporte pessoal era feito pelos banguês, traquitandas e diligências. Ao iniciar-se o ano de 1845, esse transporte de grandes pesos e volumes pelos carros de eixo móvel era intenso. Começava a declinar o regime das tropas arreadas, podendo-se dizer que aqui terminava o "ciclo de transporte em tropas de muares" iniciado em 1757.

Em 1846 D. Pedro II subiu a Serra, vindo de Santos para São Paulo (1). Em 1848 dava-se nova regulamentação às barreiras de Cubatão, estabelecidas pela Lei de 1835.

Em 1848, o presidente Pires da Mota informava à Assembléia que na Estrada da Maioridade subiam e desciam, para Santos, carros pesadamente carregados.


A ESTRADA DOS CARROS DE EIXO MÓVEL


Ao findar aquele ano de 1844, já os carros de eixo móvel transitavam na Serra da Maioridade. O transporte pessoal era feito pelos banguês, traquitandas e diligências. Ao iniciar-se o ano de 1845, esse transporte de grandes pesos e volumes pelos carros de eixo móvel era intenso. Começava a declinar o regime das tropas arreadas, podendo-se dizer que aqui terminava o "ciclo de transporte em tropas de muares" iniciado em 1757.

Em 1846 D. Pedro II subiu a Serra, vindo de Santos para São Paulo (1). Em 1848 dava-se nova regulamentação às barreiras de Cubatão, estabelecidas pela Lei de 1835.

Em 1848, o presidente Pires da Mota informava à Assembléia que na Estrada da Maioridade subiam e desciam, para Santos, carros pesadamente carregados.


Cinco anos antes, em 1841, Francisco de Assis Vieira Bueno, conforme relatou em sua Autobiografia, ainda desceu a serra pela estrada antiga, mas na volta subiu pela picada da Estrada da Maioridade, e disse naquele livro:

Então, quando por alguma aberta da estrada avistava algum trecho da calçada da Estrada Velha (do Lorena), parecia-me um paredão a pique, tão íngreme era ela.
A mesma comparação foi feita alguns anos depois, pelo conselheiro Albino José Barbosa de Oliveira, ao obter o favor de passar pela Estrada da Maioridade (em 1847) - quando decerto esteve fechada ao público -, observando:

Foi grande favor, porque a serra velha era um abismo.

É possível que a viajante Ida Pfeiffe - que fez a viagem de Santos a S. Paulo em 1846 - tenha subido a serra ainda pelo caminho antigo, porque disse:

Caminho horrível, escarpado, cheio de caldeirões, fendas, atoleiros, nos quais os nossos pobres bichos afundavam freqüentemente até acima dos joelhos.
Todavia, no ano seguinte, um viajante americano que subiu de Santos para S.Paulo - Samuel Greene Arnold - parece não ter reconhecido vantagens muito positivas na picada aberta pelo brigadeiro Tobias, e continuada pelos outros:

Na subida da serra havia árvores caídas sobre o caminho, a terra desmoronada atalhava o passo dos animais, e barrancos profundos com torrentes, como rios, tornavam perigosa a passagem.
Arnold achou que o caminho antigo, totalmente pavimentado, era até melhor para o tempo chuvoso, apesar de ser muito empinado.

O novo - o da Maioridade - era pavimentado em alguns trechos, e em outros macadamizado. Era mais largo e menos empinado que a estrada velha, mas estava terrivelmente destroçado pelas chuvas.
Há trechos interessantes no diário de Samuel Arnold, publicado em livro, sob o título Viagem pela América do Sul. Um deles, é quando confessa o seu encanto e o da sua comitiva ante a beleza das matas que se via ao subir a serra, os pássaros que ouvia e os panoramas santistas que contemplava à distância:

Uma das espessas selvas virgens do Brasil cobre as faldas da serra. Encontramos árvores gigantescas e denso matagal, arbustos abertos em flores, palmeiras, bananeiras e grande número de vegetais para mim desconhecidos. A mata estava cheia de pássaros cantadores, alguns entoavam vozes muito melodiosas. Faço esta observação porque dizem que não são comuns nos trópicos os pássaros canoros. Descortinava-se da serra um belíssimo panorama lá embaixo: a rica planície pantanosa recortada de rios. Santos ao longe e, mais além, o mar.
Era a mais poética das descrições feitas por viajantes estrangeiros, da travessia do Caminho do Mar, abrangendo a visão magnífica, que ainda hoje se desfruta e sempre com o mesmo encanto (talvez mais bela ou mais completa agora), em toda a subida daquelas serras.

Arnold levou doze horas na ida a S. Paulo e apenas seis horas e meia "de longa e trabalhosa peregrinação" na volta, e que nos dispensamos de transcrever.

De qualquer modo - apesar desses defeitos- parecem ter sido melhoradas notavelmente, então, as condições de comunicação de São Paulo com a marinha, depois dos trabalhos de que resultara a picada da Maioridade. O Relatório da Presidência da Província, em 1844, já citado anteriormente, não escondia as suas deficiências, mas declarava as razões: "metade da serra, com pequena diferença, está irregularmente aberta, tendo a largura de vinte a trinta palmos na parte superior, e apenas quinze a vinte na inferior, sendo ainda menor sua largura nas pedreiras, em razão da falta de pólvora para arrebentá-las".

Mas, com todas as suas deficiências, era enfim um caminho carroçável, e o relatório do presidente Pires da Mota (Padre Vicente Pires da Mota), reconhecido em 1850: "A Estrada da Maioridade, esta obra para nós gigantesca (do brigadeiro Tobias), oferece trânsito fácil e cômodo e por ela sobem e descem carros pesadamente carregados".

Importantíssima, sem dúvida, esta fase do Velho Caminho do Mar, permitindo a modificação do sistema de transportes e o início das linhas de diligências para passageiros, precursoras e predecessoras das grandes empresas rodoviárias de hoje, com seus moderníssimos e confortáveis ônibus.

O grande papel econômico da última fase daquele Caminho, situada entre 1829 e 1867, manifestava-se, principalmente, pela grande importação do homem branco e livre, que devia dilatar e engrandecer a economia paulista.

Todos os inúmeros (milhares) colonos e agricultores estrangeiros trazidos por Nicolau Vergueiro, para Ibicaba e Santo Amaro, e em seguida para as novas colônias agrícolas, como a Colônia Vergueiro, a Sete Quedas e Tapera em Campinas; a Morro Grande em Jundiaí; a Santa Bárbara e Morro Azul em Limeira; a São Lourenço e a Santo Antônio em Constituição; a Novais em Lorena; a Varador em Santa Isabel; a Lagoa Nova em Limeira; a São Joaquim em Jundiaí; a Morro Grande em Rio Claro; e as demais situadas naquele período, como Boa Vista, Santo Antonio, São José, Tatu, Dores, Cresciumal, Cauvitinga, Florence, Nova Granada, Getubá, Independência, Pouso Alegre, Angélica, Boa Esperança, Laranjal, Capitão Diniz, Nova Louzã, totalizando mais de 60.000 colonos, respondendo pela formação de novas cidades e municípios e pela nova riqueza paulista, passaram por ali, por aquele Caminho do Mar, a pé, em lombo de bestas e finalmente em carroças, naquela fase da Serra da Maioridade, e suas impressões e emoções daquela travessia, que nunca foram escritas, estão reproduzidas, por analogia expressional, nestes depoimentos diversos que desdobramos diante do leitor de hoje.

São Paulo despertava para o progresso, pelo sangue novo carreado por aquela grande artéria. Em 1835, as fazendas de café já eram em número de 1.212, os engenhos de açúcar, 576, e as fazendas de criação, 456. A abertura constante de grandes fazendas, nas zonas de Campinas, de Itu, de Limeira, de Tietê, de Rio Claro, e outras, deram origem, antes do advento da Estrada Inglesa (inaugurada em 1867) às próprias estradas de ferro do Interior como a Paulista, a Mogiana, a Ituana, e a Estrada S.Paulo Rio de Janeiro (hoje tronco da Central do Brasil), todas resultantes de iniciativas e impulsos criadores de paulistas que sentiam a força dos novos surtos provinciais.

Em 1870, como resultado desta fase de renovação agrícola, já São Paulo produzia 437.580 sacas de café (16% da produção nacional). A receita da Província beneficiava-se com a movimentação de novos capitais, de novas gentes e novas atividades comerciais e industriais, passando dos 248:215$000 de 1835, para 437:922$000 em 1850, 1.122:540$000 em 1860, e perto de 2.500:000$000 em 1870.

Campinas, que era vila desde 1797, já em 1842 era elevada à categoria de cidade. O mesmo aconteceria com Santos, que elevada a Vila entre 1546/1547, via-se promovida a cidade em 1839, ambas articuladas como bases do movimento renovador, proporcionado pelo aperfeiçoamento do Caminho do Mar e pela imigração intensificada.


Pobres Tropeiros de São Paulo, 1823, aquarela de Jean-Baptiste Debret. Imagem: Iconografia Paulistana do Séc. XIX, 1998, Metalivros/BMeF, SP/SP


Em Santos, tudo ia crescendo, a renda da Alfândega, a renda municipal, a população e o número de prédios. Em 1840, o café já era o primeiro produto de exportação, com 110.000 arrobas (em números redondos).

Em 1854, a população de Santos, que em 1830 era de 5.500 habitantes, passara a quase oito mil (7.855), em 1871 subiria a 9.191, notando-se o extraordinário decréscimo da porcentagem escrava (45% naqueles anos citados - e apenas 22% neste último ano).

Dispunha assim, a Província, em meados do século XIX, para comunicação entre a capital e interior e o porto de Santos, de um caminho que era sensivelmente superior às picadas e veredas dos primeiros tempos e às estradas anteriores, incluindo a última e mais famosa - a do Lorena - mas que, ainda assim, não satisfaria totalmente, sobretudo em face da necessidade de descida das várias zonas que se abriam no hinterland para o lagamar santista, em proporções cada vez maiores, das cargas de café e outros produtos.

A confissão contida no Relatório do presidente Nabuco de Araújo, em 1852, parecia resumir e colocar em seus termos exatos a importante questão:

O Caminho da Maioridade ou de Cubatão, ao cume da serra, jamais será uma estrada normal e própria para a viação de rodagem, se a deixarem em seu rumo atual.
Preparava-se, ao que sabemos hoje, na intimidade dos conciliábulos políticos e administrativos, o melhor advento imperial da velha estrada, conhecida depois como Estrada do Vergueiro.

NOTA DO AUTOR:

[1] O capitão Antônio Martins dos Santos, nosso avô, ex-deputado à Constituinte Paulista e às primeiras legislaturas, conselheiro provincial, era presidente da Câmara de Santos em 1846, por ocasião da primeira visita de D. Pedro II à cidade, cabendo-lhe, por isso, chefiar a comitiva de autoridades e pessoas gradas que foi a Cubatão e à raiz da Serra da Maioridade, acompanhando o Imperador. Antônio Martins dos Santos era o recebedor ou administrador das rendas da Província e do Império em sua terra, sendo em conseqüência a autoridade maior da própria Barreira Fiscal do Cubatão, muito importante na época, que pertencia, hierarquicamente, à Recebedoria de Santos.

Nessa ocasião, ele ofereceu ao Imperador tacharas de prata para as suas refeições, e colhedores de água para a travessia da serra, feitos de coco lavrado, com longo cabo de prata e rebordos do mesmo metal.

Pelos serviços então prestados a si e à sua comitiva, quis D. Pedro agraciá-lo com o título de Barão de Santos, e Antônio Martins dos Santos pediu licença a S. Majestade para não aceitar tal título, que era contrário aos seus princípios. Ofereceu-lhe então D. Pedro o Hábito de Cristo, no grau de Comendador da respectiva Ordem, e mais o título único - que não seria repetido - de Guarda ou Guarda-mor da Serra da Maioridade, mais uma espingarda simbólica, chapeada a ouro e cravejada de pedras preciosas, onde se lia a inscrição (sobre o dorso): "Arma de caça de S. Majestade D. Pedro II". Foi ele o único Guarda ou Guarda-mor da Serra da Maioridade, ou do célebre Caminho do Mar.

ESTRADA DO VERGUEIRO


Melhoramentos notáveis foram levados a efeito de 1862 a 1864, sob a direção de José Vergueiro (José Pereira de Campos Vergueiro [1].

Fletscher escrevera em 1855:

A grande esperança dos Vergueiros é que não está longe o dia em que o café de Campinas, Limeira e Itu venha a ser trazido sobre rodas até Santos.

E agora, exatamente a um Vergueiro, dos mais ilustres, ia caber a melhor reforma da estrada antiga, precedendo o advento da via férrea, já iniciada, entre S. Paulo e Santos.



Antiga rodovia SP-Santos, em ilustração do livro Brazil and the Brazilians (Kidder e Fletcher,1866, Philadelphia/EUA), com a ponte coberta em Cubatão, o caminho em ziguezague do Lorena e a antiga estrada em ascensão praticamente reta que foi o Caminho do Padre José

Consistiam os trabalhos, em primeiro lugar, na reparação do leito carroçável e na restauração do trânsito pela Estrada da Maioridade, considerado impraticável àquela altura, com um novo traçado do Ponto Alto (em São Bernardo) até São Paulo. Na Serra da Maioridade diminuíram-se as rampas, fizeram-se grandes muros de pedra, abriram-se valetas para escoamento das águas e pavimentaram-se certos trechos.

Deu-se ainda maior largura ao caminho - vinte e cinco palmos regulares, de MacAdam (macadame) ou pedregulho -, ficando só o percurso da serra com um termo médio de vinte e dois palmos, havendo, entretanto, lugares de quarenta e cinqüenta palmos.

Incluiu ainda o empreendimento a macadamização de um atalho no aterrado de Cubatão e a reconstrução das pontes do Casqueiro e do Cubatão. Em suma, José Vergueiro - no dizer do dr. Djalma Forjaz - transformou o Caminho do Mar, de estrada comum em estrada de rodagem, no sentido técnico e moderno da expressão. A primeira que teve a Província e atual Estado.

Do caminho assim remodelado, conhece-se o depoimento, algo contraditório, do Visconde de Taunay, em 1865. Ele fez a viagem de carro, e nas suas Memórias escreveu:

Começou a ascensão da Serra e, desde as primeiras voltas da estrada, não muito má etc. ...
Depois falava em "penosa ascensão, embora por vezes descêssemos todos os carros, puxados por três parelhas de valentes mulas, no meio dos contínuos Hum! Hum!" com que as excitavam os cocheiros alemães". Em seu livro Viagens de Outrora, observava ele:

A Estrada de Cubatão pareceu-nos o caminho do Paraíso, como o descrevem as velhas crônicas da Idade Média: desejamos aos nossos inimigos o trânsito contínuo por ela, em carroças sem molas e com maus animais. Não há suplício comparável. Ora o carro com dolorosos gemidos eleva às nuvens e galga alturas imensas, ora submerge e parece entranhar-se nas profundezas da terra e sempre tangenciando precipícios insondáveis e sempre sujeito a inclinações pavorosas.
Mas não ficaria nisso; as críticas mais severas do Visconde à estrada, ele as formularia em carta ao pai, no ano de 1865, quando diria:

A Estrada é má, tem muito forte declive e o macadame completamente estragado. Outra falta que lhe notei: a ausência de parapeitos para resguardo dos veículos de possível despenhamento por formidáveis precipícios [2]

Era estranho isso, porque o Visconde não conhecia melhor estrada do que aquela em qualquer parte do Brasil. Biliosidade talvez, ou neurastenia.


Após chegar a Santos, os imigrantes tinham de seguir por terra, em meados do século XIX. Imagem: Os Imigrantes, sem data, pintado por Arthur Nísio (capa da publicação Os alemães no Paraná, Curitiba/PR, 1979)

Eis o relato do engenheiro Manoel Rodrigues Ferreira [3], em confirmação ao que dissemos:

Entretanto, o Caminho do Mar somente adquiriria condições de estrada de rodagem, no sentido técnico da palavra, com os trabalhos que começariam a ser executados pelo comendador José Vergueiro (filho do senador Vergueiro). De São Paulo ao alto da Serra, ele modificou quase que inteiramente o traçado do velho Caminho do Mar. Na Serra diminuiu as rampas, fez variantes, construiu marcos de pedra, deu-lhe maior largura, drenou as águas das chuvas, calçou e apedregulhou-a (macadamização); macadamizou o aterro do Cubatão e construiu de novo as pontes do Casqueiro e de Cubatão.
Iniciados esses trabalhos a 5 de dezembro de 1862, foram inaugurados em 5 de dezembro de 1863. Na viagem inaugural, gastaram-se, de São Paulo a Santos, seis horas [4]. As condições técnicas na serra eram: rampa média, de 8%; largura, de 22 palmos. O trecho do planalto passou a chamar-se Estrada Vergueiro, pois constituiu quase um novo traçado.

Estava-se, então, em vésperas da inauguração do tráfego ferroviário regular entre Santos e São Paulo - e esse foi mesmo um dos motivos das censuras então feitas aos custosos trabalhos empreendidos por Vergueiro. Havia trinta anos que se cogitava do caminho de ferro ligando o litoral ao planalto de S. Paulo, mas só em 1860, concluídos em 1858 os estudos dos engenheiros Brunless e Lane, foram iniciadas as obras de construção, inaugurando-se em 1864 o primeiro plano inclinado da serra e em 1866 estabelecendo-se o tráfego provisório, entre Santos e Jundiaí, regularizado e inaugurado, definitivamente, em 1867.

NOTAS DO AUTOR:

[1] José Vergueiro, ou José Pereira de Campos Vergueiro, era filho do grande Nicolau Vergueiro, o iniciador da imigração na Província de S. Paulo, fundador das primeiras colônias de trabalhadores brancos, europeus e livres, e primeiro socializador das terras do Brasil (desde 1824) após a Independência. José Vergueiro foi vereador e presidente da Câmara de Santos, em 1839, logo após a elevação da vila a Cidade, e fez parte da mesma Câmara em diversas outras legislaturas, como em 1840, 1841 e em 1849. Em 1841, representou a cidade de Santos nas cerimônias da Coroação do Imperador D. Pedro II, muitas vezes concorreu com dinheiro próprio em favor de inúmeras iniciativas santistas e de todas as suas instituições.

[2] Esta parte final da crítica talvez fosse cabível, porque, ainda na última fase desta estrada, já em sua recuperação iniciada no século XX, verificava-se que, em muitos dos seus pontos antigos, continuava o desguarnecimento ou anteparo à beira de tremendos precipícios, como no caso da famosa Curva da Morte, que assim vinha desde que a estrada fora abandonada, e que Rudge Ramos, o grande recuperador do histórico Caminho, em 1913, esquecera-se de corrigir e melhorar.

[3] Dr. Manoel Rodrigues Ferreira - Os Municípios de S. Paulo - edição especial - 1956, S. Paulo.

[4] Confronte-se esta viagem (travessia total), feita em carros de tração animal, com a viagem de 1908 - aquela em 6 horas e esta última em 25 horas rodadas. Mal se compreende a diferença. Talvez o estado do Caminho, após 40 anos de abandono, pudesse mesmo explicar o fenômeno ao observador dos nossos dias...
A ferrovia não matou instantaneamente o Caminho do Mar; matou, isso sim, o serviço de diligências, que o cidadão Alexandre José de Mello explorava, levando-o à falência [1].

Como observou Almeida Nogueira, os fazendeiros e tropeiros, não podendo desfazer-se, de um momento para outro, de suas tropas cargueiras - que representavam capitais consideráveis -, continuaram com seus serviços de transporte de mercadorias, a preços muito baixos, fazendo, nos primeiros anos, bastante concorrência à Estrada de Ferro Inglesa.

E ainda em 1870 o presidente da Província, Antônio Cândido da Rocha, afirmava que o Caminho do Mar não devia ser abandonado, apesar da existência da via férrea, não só porque representava um grande capital, como porque também podia servir nos casos, então freqüentes, de acidentes no tráfego ferroviário.

A verdade, porém, é que o Caminho - como não podia deixar de ser, em face das condições do transporte e da economia de tempo - foi sendo abandonado e esquecido. Em 1887, segundo o Relatório da Comissão de Estatística, "não figurava mais entre as estradas provinciais, aparecendo, aí, apenas entre as de segunda classe: a estrada de São Paulo a São Bernardo, na extensão de vinte e cinco quilômetros". Era uma tradição que se apagava, apenas vinte anos após a inauguração da estrada de ferro.

Até a povoação de São Bernardo - outrora ponto de parada de negociantes, tropeiros e carreiros - perdeu toda a sua animação comercial, o mesmo acontecendo com o arrabalde do Lavapés, em S. Paulo - passagem do Caminho que vinha do litoral, e outrora próspero - que sofreu o impacto da via férrea. O seu movimento de viajantes e cargueiros, a atividade das suas vendas e dos seus potreiros, que o viajante Junius, autor de Notas de Viagem, pôde constatar em meados do século, já não mais existia em 1882, quando ele voltou a rever a cidade de S. Paulo, parecendo então uma tapera abandonada.

Em alguns outros trechos do planalto ou da baixada - de conservação mais fácil ou de ruína mais demorada - continuou o velho Caminho do Mar servindo, episodicamente, a alguns tropeiros e moradores humildes. Na serra é que ele sofreu a maior decadência, desmantelando-se e arruinando-se ao impacto das enxurradas e temporais, destruído aqui e ali pela queda das barreiras, de taludes, de grandes troncos e grandes rochas desprendidas da montanha e finalmente pela invasão do mato bravo e da tiririca, consumido pela "Lima do tempo", como diria Pedro Taques.


Após descerem a Serra, as tropas de burros paravam na Vila de Cubatão. Novo Milênio. 

Um dos pontos que mais sofreria com a decadência e o abandono do Caminho do Mar seria Cubatão, onde como primeira conseqüência deixaria de existir a Barreira Fiscal com o seu "Rancho Grande" dos tropeiros, e assim quase todos aqueles sítios e pequenas fazendas, que negociavam seus produtos (bananas, tangerinas, canas, pinga e rapadura) com as tropas de passagem, para Santos ou para o planalto; toda aquela vida enfim, daquele ponto em que se fizera a nova povoação em 1841, que se foi transferindo para junto da Estação da Estrada de Ferro, como uma sombra do que fora [2].

NOTAS DO AUTOR:

[1] A Revista Comercial, de 10/7/1866, publicava o primeiro Edital da Justiça, contendo a petição de Alexandre José de Mello. Ei-lo em parte:

João Baptista da Silva Bueno, juiz comercial suplente n'esta cidade de Santos etc. ...
Faço saber aos que este edital virem que, por parte de Alexandre José de Mello, negociante não matriculado, me foi apresentada a petição do teor seguinte: -  Ilmo. Sr. Juiz Comercial - Diz Alexandre José de Mello, residente à rua Áurea nº 18, desta cidade, com negócio de diligências e animais de condução para o interior da província, e algumas especulações de compra e venda de gêneros, que, tendo-se completamente paralisado o serviço das conduções desde que em fevereiro do corrente ano começou a funcionar a Estrada de Ferro, e isto quando infelizmente acabava o suplicante de empatar capitais com a compra de alguns animais e diligências, bem depressa achou-se em estado de não poder de pronto satisfazer seus débitos, principalmente depois que foi acionado por um de seus credores, o capitão Gregócio Innocencio de Freitas, que com o aparato de uma penosa execução muito tem prejudicado o crédito do suplicante. Verdade seja que procurou este todos os meios de solver seu débito, mas tais foram os embaraços e escassez de recursos com que luta esta praça há tempos para cá, que baldados foram todos os seus esforços. Ora, não convindo de modo algum ao suplicante prejudicar a seus credores e sendo ele verdadeiro negociante à face do disposto no título décimo do Código Comercial, art. 20, parágrafo 3º do Regulam. n. 737 de 25/11/1850, e assentos do Tribunal do Comércio da Corte, para acautelar o prejuízo dos mesmos credores e demonstrar boa-fé, vem o suplicante apresentar-se neste juízo e pedir a V.S. se digne declarar aberta a sua falência etc. ...

Seguia-se o despacho do juiz, decretando a falência do requerente a contar do dia 4 daquele mês e ano, e convocando os credores, para o dia 13, às 10 horas da manhã. Assinava o escrivão Joaquim Fernandes Pacheco, e em seguida o juiz João Baptista da Silva Bueno.

Não apenas Alexandre José de Mello sofrera o mal da Estrada de Ferro, o italiano Luiz Massoja, que também explorava o serviço de diligências para S. Paulo, como extensão das linhas que explorava para a Praia da Barra ("Diligências Guanabara") desde 23 de julho de 1864. Este não repetiu o caso do brasileiro, prejudicou os seus acionistas e aos credores, fugindo para o Rio de Janeiro.

Outro prejudicado foi João Mariano de Campos Bagrinho, que explorava o aluguel de animais para passeios locais e excursões a S. Paulo e interior. Só que este não faliu, e ainda continuou por algum tempo com o seu negócio.

[2] O abandono do Cubatão antigo foi tão completo que toda a sua serra voltou a ser como há um século, ponto de caçadas para a gente de Santos, ali para as bandas de Piaçagüera, passando pelo Perequê, antiga passagem do Caminho do Mar, até atingir a Cova da Onça na Serra Velha, onde muito caçador criou fama.

Nós mesmos, que somos de 1903, ainda realizamos várias caçadas por todo aquele costão da serra, para a esquerda (lado dos Areais) e para a direita, lado do Perequê e Piaçagüera, considerados ainda grandes pontos de "macucos" e "jacutingas".

Com dezesseis anos de idade, nós vimos nascer, ali bem junto ao início da rampa, a Fábrica de Papel (Companhia Santista de Papel, se bem nos lembramos), dirigida pelo engenheiro dr. Lindolfo de Freitas, num lugar que outrora já fora bem povoado e plantado, e que não passava então de um bonito deserto, cheio de arvoredo e de antigas fruteiras desnaturadas, muito longe da povoação, toda para além do rio e junto à Estação da Estrada de Ferro.

RESSURREIÇÃO DO CAMINHO DO MAR



Rancho da Maioridade, no Caminho do Mar, por volta de 1940, vendo-se também, mais ao fundo, o Belvedere Circular. Imagem de cartão postal Wessel, no acervo de Francisco Carbala. Novo Milênio.



Muitos anos depois, já no advento do automóvel, quando os primeiros veículos desse tipo, a gasolina, começaram a entrar em uso em São Paulo e Santos (1907/1908), seguidos pelas motocicletas, crescendo em número a cada ano, é que começou a entrar, também, na cogitação e nos programas dos governos estaduais de S. Paulo, a recuperação do antigo Caminho do Mar, quase totalmente anulado. Vamos reproduzir as palavras de um dos maiores especializados em tais assuntos (rodoviarismo, automobilismo, transportes), na revelação do início da nova fase do Caminho do Mar e do próprio rodoviarismo em S. Paulo e no Brasil.


Belvedere Circular. Imagem de cartão postal Wesse. Acervo: Francisco Carballa. Novo Milênio. 


O primeiro reide de automóvel Rio-São Paulo e o primeiro São Paulo-Santos (1).
Foi da França, incontestavelmente a pátria do automóvel, que se originou nosso impulso inicial. Encontrando-se no Rio de Janeiro, nos primeiros meses de 1908, o grande automobilista francês Conde Lesdain, teve notícia, decerto, da grande impressão causada no espírito público pelo fato de que, em fevereiro do referido ano, havia ficado concluído o alargamento da bitola de 1 metro para 1,60 m do trecho São Paulo-Cachoeira, do ramal de S.Paulo, da Estrada de Ferro Central do Brasil, com o que se suprimia a baldeação, até essa data inevitável, da viagem ferroviária entre as duas maiores cidades do Brasil.

Esportista audacioso, e, ao mesmo tempo, penetrante investigador do nosso passado viatório, teve o aristocrata francês a idéia de demonstrar, direta e imediatamente, a possibilidade de restaurar, pelo automóvel, a ligação sem trilhos metálicos, nem traçado, nem horários forçados, que desde 1754 havia existido, de ponta a ponta, entre a Guanabara e a Paulicéia.

Do pensamento à ação, o intervalo foi pequeno. Já a 10 de março o Conde Lesdain se larga do Rio de Janeiro, com seu pequeno carro Brasser de 12/16 cavalos de força. Gasta na viagem 34 dias de esforços, trabalhos e sacrifícios, não raro correndo positivo risco. E na tarde de 12 de abril atinge, afinal, a capital paulista, depois de um trajeto que não exageramos calcular em mais de 700 quilômetros, tais e tantos foram os rodeios e desvios que teve de efetuar, em muitos trechos, vendo-se obrigado a rodar sobre o próprio leito da via férrea.

A chegada do Conde Lesdain a São Paulo foi um verdadeiro acontecimento. O esporte de puro amadorismo, de recente introdução, era a empolgante novidade do lugar e do momento. Entre os esportistas da terra tinha posição dominante Antonio Prado Júnior, de incontestável prestígio como organizador, dirigente e disputante, tanto mais quanto da sua recente estada na Europa, tinha trazido para o seu Estado a mística nascente do automobilismo.

Nada mais natural, pois, do que causar-lhe funda e criadora impressão, não só a notável façanha de Lesdain, mas, também, a declaração por este feita, sem rodeios, de que iria tentar a travessia automobilística São Paulo-Santos pelo caminho histórico que, de extremo a extremo, nunca fora amassado por pneumáticos. Prado Júnior sente-se, com alguns amigos, espicaçado no amor próprio de esportista e brasileiro. Por que não tentar ele, com esses amigos, realizar a atraente, mas dificílima, viagem entre a capital paulista e o seu porto?

Resolveu tentar o grande empreendimento. Por uma natural questão de ética convida Lesdaim, mas ele agradece o convite, recusando, pois seu carro não está em boa ordem. E assim, na manhã de 16 de abril de 1908, por sinal que numa quinta-feira santa, partem de São Paulo, capital, os primeiros "bandeirantes do motor".

São quatro. Antonio Prado Júnior, inspirador e chefe, é a maior figura esportiva do grupo. Clóvis Glicério, engenheiro. Mário Cardim, o jornalista que nos transmitiu o relato notável da aventura. E Bento Canabarro, um sertanista, incansável batedor de rumos pela hinterlândia brasileira.

O carro é um motobloco, de fabricação francesa, que apresenta a novidade, sensacional para a época, de ter seus dois cilindros fundidos e calibrados num só bloco. Não leva pára-lamas. Está também sem portas. Tem 30 cavalos de força, pela cotação européia antiga, potência impressionante para aquele tempo. E apresenta especialíssima vantagem, devido às suas rodas muito grandes, de ter 30 centímetros de altura livre sobre o solo. Muitos carros modernos nem chegam a ter 10 centímetros.

A travessia foi descrita muitas vezes, conquanto, em todas, de modo sumário e incompleto. Os reidistas de 1908 eram marcadamente homens de ação, muito mais preocupados em "fazer" do que em "contar". Não cuidaram, assim, de reunir e guardar documentos para a posteridade. Mas sempre é possível retraçar, nas grandes linhas, o que foi o primeiro reide automotorizado entre o planalto de Piratininga e a região da marinha paulista.

Do instante da partida para o da chegada final (ao cair da noite do dia 17 de abril) contaram-se 36 horas e meia. Delas, nada menos de 25 horas foram gastas com o carro "rodando", ou com trabalhos e lutas para desimpedir o caminho, que, desde 1867, estava praticamente abandonado. Até dinamite tiveram os excursionistas de usar, a fim de percorrer os 66 quilômetros que vão da Praça da Sé, em São Paulo, até a Praça dos Andradas, em Santos, o que nos dá a média (efetiva) de 2,7 km/h.

Evolução automobilística e rodoviária - Entretanto, a boa semente, se não germinara de pronto, tinha sido lançada em boa ambiência. São Paulo progredia vertiginosamente, a despeito da insuficiência quantitativa e qualitativa dos seus transportes ferroviários. Já em 1896 o governo paulista (Campos Sales) encarregara o notável Orville A. Derby de organizar um plano de estradas de rodagem, a fim de auxiliar as estradas de ferro. Mas só para auxiliar.

E em 1912 o deputado Washington Luiz defendera, no Congresso Estadual, um projeto (que foi a Lei nº 1.406, de 26/12/1913) determinando que "os sentenciados trabalharão, de preferência, na abertura, construção e conservação de estradas públicas de rodagem". Por sua vez, o automóvel vinha acelerando sua evolução de viatura de esporte, que a princípio fora, para veículo de transporte, que até agora é.

Temos em 1913 um ano fecundo, no tangente à "Era Rodoviária". Nele, o engenheiro Clodomiro Pereira da Silva publica, em livro, o seu famoso "Plano de Viação para São Paulo", dando às estradas de rodagem existência e importância autônomas, pois, na sua abalizada opinião, essas estradas, como as vias fluviais, deviam ficar consideradas distintas e independentes, na essência, conquanto pudessem, relativamente, ser colaboradoras das estradas de ferro.

No mesmo ano é, também, iniciada a restauração do histórico Caminho do Mar, entre São Paulo e Santos, numa nova e produtiva combinação de esforços da iniciativa particular com os poderes públicos, estadual e municipais. Nesse ano, ainda, Washington Luiz e Antonio Prado Júnior realizam a primeira viagem de automóvel da Paulicéia até Curitiba, dando começo à projeção automobilística de São Paulo no Brasil; projeção que mais tarde se positiva pela "bandeira" de automóveis São Paulo-Rio, em 1925.

O efeito psicológico da travessia São Paulo-Santos, a 16 e 17 de abril de 1908, fora grande. Poucos dias depois, um grupo de esportistas, chefiado pelo depois famoso aviador Edu Chaves, toma de um automóvel Brown (norte-americano) e com ele tenta cobrir os sessenta e poucos quilômetros que vão de São Paulo a Jundiaí. Gastaram nisso 10 dias!... Era, no entanto, a sementeira generosa, que produziria a atual rede rodoviária do Estado de São Paulo, que, ainda mais do que a rede ferroviária, faz hoje o seu progresso, a sua expansão e a sua grandeza econômica, urbanística e social [2], libertando lentamente, e desde muito, no dizer de Américo R. Netto, S. Paulo e o Brasil, da mística ferroviária, que os empolgara desde meados do século XIX.

Washington Luiz, o grande "paulista de Macaé", sempre crescendo na política administrativa e chegando a presidente do Estado de S. Paulo e do Brasil, ficaria conhecido como "O Estradeiro", à luz do seu lema: "Governar é abrir estradas".

Em 1908, por ocasião das comemorações ao feito de Antonio Prado Júnior, já poucos se lembravam de que aquilo mesmo fora quotidianamente feito, até 1870, pelo menos, pelos carros e diligências, tirados a vários animais, depois da transformação da velha Estrada Santos-São Paulo, realizada por Lorena, e mais tarde (1862/1864) por José Pereira de Campos Vergueiro, este deixando-a em seu melhor estágio de aperfeiçoamento... E ninguém se lembrava daqueles antigos e primeiros heróis...

A partir, pois, de 1913, como vimos no relato de Américo R. Netto, é que se inicia a recuperação, lenta e gradual, da Estrada do Vergueiro, ou, melhor dizendo, do velho Caminho do Mar, de tão grande história. Rudge Ramos resolveu adaptá-lo a uma estrada de automóveis. E nesse mesmo ano, conseguindo o auxílio dos governos do Estado e dos municípios paulistas, incluindo os da capital e Santos, os mais diretamente interessados, ele deu início à reconstrução do velho e abandonado Caminho, de tal modo que, em 1917, já puderam os participantes do 1º Congresso Paulista de Estradas de Rodagem, reunidos sob os auspícios do governo Altino Arantes, ir em caravana automobilística a Santos.

Em 1920, Washington Luiz, indo ao Caminho do Mar, procurou localizar trechos abandonados do antigo, construído por Bernardo José de Lorena, e conseguiu não só localizá-los, como também descobrir, quase enterrado, o "padrão" por ele mandado colocar ali e do qual havia o viajante norte-americano Kidder dado notícia em 1839.

Naquele mesmo ano de 1920, Rudge Ramos já havia melhorado Cubatão, macadamizado a serra e parte do planalto, entre a serra e o Rio Grande. A partir desse ano, faltando somente o trecho do Rio Grande a S. Paulo, Rudge Ramos prescinde de toda e qualquer colaboração alheia e funda a Sociedade Caminho do Mar. Por compra e doações, obteve uma faixa de terreno ao lado da antiga Estrada Vergueiro e construiu nova estrada entre S. Paulo e o Rio Grande. Nesse trecho, passou-se a pagar pedágio à sociedade aludida. Em 1921, a média diária de tráfego entre Santos e S. Paulo era, nos dois sentidos, de 82 automóveis.

Em 1923, Washington Luiz resolveu adquirir a Sociedade Caminho do Mar, o que fez, entregando ao trânsito público e sem pedágio o trecho entre o Rio Grande e São Paulo.

O revestimento do trecho da serra em concreto de cimento foi iniciado em 1925 e concluído em 1926. Para base desse revestimento foi aproveitado o antigo macadame da estrada, lavado e com as juntas limpas, sendo adotada a dosagem de uma barrica de cimento para um metro cúbico de pedra britada, 500 litros de areia e 300 litros de água. Este revestimento em concreto de cimento foi a primeira experiência do gênero realizada no Estado e no Brasil.



Cruzeiro Quinhentista, reconstruído no início do Caminho do Mar, em Cubatão, cerca de 1980 Foto: Poliantéia Santista, volume I, 1986, Ed. Caudex, S.Vicente/SP


Quanto à baixada de Santos, entre esta cidade e Cubatão, recebeu revestimento asfáltico em 1928 [3]. Mas não ficou aí a recuperação. Dotaram a Estrada, já agora, de aspectos artísticos e de um caráter pitorescamente turístico, como aquele bonito Pouso de Paranapiacaba, um imponente edifício de pedra, construído à beira do abismo (junto ao grotão ou garganta da cachoeira Água Branca, formadora do Rio das Pedras, com mais de 400 metros de profundidade), onde os excursionistas e viajantes comuns podiam fazer lanches, tomar café, refresco ou vinho, a qualquer hora; o pouso ou rancho da Maioridade, um pavilhão em meio da serra, para descanso e observação da paisagem, todo revestido de azulejos alusivos à época do Brigadeiro Tobias e início das obras da Maioridade, e outras obras-de-arte, realmente admiráveis, que, até hoje, a grande e nova Estrada Moderna, a Via Anchieta, não possui.

Em conseqüência dessa recuperação, formaram-se empresas de ônibus intermunicipais, a princípio muito precárias, com travessias completas (S. Paulo-Santos e vice-versa) em três horas, pouco seguras, principalmente na serra, que, nas horas de cerração ou nos dias de mau tempo, já não se falando à noite, chegavam a infundir pavor aos passageiros.

Assim, atingiu-se o ano de 1926, quando o Governo Federal proclamava, por decreto, o início da Era Rodoviária no Brasil (a 13 de maio desse ano), decreto caricato, porque São Paulo, naquela data que marcava apenas a restauração da antiga estrada de rodagem Rio-Petrópolis, com 70 quilômetros (caso semelhante ao nosso Caminho do Mar), já possuía, em tráfego, 1.200 quilômetros de estradas de rodagem, "construídas e planejadas em função do veículo automotor, tanto de passageiros como de cargas", segundo a expressão de Américo R. Netto.

Naquele ano de 1926, São Paulo (Estado) contava com mais de 14.000 automóveis de passageiros e mais de 1.000 caminhões, possuindo Santos cerca de 600 daqueles primeiros e pouco mais de 200 destes últimos (dominando ainda os caminhões automóveis pelas carroças, carretas e carretões tradicionais, principalmente no grande transporte do café).

Em 1927, já como presidente da República o ilustre dr. Washington Luiz, é que o Governo Federal começaria realmente a gastar com a Era Rodoviária oficial, aplicando mais de 1.000 contos em rodovias, o que era espantoso para a época, embora o governo paulista, dele mesmo e de Júlio Prestes, já viesse gastando, principalmente de 1921 em diante (que seria o início real da Era Rodoviária de S. Paulo), verbas consideráveis, que permitiriam, àquela altura, apresentar 1.200 quilômetros de estradas trafegáveis [4].

É nesse ano, aliás, em dezembro, que se cria em São Paulo a Inspetoria das Estradas de Rodagem, primeira iniciativa brasileira do gênero, como base de uma organização definitiva.

Apesar de muito aperfeiçoada com o correr dos anos, a Estrada do Vergueiro, e mais ainda a Serra da Maioridade, como expressão rodoviária (Avenida Bandeirantes na saída de Santos), conservou sempre uma excessiva inclinação de rampas (graduação muito forte de aclives e declives na serra), além do mal de via única (para subida e descida) e o desguarnecimento de suas passagens piores, junto a grandes abismos, como a famosa Curva da Morte, onde tantos desastres se sucederam e onde realmente tantas pessoas morreram em dramáticas condições.

E assim, com a extraordinária expansão do Estado de São Paulo, o crescimento do interior e do litoral, e com ele o movimento de viajantes entre S. Paulo e Santos, que se somariam àquelas deficiências, surgiu a necessidade da criação de uma nova estrada, de menor aclividade, maior largura comportando duas vias (de acesso e descesso), melhor pavimentada e com mais segurança no percurso.

Políticos e jornais gritaram a necessidade aos quatro ventos; os governantes ouviram aquelas vozes; Armando Salles de Oliveira mandou planejar e traçar a nova estrada; Adhemar de Barros mandou executar os planos e traçados recebidos, que estabeleciam um novo leito no antigo aterrado de Cubatão (Cubatão a Santos), um novo trajeto pela serra (alguns quilômetros distante do outro), correndo ao longo do vale do rio e represa dos Pilões sobre o costão oposto à cachoeira do mesmo nome e sua captação (pela antiga City).

Os trabalhos da nova e grande estrada começaram em 1939 e ficaram completamente terminados em 1953. Entretanto, sua inauguração foi realizada em 1947, desde aí tornando Santos um subúrbio de São Paulo e fazendo-lhe crescer a edificação particular, a população fixa e flutuante, todos os índices financeiros e econômicos, de modo inesperado e até mesmo excessivo, pelas facilidades de locomoção e transportes, que não só a nova estrada, mas também todo o novo sistema rodoviário paulista em articulação com ele, levou e ofereceu a todas as zonas do Estado e a todos os seus habitantes de mais recursos, uns descendo constantemente a passeio e a negócios, outros adquirindo ou construindo edifícios. Já se fazia agora o percurso S. Paulo-Santos, de automóvel, em 1 hora.

E com a inauguração da Via Anchieta, ficava, outra vez, em quase total abandono, a última e bela Estrada do Mar, que tanto dinheiro custou a São Paulo, durante sua longa história.



NOTAS DO AUTOR:

[1] Américo R. Netto - in Paulistania - número 39, março/abril de 1951, pp. 29,30, 31 - e outros números da coleção dessa revista, sob o título: "Quando, onde e como nasceu a rodovia no Brasil"

[2] Um conde francês fizera em 1908 a primeira travessia rodoviária no Brasil, lançando a Era do Automóvel, e, por coincidência, um francês licenciava, por aquela época, o primeiro automóvel aparecido em Santos, um possante Benz, que recebera a chapa nº 1, e era ele o cidadão Eduardo B. Veriot (Edouard B. Veriot).

Na mesma ocasião, lembrando a época anterior, que entrava em agonia, o conde Pinto Novais, residente no antigo palacete do grego João Constantino Janacópulos (à Rua Sete de Setembro), exibia, diária e constantemente, o seu carro (quase um Landau) de grande luxo tirado a dois e por vezes a quatro enormes cavalos normandos, de imensas e pesadas patas, que abalavam o chão com os seus impactos, anunciando ao longe, com o seu "ploc... ploc" inconfundível, a sua sempre espalhafatosa passagem. E muitas vezes se cruzaram, lado a lado, o primeiro e o último...

Anos mais tarde, quando já não existia o conde Pinto Novais nem os carros particulares a tração animal, em pleno advento do automóvel (particular e de praça), tivemos a tristeza de encontrar aqueles mesmos e belos cavalos normandos do conde Pinto Novais (Álvaro Pinto da Silva Novais) atrelados a carroças e carroções de café, degradados em sua velhice, como sombras, apenas ainda brilhantes, pois que repetiam o seu "ploc... ploc" de outrora, da sua antiga imponência e do seu perdido fastígio.

Até entre os animais havia disso...

[3] Dr. Manoel Rodrigues Ferreira - Os Municípios de S. Paulo - edição especial - 1956, S. Paulo,  p. 31.

[4] Só em 1920 o governo de S. Paulo gastara 1.015 contos de réis com abertura de novas estradas, que se completariam no ano seguinte, e isso era uma fábula para um Estado da União.
Caminho do Mar: estrada de automóveis


Em 1956, A. Ernest escrevia um pequeno artigo sobre os "Monumentos do Caminho do Mar", que vale reprodução neste final de capítulo [1].


O Caminho do Mar, em cartão postal possivelmente da década de 1930. Imagem cedida pelo historiador Waldir Rueda


Recentemente, um grupo de orientadores do nosso turismo fez, em automóveis, a viagem São Paulo-Santos, pela estrada velha.

Descendo o tradicional Caminho do Mar, os elementos desse grupo, todos competentes e dedicados aos nossos problemas de viação, fizeram uma série de verificações práticas, dentre as quais duas se impõem como especialmente importantes.

Constatou-se, principalmente, que, ao contrário do que em geral se acredita, a antiga rodovia da Paulicéia ao porto santista continua proporcionando trânsito aceitável a qualquer veículo automotor. Sem tecnicamente poder ser posta em paralelo com a Via Anchieta, suas condições de superfície são satisfatórias e seu traçado, embora menos fácil, é do ponto de vista turístico muito superior, pela multiplicidade e variedade das suas belezas paisagísticas. Pouco transitada agora, faculta caminho relativamente livre e a única exigência que se impõe às viaturas é que estas estejam com seus freios eficientes, devido às fortes rampas da descida.

A segunda verificação, ao contrário da primeira, foi realmente contristadora. É que os quatro monumentos histórico-geográficos, que expressivamente a ilustram e adornam, estão sendo arruinados pelo tempo. E destruídos pelos homens. Esse conjunto de edifícios rodoviários - os primeiros e até agora os únicos existentes no país, embora já datem de 1922 - está ficando cada vez mais comprometido na sua integridade.

A obra imaginada e prometida por Washington Luiz, com a colaboração dos grandes artistas arquitetos da família Dubrugras e do fino esteta decorador J. Washt Rodrigues, não tem tido, evidentemente, o mínimo de conservação que poderia e deveria mantê-la na sua integridade original. E, pior, muito pior do que isso, ela não tem merecido - não está recebendo - a devida proteção.

Rancho de Paranapiacaba, no Alto da Serra, comemorando rodoviariamente a era republicana. Casa da Maioridade, relembrando o período imperial. Marcos e padrão do Lorena, fixando um grande momento do Brasil-Colônia. Cruzeiro Quinhentista, marcando etapa dos primeiros tempos do devassamento da hinterlândia paulista. Todos, mas todos esses quatro monumentos, estão exigindo, com insistente urgência, que se trate tanto de restaurá-los dos seus primeiros mas já sensíveis estragos, como, ainda, que se cuide de evitar novas negligências e novas destruições.

Há, no caso, um patrimônio rodoviário que nunca mais poderá ser substituído, pois nunca mais se repetirão as condições em que foi estruturado. Existem, devem existir, responsáveis por ele, como, por exemplo, o Departamento de Estradas de Rodagem do Estado de S. Paulo, a cuja guarda, pelo menos teoricamente, deve estar confiado. Para tais responsáveis, pois, fazemos, aqui e agora, um veemente apelo de socorro, auxílio e proteção.

Desejamos, e esperamos, possa tal apelo ser ouvido. E, principalmente, atendido.

Há, no caso, evidentemente, um grande e alto e nobre compromisso com o nosso augusto passado.


Membros da Comissão Geográfica de São Paulo que em 1910 estudaram a transformação da Estrada do Vergueiro no Caminho do Mar. Alguns livros erroneamente informam que esta foto seria da primeira descida de automóvel pela Serra do Mar, entre São Paulo e Santos. O local é um restaurante no trecho do Planalto do Caminho do Mar

Foto: Alfredo Gastoni Tisi Neto (reprodução), in Presença da Engenharia e Arquitetura - Baixada Santista, de Wilma Therezinha Fernandes de Andrade, Livraria Nobel/Empresa das Artes, São Paulo/SP, 2001, também em História de Santos/Poliantéia Santista, de Francisco Martins dos Santos e Fernando Martins Lichti, Ed. Caudex. Ltda., São Vicente/SP, vol. II, 1986

Aí está demonstrado, no artigo de A. Ernest - que não conhecemos, mas que julgamos descendente de estrangeiro -, a demonstração viva do amor que nos desperta e merece (a todos os paulistas, de nascimento ou de adoção) o velho Caminho do Mar, ultimamente julgado de interesse turístico e emergencial, e mandado reparar, repavimentar e pôr em condições de tráfego, não só para uso turístico e de opção, como para uso normal auxiliar, nos dias de conserto da Via Anchieta e nos de excessiva freqüência daquela, quando mais de 30.000 veículos de todos os tipos a trafegam nos dois sentidos num só dia, produzindo muitos milhares de cruzeiros de pedágio (desse pedágio que, tal como o antigo novo imposto para a reedificação de Lisboa, dos tempos coloniais, projetado para algum tempo, tornou-se definitivo, e vai dando recursos para tudo, até para conservação e abertura de outras estradas...).

Como via eminentemente turística e merecedora do carinho tradicionalista da gente de S. Paulo, não seria demais que lhe pusesse à entrada e à saída, na serra, e no planalto, um painel em que se lesse a nova legenda de Hércules:

"Foi por este caminho que se fez São Paulo e se tornou grande o Brasil".

"Por aqui se libertaram os escravos e entrou o braço livre".

"Foi neste caminho que se fez a Independência brasileira e teve início a Nacionalidade".


Placa indicativa do local por onde passa o Caminho do Mar original, na Serra do Mar
Foto: jornal santista A Tribuna, edição especial do Sesquicentenário da Independência, 7/9/1972

NOTA DO AUTOR:

[1] A. Ernest - in: revista Paulistania, janeiro a abril de 1956, nº 55, p. 47.

Uma boa idéia da aventura que era viajar de automóvel pela Serra do Mar é dada por esta nota de primeira página que o jornal santista A Tribuna publicou em sua edição de 28 de outubro de 1913 (ortografia atualizada nesta transcrição):

Excursão da capital a Santos em automóvel

Às 9,40 da noite de ontem chegaram a esta cidade, no automóvel Benz n. 574, da garagem do mesmo nome, tendo partido de S. Paulo às 4 ½ da tarde, os srs. Attilio Marelli, Francisco Mendes, Angelo Forsatti, Ernesto Fernandes, Umberto Gerfi e Carlos Barreto, que gastaram portanto, 4 horas e dez minutos.

A viagem foi feita em excelentes condições, atendendo-se ao mau estado do caminho, convindo notar que é a primeira vez que nessa espécie de veículos ela é tentada com êxito, à noite.

Aqueles srs. pretendem regressar hoje, ao meio dia, para a capital, no mencionado automóvel.


História de Santos, republicado em 1996 junto com a Poliantéia Santista de Fernando Martins Lichti, pela Editora Caudex Ltda., de São Vicente-SP.


Casa de Válvulas da Usina Henri Borden em 1920. Fotos Antigas- Preservação Da Memória Fotográfica.


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A ABERTURA EM CUBATÃO DA 

PRIMEIRA FERROVIA PAULISTA: A  SÃO PAULO RAILWAY COMPANY



Reportagem da Revista Moderna


 Traçado da São Paulo Railway, tendo à esquerda a Serra do Mar e à direita o interior paulista. Imagem: acervo da Fundação Biblioteca Nacional, incluída no livro O Porto de Santos - Navegando pela História, de Cristiane Limeira (Ed. Neotropica Multimedia, São Paulo, 2014, apoio Terminal Portuário Santos-Brasil)


 Em 16 de fevereiro de 1867 entrou em operação a estrada de ferro São Paulo Railway, a primeira ferrovia paulista, concebida para ligar a cidade de Santos à vila de Jundiaí e, por conseguinte, aos distritos da província de São Paulo onde a cultura do café expandia-se de forma promissora.

O empreendimento foi idealizado por Irineu Evangelista de Souza, o Barão de Mauá, José da Costa Carvalho, o Marquês de Monte Alegre, e o Conselheiro José Antonio Pimenta Bueno. Um decreto imperial de 1856 autorizou-os a constituírem uma companhia encarregada da construção, custeio e gozo de uma estrada de ferro que partisse de Santos e chegasse a Jundiaí, passando pela capital São Paulo.

O projeto da ferrovia resultou da colaboração de diversos engenheiros britânicos, entre os quais Robert Milligan, James Brunlees e Daniel Makinson Fox. As obras de implantação da estrada foram iniciadas em Santos em 1860. O trecho da Serra do Mar foi o mais difícil de ser executado, devido à alta declividade, que impunha um desnível de cerca de 800 metros a ser vencido em apenas 8 quilômetros, e à intensa pluviosidade, que provocava deslizamentos e a interrupção das obras e do tráfego ao longo da via.

O sistema de planos inclinados construído no trecho da Serra do Mar inaugurado em 1867 é conhecido como Primeiro Sistema Funicular ou “Serra Velha”. Neste sistema o declive total foi dividido em quatro planos inclinados, interligados por patamares. Em cada patamar foram instaladas máquinas a vapor fixas para tracionar os cabos de aço que interligavam as composições, movimentando-as em um sistema de contrapeso nos planos inclinados. As extremidades dos cabos de aço eram engatadas em vagões sem tração própria, os serrabreques, aos quais eram engatados os vagões para o transporte de cargas ou passageiros.

No final do século XIX a ferrovia já não atendia à demanda de transporte de mercadorias, sobretudo no trecho da Serra do Mar. A duplicação da linha, incluindo a construção do Segundo Sistema Funicular ou “Serra Nova”, foi concluída em 1901. As obras de ampliação e melhoramento da ferrovia e de suas instalações contemplaram a construção de novas estações, armazéns e oficinas, a ampliação de plataformas e a reconstrução da Estação da Luz. No Alto da Serra, estação estratégica para a operação do sistema funicular, foi elaborado e implantado um projeto de urbanização da vila operária. Atualmente, a Vila Ferroviária de Paranapiacaba, localizada no município de Santo André, é um conjunto urbano tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.

BNDigital: Lembrança de São Paulo, de Guilherme Gaensly. [Estado de São Paulo], de Frédéric Manuel


CENÁRIO TECNOLÓGICO FERROVIÁRIO

Centro Ferroviário da SPR , atual município de Santo André.  Paranapiacaba Antiga. 


Base de controle da SPR na Serra do Mar nos ano 1970. Wikipédia.




As pontes da Grota Funda, um trecho ferroviário na Serra do Mar construído pela S. Paulo Railway Company, no início do século XX.  Imagem: acervo do professor e pesquisador santista Francisco Carballa. Novo Milênio. 


Escoar a produção cafeeira ao porto exportador de Santos foi o principal desafio econômico do período imperial. Além das distâncias era preciso romper as barreiras geográficas do relevo, sobretudo da Serra do Mar, conhecido com um abismo quase que instransponível. Esse desafio natural foi rapidamente vencido pela tecnologia ferroviária europeia e também pelo financiamento público-privado. As ferrovias, através do escoamento da produção, também criaram um surto de urbanização no interior do estado através das linhas e de centenas de estações-patrimônio logo transformadas em pequenas cidades. Foram elas que conduziram, num processo inverso, o grande fluxos demográfico da Capital para o interior de centenas de milhares de migrantes e imigrantes.  Quase impossível pensar numa localidade sem as estações de trem e a regularidade do embarque de cargas e passageiros. Essa realidade impulsionada pelo transporte, que durou décadas, só seria mudada quando vieram as ferrovias e os aeroportos regionais. Mas sem as viagens ferroviárias primitivas nada, ou quase nada teria se transformado naquilo que existe hoje de mais moderno e avançado.

Trem funicular (tracionado por cabos) da Estrada de Ferro Santos-Jundiaí (EFSJ, ex-SPR) atravessando o trecho Grota Funda, na Serra do Mar. Foto publicada no perfil São Paulo Antiga, álbum Trânsito & Transporte em São Paulo, da rede social Facebook (acesso: 14/7/2013)






A SPR POR MARC FERREZ


Obras da Ferrovia São Paulo Railway. Fotografias de Marc Ferrez, c. 1870- 1880. Instituto Moreira Sales.

A São Paulo Railway inicia suas operações ligando Santos a São Paulo em 1865 e chegando a Jundiaí em 1867. No ano seguinte fazendeiros, capitalistas e grandes proprietários criaram uma nova empresa ferroviária – a Companhia Paulista de Estrada de Ferro, cujo objetivo inicial era ligar Jundiaí a Campinas. Os trilhos da ferrovia chegam a Campinas em 1872, Limeira em 1876, Rio Claro em 1884. Continuam sua expansão, através de construção e compra de outras companhias ferroviárias, ocupando uma enorme área do estado de São Paulo.  Seus trilhos percorriam milhares de quilômetros e chegavam nos limites do estado com Mato Grosso e Goiás, tendo incorporado, dentre outros, a Estrada de Ferro São Paulo Goiás, Estrada de Ferro Dourados, Estrada de Ferro Rio Claro.  Foram construídas em função dos interesses do café, caracterizando a clássica vinculação entre expansão cafeeira, ferrovia e urbanização. O trabalhador da ferrovia era preferencialmente brasileiro e com origem no estado de 
São Paulo. Quando estrangeiro basicamente português, sem distinção de ocupação por 
nacionalidade ( Brazil Imperial)



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Trecho em Cubatão  da linha São Paulo Railway em Cubatão.  Fotos e informações do Arquivo Público do Estado.

A estação Cubatão foi aberta em 1867, sendo uma das mais antigas da SPR. A estação Casqueiro, de 1896, era um posto telegráfico que permitia embarque e desembarque de passageiros até a década de 1960. Atualmente ambas estão desativadas. Fotos e informações do Arquivo Público do Estado.

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O PORTO DAS INDÚSTRIAS E DAS  RODOVIAS


EM 1908, A PRIMEIRA VIAGEM DE CARRO SP-SANTOS

Trajeto de 77 quilômetros foi completado em 36 horas e meia

Rose Saconi- Estadão -16/04/2013


No dia 16 de abril de 1908, quatro aventureiros, acompanhados do repórter do Estado Mário Cardim, levaram 36 horas e meia para atravessar, pela primeira vez num automóvel, o Caminho do Mar, entre São Paulo e Santos.

O incentivador da façanha foi o então esportista Antônio Prado Júnior, que mais tarde seria prefeito do Rio de Janeiro. No “raid”,como foi chamada a aventura, foram utilizados dois veículos: um Motobloc de 30 cavalos, de propriedade de Clóvis Glicério, e um Sizaire et Naudin, fabricado sob encomenda para Prado Júnior, que queria um carro alto para enfrentar à precária estrada que ligava São Paulo ao porto.

"Decididamente ousada iniciativa do dificílimo raid automobilístico Rio-S. Paulo. Se os caminhos estiverem em boas condições, os excursionistas pretendem chegar a Santos ao anoitecer de hoje", escreveu o Estado no dia da partida.




Caminho do Mar, 1920. SP Fotos Antigas. 

ESTRADA VELHA






















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 GRANDES  RODOVIAS CRUZANDO CUBATÃO

ANCHIETA, PIAÇAGUERA E IMIGRANTES


Acampamentos do D.E.R. na Serra do Mar. Para a construção da Via Anchieta, o Departamento de Estradas de Rodagem (D.E.R.) paulista contratou trabalhadores braçais, que instalou em acampamentos provisórios na encosta da Serra do Mar, dando origem aos chamados bairros-cotas. Esta matéria foi publicada no jornal O Estado de São Paulo em 11 de janeiro de 1945 (ortografia atualizada nesta transcrição - acesso em 17/10/2015):


Imagem originalmente publicada em 11 de janeiro de 1945. Reprodução parcial da página com a matéria. Novo Milênio. 

 

ACAMPAMENTOS DE TRABALHADORES NA SERRA DO MAR


As grandes obras em construção na Via Anchieta - Até o fim do ano será aberto o tráfego da Capital a Cubatão - Mourejam no alto e na raiz da Serra perto de 2 mil operários - O "arigó", tipo clássico do trabalhador de estradas - Rigorosa fiscalização dos preços de gêneros, oficialmente tabelados - Verificação de pesos em favor do operário - Carne verde a Cr$ 3,80 o quilo - Operários ganhando em média de Cr$ 2,80 por hora, a 10 horas de serviço por dia - Como os trabalhadores recebem seus salários - Assistência médica inteiramente gratuita - Onde uma escola é mantida simplesmente por amor à instrução

Quando for entregue ao tráfego a Via Anchieta, a grande artéria que o Governo de São Paulo, através do Departamento de Estradas de Rodagem, da Secretaria da Viação e Obras Públicas, está construindo entre o litoral e o planalto, poucos talvez se lembrarão da extraordinária história de trabalho, habilidade, coragem e perseverança que ali compõem, nos dias que correm, a inteligência e o braço brasileiro. A monumental rodovia atesta, por si só, pelo que já apresenta de construído, em construção ou em projeto, tudo quanto possui um povo de energia, engenho, arrojo e arte.

A despeito dos maiores obstáculos, consequentes à necessária economia ou carência de materiais e à falta de mão de obra numerosa e habilitada, desenrola-se dia a dia a gigantesca radial, deslizando na planície, serpeando pela serra, na ânsia de chegar ao mar. São largas faixas paralelas, inteiramente concretadas, que, vencendo o planalto, se elevam à crista dos morros ganhando os viadutos, ou se despenham grotões abaixo, varando compridos túneis, tudo na vertiginosa concretização de um dos mais audazes planos da engenharia paulista. Em alguns trechos, como no Alto da Serra, separam-se as vias geminadas, superpondo-se rapidamente uma à outra, para logo adiante se entrecruzarem e de novo se justaporem, seguindo a mesma reta.

Na Serra é que se constroem agora as grandes obras de arte, viadutos e túneis de vastas proporções. Trabalha-se para vencer um desnível de 700 metros, o que torna essas as maiores obras do mundo, só havendo que se lhe assemelhe nos Estados Unidos, onde uma grande rodovia foi lançada a 300 metros de desnível.

O trabalho é intenso e variado. Transitam centenas de caminhões, carregando materiais, operários que pavimentam um trecho da via; outros que britam pedras a masseto ou arrebentam rochas a picareta; outros ainda que escavam e cortam morros, ou lhes perfuram com brocas elétricas as entranhas de pedra para a abertura de túneis.

Com todo o trabalho, já se registrou até hoje um movimento de terra de 2 milhões de metros cúbicos. E embora haja ainda importantes obras para muito tempo, já se pode anunciar que, segundo prognósticos dos técnicos, ao cabo de um ano, ou mais precisamente, lá por setembro ou outubro, a monumental Via Anchieta passará a servir integralmente o Estado, da Capital até Cubatão.

A organização do trabalho na Via Anchieta - Quando se iniciou a construção da Via Anchieta, o contrato de trabalhadores era feito por empreiteiras ou empresas particulares, que os recrutavam e destinavam àquele local, de acordo com as necessidades do serviço. De uns meses para cá, passaram os operários a ser ajustados diretamente pelo Departamento de E. de Rodagem, suprimindo-se o agenciamento, o que permitiu uma economia mensal de cerca de 40 mil cruzeiros em favor do erário estadual.

Foi esta uma medida de todo o ponto benéfica, pois a apresentação, agora espontânea, de trabalhadores, aumentou extraordinariamente, deixando mesmo certa margem para seleção de elementos. Assim, pode o DER concentrar na serra e no planalto, em pouco tempo, considerável contingente de operários, tão certo é que em toda grande obra de qualquer parte do mundo a boa mão de obra raramente corresponde, em número e qualidade, às exigências de técnica e rapidez do serviço.

Contratados diretamente pelo DER, empregam-se ali mais de 1.200 operários - cavouqueiros, britadores, carpinteiros, pedreiros, ferreiros, mecânicos, motoristas, eletricistas, encanadores, soldadores e outros que, somados aos 600 ou mais de empreita particular, formam com suas famílias uma população calculada de 5 mil almas, disseminadas pela serra e na planície.

A habitação e o homem - Nas encostas dos morros, ou lá embaixo, nos plainos, ao sopé da Serra do Mar, estendem-se os acampamentos dos trabalhadores da Via Anchieta. São vários agrupamentos de casas, na maioria construídas de pau a pique, barro socado e cobertas de sapé, outras de tábuas e telhadas, distinguindo-se numerosas pintadas de branco, onde residem os operários do DER. As demais pertencem às turmas dos empreiteiros.

Casinhas singelas, de fácil levantamento e desmontagem, como convém a populações instáveis, que são em geral os trabalhadores de rodovias ou ferrovias. Algumas providas de luz elétrica e água encanada, todas porém de perfeita segurança e limpeza.

Os homens que as habitam são homens de todas as regiões do Brasil e também de outras nacionalidades. Elementos vigorosos, membrudos, pés de boi, de face acobreada, labutando de peito aberto, de sol a sol, há todavia um dentre eles que sobressai por suas comprovadas virtudes de disciplina e tenacidade, é o patrício do sul de Minas, vulgarmente cognominado "arigó", tipo clássico de trabalhador de estradas que, calma, porém energicamente, leva de vencida as mais duras tarefas, acatando as ordens superiores sem respingar ou recalcitrar em ocasião alguma.

O ganho e a subsistência - Os operários percebem pelos dias ou horas que trabalham durante o mês. Assim, um deles, britador de lajes, com quem se entrevistou o repórter da Agência Nacional, que vence Cr$ 2,80 por hora, a 10 horas de serviços por dia. É mais ou menos essa importância que em geral ganham os trabalhadores braçais.

Os apontadores fornecem duas vezes por semana, como adiantamento, "vales" aos operários, correspondentes a 70% do seu saldo, "vales" estes que, apresentados por seu portador nos escritórios do DER, à raiz da Serra, se convertem em dinheiro. Como os operários são na maioria analfabetos, adotaram os engenheiros-chefes um curioso e inteligente expediente de identificação, qual seja o da impressão digital de cada trabalhador aposta ao respectivo documento. Sendo estes documentos verdadeiros cheques ao portador, conferem também ao operário o direito de adquirir com eles, nas farmácias e armazéns fornecedores, o que necessita em medicamentos, gêneros e outros artigos e objetos, tanto que se denominam "vales de arranchamento". Constituem, além do mais, meio prático de abastecimento e pagamento de saldos em favor do empregado.

Em virtude da transferência dos serviços de agenciamento de trabalhadores diretamente para o DER que, conforme acima se disse, de há algum tempo os ajusta sem intermediários, ocorreu, como era natural, certo atraso no pagamento de salários, a contar de três meses a esta parte, surgiu a ideia dos adiantamentos com o auxílio dos referidos vales, à vista dos quais pode o trabalhador embolsar 70% dos seus saldos, dispondo nos escritórios do DER dos restantes 30%R, importância que lhe será integralmente paga uma vez elaborada a folha mensal de pagamento.

Quando se admite um trabalhador que não tenha com que viver, recebe ele desses vales, por conta do futuro saldo, podendo assim obter nas casas fornecedoras tudo quanto precisa para instalar-se, vestir-se e alimentar-se, a si e à sua família.

Os vales têm curso livre em todo o pequeno comércio local, de Cubatão ao Alto da Serra, representando dinheiro em estado potencial, já que em tanto se transformam, quando assim o deseje o seu portador.
Rigorosa verificação de pesos e fiscalização de preços - Dispõem os trabalhadores, para seu abastecimento, de seis ou mais armazéns, de propriedade particular, que ali se estabeleceram de livre iniciativa. Provas de idoneidade comercial são exigidas dos negociantes, que devem ainda submeter-se ao regime de controle de pesos posto em vigor pelos engenheiros-chefes do DER.

A esta altura é de toda a justiça destacar a real probidade, o zelo extremo demonstrados por estes ilustres técnicos, na permanente defesa dos interesses de seus subordinados, que contam neles verdadeiros amigos velando por seu bem-estar e, principalmente, pela integridade de suas finanças.
Despendem eles, devotadamente, tempo precioso na organização e fiscalização de abastecimento, não raro em prejuízo de seus misteres de ordem técnica, pois nada lhes distrai o honesto e rígido propósito de prover os trabalhadores e suas famílias de tudo, e a preços estritamente legais. Das dificuldades e contratempos inerentes ao abastecimento do pessoal terá ideia aproximada quem se dispuser a figurar uma cidade de uns 5 mil habitantes cuja subsistência fosse diariamente assegurada mediante providências diretas e exclusivas do prefeito e seus auxiliares imediatos.
Tal sucede na Via Anchieta.

Os preços das mercadorias pautam-se exatamente pela tabela oficial, que é a que vigora em Santos. Cada armazém é obrigado a afixá-la, para que o comprador confira o custo dos gêneros. Esta tabela é periodicamente alterada, segundo as oscilações de preços ocorrentes no mercado, mantendo-se inteiramente atualizada.

Faz-se também o controle da observância da tabela, por intermédio de um fiscal idôneo, designado pelo DER. A fim de coibir qualquer fraude na pesagem dos mantimentos, tiveram os engenheiros do DER a cautelosa iniciativa de instalar a alguns passos de cada armazém uma balança, aonde os trabalhadores, deixando a venda, vão, querendo, a conferir o peso das mercadorias compradas. O conferente de pesos é em geral um acidentado ou convalescente, reaproveitado temporária ou definitivamente nesse serviço, em que não aplica senão muita atenção e escrúpulo. Os negociantes apanhados em infração de preços ou pesos são seriamente admoestados, sendo-lhes na reincidência sumariamente fechadas as portas de seus armazéns.

Uma breve amostra da saudável severidade com que se exerce esta fiscalização e se obriga ao cumprimento de acordos para fornecimento de gêneros está em casos como o de um comerciante que, a pesar seu, teve de vender pelo preço tabelado certo artigo que comprara em alta, e ainda num acordo feito com certo marchante. Este se comprometera a fornecer aos armazéns carne verde à razão de Cr$ 3,50 o quilo para ser revendida aos trabalhadores a Cr$ 3,80, que é o preço em vigor. Em dado momento se desinteressara do negócio, alegando encarecimento do produto. Pediu dispensa. Não concordaram os engenheiros, considerando que a carne é elemento indispensável ao trabalhador braçal e o seu consumo estava sendo sustentado unicamente por aquele fornecedor. O homem não teve outra saída senão honrar o acordo até o fim...

Assistência médica inteiramente gratuita - Em defesa do padrão sanitário de seus trabalhadores, o DER instalou no dorso da Serra dois hospitais: um especializado no tratamento da malária e o outro, para clínica geral. Uma vez ajustado, é o operário examinado pelos médicos do Serviço de Malária, exame este destinado a averiguar se não se trata de um portador de impaludismo.

Com as medidas profiláticas postas em vigor, arrefeceu sensivelmente o surto malárico na região. E graças à eficácia do tratamento, não se verificou, desde o início das obras, nenhum caso fatal.
Como nos dias de chuva, em que não trabalha e ganha a importância equivalente a cinco horas de serviço, percebe o trabalhador, nos casos de doença, paga igual. Estes auxílios ele os recebe durante todo o período de tratamento, que é, ademais, inteiramente gratuito.

Os acidentados são prontamente hospitalizados, sendo as indenizações efetuadas de acordo com a lei. O seu reaproveitamento, quando se trata de acidentes que os incapacitem para o mesmo serviço, faz-se em outras tarefas, para as quais estejam aptos. Aliás, este capítulo do trabalho jamais defrontou sérios problemas aos engenheiros do DER. Em vista da grande precaução e habilidade na execução das obras, reduzem-se ao mínimo as possibilidades de risco, sendo raríssimos os acidentes graves.

Uma escola mantida por amor à instrução - Não descurando do bem-estar material, cuidam ainda os engenheiros de amparar as necessidades espirituais da não pequena população infantil que se conta entre os trabalhadores e suas famílias. Assim, apoiaram entusiasticamente uma iniciativa dos empreiteiros, para se cotizarem no sentido de fundar e manter uma escola primária destinada às crianças da Via Anchieta. Foi assim estabelecida a escola e contratada uma professora, cuja remuneração é assegurada pelo rateio mensal feito entre os empreiteiros, engenheiros e funcionários do DER, iniciando-se imediatamente as aulas.

No próximo ano letivo, deverá a escola funcionar numa sala especialmente construída no Alto da Serra, em local mais ou menos equidistante das casas dos alunos. De funcionamento regular, observa o regime escolar em vigor no Estado, tanto que no dia em que lá esteve a reportagem da Agência Nacional - época de férias - achava-se fechada, para o regulamentar descanso semestral dos alunos e da professora.
É tal o interesse dos engenheiros pela alfabetização das crianças que tudo facilitam para que possam elas diariamente assistir às aulas. Além da condução que asseguram à professora, muitas vezes, em dias de chuva, transportam nas suas camionetes alunos que moram em pontos mais retirados. Há outra circunstância demonstrativa desta notória boa vontade: é o seu esforço em empregar nas obras próximas à escola os chefes de família com filhos ali matriculados.

Contam porém as crianças com outra unidade de ensino primário para a sua instrução. É o Grupo Escolar de Cubatão, a dois ou três quilômetros da Serra.

As autoridades do ensino, evidentemente, não deixarão de ponderar a conveniência de criação de novas unidades escolares nos acampamentos da Via Anchieta, hoje habitados por cerca de cinco mil almas, entre trabalhadores, suas famílias e agregados.

O que hoje se faz ali nesse sentido é fruto de uma compreensão verdadeiramente humana e patriótica do dever de se valorizar a criança brasileira pela educação, qualquer que seja a sua condição ou índole.



A Rodovia Anchieta ou anteriormente Via Anchieta (SP-150). Foi autorizada em lei em 4 de janeiro de 1929 pelo presidente de São Paulo Júlio Prestes e iniciada em 1939 pelo interventor Adhemar Pereira de Barros e por ele concluída, quando governador do estado, em 1947.




Posto Fiscal Rodoviário - Cubatão - Anos 1940. Paulista Paulistano.


Operários da construção da Via Anchieta entre os anos 1930e 1940.  Muitos deles permaneceram como moradores serranos nos chamados Bairros Cota, existentes até hoje.


Vista sobre o traçado da Via Anchieta - Trecho da serra, provável anos 1960. Paulista Paulistano. 


Cartão postal dos anos 1960. Acervo: Claudio Sterque. -Historiador PG. 



A Rodovia Piaçaguera-Guarujá (atual Cônego Domênico Rangoni) foi construída na década de 1970, visando desafogar as já velhas e desgastadas balsas que faziam a travessia Santos-Guarujá. Ligando o continente à Ilha de Santo Amaro ou Guarujá. Possui cerca de trinta quilômetros de extensão, têm um túnel denominado "Túnel dos Quilombos". Começa na Rodovia dos Imigrantes, e serpenteia o complexo petroquímico de Cubatão, passando pela COSIPA (atual USIMINAS), Braskem, Unipar Carbocloro e outras Indústrias do Vale do Rio Cubatão.


A Rodovia dos Imigrantes (SP-160). Possui 44 viadutos, 7 pontes e 14 túneis, em 58,5 km de extensão, de São Paulo a Praia Grande, no litoral sul. É a principal via de acesso da cidade de São Paulo à Baixada Santista e ao litoral sul, possuindo tráfego intenso de veículos principalmente durante o verão e em feriados. Integra o complexo denominado Sistema Anchieta-Imigrantes, composto também pelas rodovias Anchieta, Padre Manuel da Nóbrega e Cônego Domenico Rangoni.

Em 23 de janeiro de 1974 foi lançada a pedra fundamental da rodovia que seria inaugurada com sua primeira pista no trecho de serra, a ascendente. Durante a construção desta pista, os engenheiros perceberam vários problemas que inviabilizavam o projeto inicial de três pistas paralelas: a proximidade com as encostas havia criado problemas de deslizamentos de terra, com altos custos de obras de contenção e de pequenos túneis, e de que a geografia das outras duas pistas seria ainda mais complicada.

Em 1974, surge a ideia de construir as pistas descendente e reversível como superpostas, basicamente com a pista reversível sendo construída em cima da pista descendente.[2] As duas pistas contariam com túneis mais longos (seriam 5.438 metros de túneis, com o maior deles tendo 3.200 metros de extensão). A ideia logo seria abandonada porque se constataria que pistas colaterais permitiriam uma diminuição dos custos, aumento da segurança operacional ao permitir a ligação das duas pistas. Com sérias limitações orçamentárias, o DERSA deixa os projetos tanto da pista reversível quanto da pista descendente de lado. A pista ascendente passa a ser operada de forma reversível, com o sentido sendo revertido de acordo com as demandas de tráfego. A construção da pista ascendente, inaugurada em 28 de junho de 1976, teria usado cem engenheiros e treze mil operários.



Jardineira que fazia a linha Cubatão X Santos parada próxima ao Cruzeiro Quinhentista, entre as décadas de 1920 e 1930. Cubatão Antigamente. 


INDO TRABALHAR EM CUBATÃO, PELOS RIOS



NOVO MILÊNIO. A ligação aquática de Cubatão com o Oceano Atlântico é feita pelo Canal de Piaçaguera, que comunica a região de Piaçaguera, onde estão indústrias como a Companhia Siderúrgica Paulista (Cosipa) e o Estuário do porto de Santos. Graças a esse canal, mesmo navios de grande porte e longo curso, como os usados no transporte internacional de cargas, alcançam o porto da Cosipa que - mesmo pequeno em extensão - consegue se situar entre os dez maiores do Brasil em tonelagem de carga movimentada. Mas, só em 18 de fevereiro de 1982 o Canal de Piaçaguera recebeu sinalização que permitisse a navegação noturna segura. Esse momento foi acompanhado pelo editor de Novo Milênio, então na condição de jornalista responsável pelo caderno Marinha Mercante em Todo o Mundo, publicado semanalmente no jornal O Estado de São Paulo. Este é o relato, extraído da edição de 23 de fevereiro de 1982:


No caminho, comodidades, como televisão a cores, cantina, banca de jornais, som ambiente, campeonatos de xadrez e dominó...

Todo dia, centenas de ônibus deixam Santos, São Vicente, o ABC paulista e outras cidades com destino ao pólo industrial de Cubatão, levando os trabalhadores que não residem neste município. No final do turno, grande movimentação ocorre no sentido inverso, nas principais rodovias que cortam Cubatão.

Mas já houve um tempo em que muitos desses trabalhadores usavam a ferrovia e até o sistema hidroviário para tais deslocamentos, racionalizando o uso dos meios de transporte na região. Era uma época em que se discutia muito o uso da navegação costeira (a chamada navegação de cabotagem) como forma de diminuir o gasto nacional do caro petróleo importado.

No início da década de 1980, o assunto preocupava os dirigentes da Companhia Siderúrgica Paulista (Cosipa), que por diversas vezes promoveram seminários para debater a questão, como acompanhou o editor de Novo Milênio, então responsável pela edição do caderno semanal Marinha Mercante em Todo o Mundo no jornal O Estado de São Paulo, que registrou, em 29 de junho de 1982:


CABOTAGEM É VIÁVEL

Acidente na SP-55 e ferrovia reforça tese de integração dos transportes na Cosipa

Na chamada "Rodovia da Morte", a estrada paulista Cubatão-Guarujá, ocorreram em 1980, com a passagem de 29.599 veículos, 416 acidentes; em 1981, passando 25.556 veículos, ocorreram 419 acidentes, e neste ano, segundo estatísticas do Departamento de Estradas de Rodagem, até abril, haviam passado 19.197 veículos, com 127 acidentes (de que resultaram 10 mortos e 109 feridos).

Na quinta-feira passada, uma composição ferroviária com sete vagões vazios tipo gaiola era manobrada pela Rede Ferroviária Federal, no ramal de Piaçagüera, defronte à Cosipa, quando um dos vagões descarrilou, atingindo uma pilastra de sustentação do viaduto da pista Cubatão-Guarujá. Com isso, ficou interrompido por quase 24 horas o tráfego rodoferroviário no trecho, causando grandes congestionamentos de veículos e vagões, até a pilastra ser reforçada com tubos metálicos de sustentação.

O acidente foi utilizado pela Cosipa - que tinha programado para a sexta-feira uma demonstração à imprensa do funcionamento do sistema de transporte integrado de seus funcionários entre a residência e o local de trabalho - como forma de comprovar a importância e eficiência do sistema. E isso no momento em que se lembrava o acidente rodoviário ali ocorrido, cinco anos atrás, num dia 28 de junho, quando 13 funcionários da Cosipa foram tragicamente envolvidos.

Planos de mudança - Apesar da resistência verificada na área sindical (o sindicato dos metalúrgicos de Santos contesta o direito da Cosipa de alterar o sistema de transporte), a siderúrgica tem planos para mudança radical nos percentuais de transporte rodoviário, ferroviário e hidroviário.

Tendo apresentado em dezembro de 1980 um perfil que atribuía a esses modos de transporte respectivamente 86%, 13% e 1%, a Cosipa passou à proporção de respectivamente 67%, 20% e 13%, mas pretende no final deste ano atingir a meta final de 12% de transporte rodoviário, contra 61% de transporte ferroviário e 27% do hidroviário. Para o futuro, a tendência seria equilibrar em 40 e 45% a demanda pelos modos ferroviário e hidroviário.

Dois fatores estão determinando essas mudanças: a economia de combustível e principalmente a insegurança do trânsito pela rodovia Cubatão-Guarujá. Os técnicos da Cosipa exemplificam: se o acidente do dia 24/25 tivesse ocorrido cinco anos atrás, a empresa teria enorme prejuízo quanto ao abastecimento de insumos e matérias-primas e escoamento da produção, além do problema do transporte dos funcionários. Todavia, recebendo e escoando grande parte dos produtos por via marítima, e já possuindo o sistema hidroviário para transportar funcionários, foi possível reduzir sensivelmente os transtornos causados pelo acidente.

Pioneirismo - A introdução no Brasil do conceito de integração em termos de transporte de passageiros é relativamente nova e foi pela primeira vez implantada no País com a inauguração das diversas linhas de integração metrô-ônibus na capital paulista. Depois, na administração Jaime Lerner, foi introduzida em Curitiba a integração ônibus-ônibus, para atender a pontos mais distantes daquela capital: um ônibus de periferia deixa os passageiros num determinado ponto, onde são reembarcados em ônibus das linhas que servem a área central de Curitiba. Porém, a Companhia Siderúrgica Paulista (Cosipa) é a primeira empresa do País a adotar a integração para o transporte de seus funcionários da residência até o local de trabalho, na usina.

Enquanto desenvolve essa integração no setor de cargas, racionalizando as formas de transporte dos insumos e dos produtos finais (com a criação dos terminais rodoferroviários de Utinga, Araraquara e Campinas, no Estado de Sâo Paulo, e o desenvolvimento do transporte pela cabotagem), a Cosipa vem promovendo a utilização plena dos equipamentos de transporte de massa da região, estimulando cada vez mais o uso dos sistemas de integração ônibus-ferrovia e ônibus-hidrovia.

A integração ônibus-ferrovia começou a 4 de dezembro de 1980 na ligação Vicente de Carvalho-usina e a 5 de outubro de 1981 com a extensão do serviço a Santos. Vem sendo utilizada a barca Paicará, do Departamento Hidroviário da Secretaria Estadual dos Transportes, em duas viagens diárias, saindo às 6h25 do distrito de Vicente de Carvalho (Guarujá), passando às 6h40 no Valongo e chegando à usina às 7h10. No retorno, deixa a usina às 17h05, passa no Valongo às 17h35 e atinge Vicente de Carvalho às 17h45, navegando sempre pelo Canal de Piaçagüera, que liga o terminal portuário privativo da usina ao estuário do porto de Santos.

A barca tem capacidade para 549 passageiros sentados e cerca de 450 em pé, totalizando mil pessoas. Conta com diversas comodidades, como televisão a cores, cantina, banca de jornais, som ambiente, sendo inclusive organizados campeonatos de xadrez e dominó durante as viagens. Para facilitar a navegação, conta com diversos instrumentos, como radar, ecobatímetro, e equipamento de radiocomunicação direta com a sede da usina, além de duplo casco.

Quando foi iniciada a integração, destinava-se apenas ao horário administrativo, tanto no caso da hidrovia como no dos trens, permanecendo o ônibus direto para o pessoal de turno. Agora, a Cosipa quer incrementar o uso, atendendo também ao pessoal de turno, com a criação de horários noturnos. Porém, dependerá da colocação em tráfego de novas embarcações, o que vem sendo estudado em conjunto com o Departamento Hidroviário. Contam os técnicos que a barca já tem hoje uma demanda reprimida, o mesmo ocorrendo com o trem húngaro utilizado entre a estação ferroviária do Valongo, em Santos, e a sede da usina (e que faz esse trajeto em 16 minutos).

Quando foi iniciada a integração ônibus-barca, em Vicente de Carvalho, eram usadas três linhas de ônibus de integração. Hoje, são quatro naquele distrito e mais 12 em Santos. Também, o sistema começou em 1980, com 163 inscritos, passando para 361 inscritos em 1981 e chegando a 942 inscritos no início deste ano. Em maio, indicava entretanto 895 inscritos.

Já o sistema ferroviário conta com um trem expresso comunitário (usado também por passageiros normais, não-funcionários da Cosipa) que sai às 5h40 da capital paulista e chega exatamente às 7h18 à usina. Ao anoitecer, sai ás 17h06 da usina e retorna à Capital às 18h33. Conta com 180 passageiros inscritos pela Cosipa e é complementado por integração metrô-ônibus.

Na ligação com Santos, a Cosipa utiliza um trem húngaro especial e um trem de aço (comunitário), sendo que, de acordo com dados de maio, estavam inscritos no trem de aço 795 funcionários e no trem húngaro 6.615. Estão em testes cinco litorinas (automotrizes) da Rede Ferroviária Federal que, se aprovadas, serão reformadas pela Cosipa para uso na linha Cubatão-Santos.

Quanto ao transporte rodoviário, que contava com 6.059 inscritos no setor administrativo e 7.037 inscritos no pessoal de turno em 1980, apresentou sensível declínio, registrando em maio passado, respectivamente, 4.937 e 6.606 inscritos.

A empresa pretende manter os ônibus apenas no complemento à ferrovia e à hidrovia, onde elas não podem atingir, como no caso do transporte dos trabalhadores residentes em Praia Grande. Porém, explicam os técnicos, o serviço é opcional, sem o sentido da imposição do sistema aos trabalhadores. Logicamente, a maioria vence, mas, se houver minoria, no final, esta deverá aceitar a vontade dos demais. Os representantes da siderúrgica concluem que, tecnicamente, a solução integrada é a melhor, como vem sendo explicado aos funcionários, tanto pela segurança e confiabilidade no sistema (já que a Baixada Santista é bem dotada de malha ferroviária e hidroviária) como por permitir sensível economia de combustível, importante para o País.


 A então rede ferroviária Santos-Jundiaí, transportando na década de 60, operários da antiga COSIPA da estação de Santos até a Estação de Piassaguera. Imagem e nota publicados pelo Instituto Histórico e Geográfico de São Vicente. 12 de novembro de 2019.



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CUBATÃO, UMA HISTÓRIA MUITO ANTIGA


MANUEL ALVES FERNANDES



"Projeto frustrado de ponte com arco duplo sobre o rio Cubatão, que vergou antes mesmo de sua entrega, em 1935". Cubatão Antigamente.



Suplemento especial comemorativo do 44º aniversário de Cubatão, publicado com o jornal santista A Tribuna em 9 de abril de 1993:


Os primeiros habitantes de Cubatão viveram na região de mangues que se estende desde a base da Serra até as pequenas ilhotas próximas ao mar, há cinco mil anos. A temperatura desses mangues é variável; e a umidade relativa do ar elevada, superior a 80%. O clima se apresenta quente e úmido, com características de forte tropicalidade.

Os restos mortais dos primeiros habitantes foram encontrados pelos colonizadores, que chegaram ao Brasil em caravelas e aportaram em Cubatão, na altura da Cosipa, em 1532.

No meio de milhares de conchas, os portugueses descobriram ossos, pontas de flechas, dentes, esqueletos. Séculos depois, pesquisadores da Universidade de São Paulo concluíram que, na Ilha dos Amores, na área hoje pertencente à usina siderúrgica, e na encosta do morro de Cotia Pará (entre o Caminho Dois e a Vila Natal), existiam alguns dos mais ricos sambaquis do litoral brasileiro.

Antepassados dos índios que, em companhia de João Ramalho, casado com a índia Bartira, recepcionaram Martim Afonso de Souza em Cubatão, esses botocudos desciam a Serra do Mar, onde a temperatura é mais amena, para se alimentarem da abundância de espécimes, de caranguejos e mariscos, que viviam nos mangues, formados pelos 177 quilômetros das bacias do que hoje são o Rio Cubatão, Casqueiro, Perequê, Piaçagüera, Mogi, Pilões, Cascalho, Paranhos, Santana e Vapevu.

Cubatão é mais água do que solo. Geograficamente, entre mangues e serras, tem apenas 148 quilômetros quadrados, contra os 177 quilômetros quadrados de rios e lagamares. Seu ponto mais alto está no topo dos 700 metros da Serra do Mar, cuja vegetação luxuriante foi encontrada por Martim Afonso, ao chegar ao primitivo núcleo do Porto de Santa Cruz, ou das Almadias, conforme pintura do Jean Luciano, que hoje faz parte do acervo municipal e está instalada na ante-sala do gabinete do prefeito.

Martim Afonso concedeu a Rui Pinto as terras da sesmaria que, anos mais tarde, seriam conhecidas como a Fazenda Geral dos Jesuítas e o Porto Geral de Cubatão, instalado ao pé da serra, cuja estrada levava, com muitas dificuldades, ao planalto.

Tropeiros faziam pouso na beira do rio, onde as mulas descansavam do rude caminho de subida e descida. Mulas ou jegues fazem parte do progresso de Cubatão. Nas noites frias, os tropeiros acendiam fogueiras e faziam rodas de batuques.

Eram tempos difíceis. Em 1585, o padre Fernão Cardim gastou quatro dias de viagem entre o Planalto de São Paulo de Piratininga e São Vicente, sede da capitania. A viagem, que hoje é feita em menos de uma hora, exigia preparo físico notável e grande coragem. Os homens subiam agarrados às raízes, e por vezes topavam com animais ferozes e índios pouco amistosos.

Para acabar com esses tormentos, conforme conta a historiadora Inez Garbuio Peralta, Bernardo José Maria de Lorena, governador da capitania, mandou buscar, em Lisboa, técnicos especializados em construir estradas, para abrir e pavimentar o caminho de São Paulo a Santos, através da serra.

Os trabalhos foram iniciados em 1790, sob a supervisão do engenheiro João da Costa Ferreira. Contam as lendas que os engenheiros aliaram a alta tecnologia da Real Academia Militar de Lisboa à sabedoria do reino animal. Para descobrir o melhor traçado, soltaram uma tropa de mulas no alto da serra. E seguiram a trilha dos muares, que, por segurança, procuravam sempre a crista dos morros, de forma segura e sem cruzar rios. O curto traçado (menos de seis quilômetros no trecho serrano) ficou pronto em menos de um ano, gastando-se outro no prolongamento do caminho na Baixada, até o rio e até a entrada de São Paulo.

Em 1792, a Calçada do Lorena estava pronta e em uso, permitindo o desenvolvimento do Planalto e o aumento do comércio e movimento de pessoas entre o Porto de Santos e São Paulo.

Embora a Estrada Velha do Caminho do Mar ainda permaneça fechada ao tráfego, quem subir a serra a pé poderá encontrar as ruínas (em parte restauradas pela Eletropaulo em um projeto cultural notável) da Calçada da Lorena, a partir do Arco do Lorena, monumento construído em 1922 pelo então governador da Província do Estado de São Paulo, Washington Luiz de Souza. Também fazem parte desse conjunto de monumentos o Rancho da Maioridade e o Pouso de Paranapiacaba.


Aterrado de Cubatão. Revista Kosmos. 5 de maio de 1904. Novo Milênio. 




No final do século XVIII, o crescimento do Porto de Santos e de São Paulo de Piratininga esbarrava nas más condições e na insuficiência de espaço da Calçada do Lorena. Além disso, o transporte da mercadoria pelo largo do Caneú e porto de Cubatão era moroso. A Câmara de Itu propôs a ligação terrestre pelo manguezal, ganhando o apoio dos comerciantes de Santos.

Antônio Manoel de Melo Castro e Mendonça, governador geral da Capitania de São Paulo, resolveu enfrentar o desafio, em 1825, três anos depois que o então príncipe D. Pedro subiu a serra (no lombo de um jegue, pela Calçada do Lorena, no dia 7 de setembro) para proclamar a Independência do Brasil, nas margens do Riacho Ipiranga.

Inez Peralta afirma que muito sofrimento, doenças, mortes, deserção de mão-de-obra, discussões e desentendimentos entre autoridades marcaram essa construção. A mão-de-obra, inicialmente escrava, foi substituída pela de imigrantes. O aterrado ficou pronto em fevereiro de 1827.

"Foi uma obra grandiosa e grandioso o povo que a realizou. Quem passa hoje pela estrada Cubatão a Santos (formada pelas avenidas Nove de Abril, Tancredo Neves e Via Bandeirantes) não imagina o quanto de heroísmo e garra está presente em todo esse percurso", assinala Inez Garbuio Peralta.

Nessa época, Cubatão deixava de ser um pouso de tropeiros e um porto de barcaças. Há tempos já se tornara a Fazenda Geral dos Jesuítas, que tinham também o direito de explorar a navegação do Rio Cubatão, cuja renda se destinava à manutenção dos colégios desses religiosos.

A expulsão dos jesuítas pelo Marquês de Pombal, em 1759, obrigou a passagem dos serviços para particulares.

Foi instalado então, no Porto Geral de Cubatão, um posto alfandegário. Um oficial registrava todo o tráfego que passava por Cubatão, desde pessoas e animais até mercadorias. Pagava-se pedágio.

Afonso Schmidt conta na sua obra O Assalto o despovoamento da Baixada Santista e do Planalto, porque quase todos corriam para o Interior, no início do século XIX, em busca de ouro nos rios e minas.

De São Vicente e de São Paulo, saíram os bandeirantes em busca de riqueza, abandonando o plantio de açúcar. Foi o começo da decadência de muitas povoações, e o surgimento de outras.

Em 1803, Franca e Horta convida famílias dos Açores para povoarem Cubatão. Na primeira década do século XIX, conforme Inez Peralta, chegam a Cubatão cinco famílias açorianas do núcleo de adaptação de Casa Branca: "Vieram para Cubatão os cinco Manoéis: Manoel Antônio Machado, Manoel do Conde, Manoel Espíndola Bitencourt, Manoel Raposo e Manoel Correia. Dedicaram-se à agricultura de subsistência".

Nasceu então o hábito do cultivo da cana, das mexericas e, principalmente, das bananas. Já no início do século XX, Cubatão chegou a exportar banana para a Argentina.

Mas foi a construção da Estrada da Maioridade (depois conhecida como Estrada Velha) que permitiu alavancar o progresso, abrindo espaço para o tráfego de diligências.

Não fossem as armadilhas econômicas do destino e os interesses políticos, Cubatão estaria comemorando hoje (N.E.: 1993) 160 anos de autonomia administrativa. O brasão do Município estampa entre as folhas de bananeira uma faixa com duas datas: 1833 e 1949.

Por ato do conselho de regência e em nome do imperador D. Pedro II (então uma criança), Cubatão foi elevado à condição de povoação conforme a Lei nº 24, de 12 de agosto de 1833. A historiadora Inez Garbuio Peralta revela que, na primeira metade do século XIX, São Paulo já estava refeita da crise sofrida com a corrida do ouro. E Cubatão também florescia. Na sessão de 17 de abril de 1833, o Senado do Império aprovou a proposta para elevação de Cubatão a Município, desmembrando parte do território antes pertencente à capitania e depois Vila de São Vicente.

Por ordem da regência, da Fazenda Nacional de Cubatão de Santos, na Província de São Paulo, foi separado o terreno de meia légua em quadra, que servia de pastagem pública, para a fundação de uma povoação. Conforme a historiadora, o centro de Cubatão, que ficava nas margens do Rio Cubatão, onde hoje está a Praça Coronel Montenegro, em frente à Estireno, passou a se deslocar para a atual Avenida Nove de Abril, próximo à Matriz.

Mas o "promissor desenvolvimento da década de 1820 e início da década de 30 não atingiu o grau que previa. Por isso, o Município não chegou sequer a ser instalado. Mais uma vez a situação não lhe foi favorável". Em 1º de março de 1841, pela Lei Provincial nº 167, Cubatão foi incorporado a Santos. Peralta não acredita que essa incorporação foi ditada pela decadência do Município. Para ela, foi originada de interesses de políticos de Santos.


Em 1925, o Caminho do Mar foi pavimentado em concreto. Foto: Arquivo/Agência Estado - São Paulo/SP


Cinco anos depois, em 9 de abril de 1998, em outro suplemento especial editado para comemorar os 49 anos do município de Cubatão, o mesmo jornal A Tribuna retomou o tema:


CINCO MIL ANOS DE CONTRASTES SOCIAIS

"Como mostra este mapa, os Tupí, cuja terra natal original era possivelmente em torno do rio Madeira, no oeste do Brasil, migraram por toda a planície da América do Sul, chegando até mesmo ao Oceano Atlântico (Loukotka 1929; https://tiny.one/migration ).


As tribos de índios tupinambás deixaram marcas de sua presença nas terras da região

Um turista demora de 50 minutos a três horas para vir do Centro de Cubatão às praias da Baixada, conforme as condições de tráfego nas estradas. Mas, já houve progressos. Há cinco mil anos, o tempo gasto era de dois a três dias.

Os principais homens a deixar sinais da sua presença em Cubatão foram tribos nômades de tupinambás, antepassados dos índios que o lusitano e desgarrado João Ramalho encontrou no Planalto Paulista, por volta de 1520.

Tal como os paulistas que descem pela Rodovia dos Imigrantes, sujeitando-se aos demorados congestionamentos, seus antepassados, os índios tupinambás, migravam para a Baixada para dedicar-se à colheita de coleta (comiam o que a natureza dava), à pesca nos mangues e à caça nas matas.

Só que não desciam no verão. Partiam para a caça e pesca, nos meses de inverno, quando escasseavam as frutas no planalto.

Como se sabe da existência deles?

Deixaram marcas mais do que evidentes ali onde hoje fica a Cosipa: arcos, pontas de flechas, utensílios rudimentares e o seu próprio esqueleto, misturado e conservado pelas milhares de conchas de mariscos que se davam ao trabalho apenas de pegar, cozinhar e comer, tamanha a abundância e a generosidade da vida marinha na época.

Mesmo mangue - Essa mistura calcária garantiu a preservação. Cinco mil anos depois, foram descobertos por antropólogos que deram a essas pequenas acumulações de conchas, ossos humanos e de animais, o nome de sambaquis. O mais famoso deles fica na antiga Ilha dos Amores, uma área situada dentro da Cosipa e que é preservada pela Universidade de São Paulo (USP). Outra área demarcada, mas ainda inexplorada, está situada na encosta do Morro do Cotia-Pará, final do Caminho Dois, próximo ao Rio Paranhos.

Curiosamente, a região é hoje habitada por invasores de mangues que ali instalaram favelas e que se alimentam, de quando em vez, pelos caranguejos que constituíam parte da alimentação dos antepassados dos cubatenses.

De quando em vez, porque os caranguejos são mercadoria de venda, na beira das estradas, a R$ 12,00 a dúzia, em média. Os modernos tupinambás descem dos carros, fazem as compras e levam os petiscos para uma caranguejada que, ao contrário dos seus antepassados, comem com cerveja.

As favelas cercando um pólo industrial de tecnologia de ponta, que ainda ostenta - apesar da crise na economia - o título de maior da América Latina, são uma espécie de símbolo dos contrastes que sempre caracterizaram a cidade.

Riqueza e pobreza - A riqueza ladeando a pobreza sempre conviveram no antigo pouso de tropeiros, por onde passaram burros carregados, conforme a época, com sacas de açúcar, mercadorias diversas, muito ouro e café.

Cubatão foi porto, fazenda geral, povoado, distrito, centro agrícola e pólo industrial. Mas, sempre, ponto de passagem, por cortar todas as grandes estradas que, ao longo da história, interligaram o Planalto Paulista à região estuarina e portuária de Santos, desde a primitiva Trilha dos Índios Tupinambás, por onde desceu João Ramalho, casado com Bartira a filha do cacique Tibiriçá, para receber Martim Afonso de Souza, em janeiro de 1532. O encontro histórico está registrado na tela de Benedito Calixto, cópia recriada por Jean Luciano e instalada no gabinete do prefeito.

Apesar do terreno pantanoso, e das escarpas da serra, com excessos de chuva e sufocante umidade do ar, apresentarem um clima desfavorável à ocupação humana, o solo era propício ao plantio de cana-de-açúcar.

Os primeiros documentos oficiais citam a existência de um povoado em Cubatão, a 10 de fevereiro de 1553, com a repartição de uma sesmaria (área de terra da capitania hereditária destinada ao plantio e povoamento) dada a Rui Pinto.


"Rio Cubatão durante os trabalhos para retificação de seu curso afim de acabar com as enchentes que assolavam a região do Centro da cidade na década de 70". Cubatão Antigamente. 





O QUE VOCÊ PRECISA SABER SOBRE CUBATÃO


Sobre as várias datas relativas ao início de Cubatão, o livrete O que você precisa saber sobre Cubatão (de Francisco Rodrigues Torres, João Carlos Braga Júnior e Welington Ribeiro Borges, editado em 2002 pela empresa Design & Print, de Cubatão) relata:

AS "FUNDAÇÕES" DA POVOAÇÃO DE CUBATÃO

As datas de interesse para o município, no que diz respeito à fundação, necessitam de uma atenção especial. Podemos notar no histórico de uma cidade que, normalmente, há uma data específica, bem como uma família de fundadores. Entretanto, Cubatão foge à regra por não possuir uma, mas pelo menos três datas dignas de registro para serem estudadas.

A primeira data está ligada à doação de terras, a chamada sesmaria, por Martim Afonso de Souza, favorecendo a Rui Pinto (*). No documento oficial, datado de 10 de fevereiro de 1533, há a citação do nome Cubatão. Aliás, esta data estava gravada no antigo brasão de armas cubatense que vigorou até 1969. A Câmara Municipal, considerando um acontecimento digno de nota, sancionou a Lei 2.623 que, em seu teor, determina o dia 10 de fevereiro como o "Dia da Fundação do Povoado de Cubatão".

A segunda data a se considerar ocorreu na época de Antonio José da Franca e Horta, governador da Província de São Paulo, que expediu portaria determinando a fundação da povoação de Cubatão, a 19 de fevereiro de 1803. Esta portaria foi retificada a 18 de junho do mesmo ano, onde há ordens de se utilizar o lado direito do Rio Cubatão para o devido estabelecimento da povoação.

A terceira data, sem dúvida a mais conhecida, ocorreu a 12 de agosto de 1833. A Regência do Brasil, em nome do Imperador D. Pedro II, expediu a lei nº 24. Esta data está registrada no atual brasão. Frisamos, porém, que o teor desta lei não corresponde à elevação a município. Houve um erro de interpretação ao citar que Cubatão, então possuindo um punhado de casas, passasse por esse processo em pleno século XIX.

Cubatão em 1826. A paisagem rural e bucólica começa a dar os primeiros sinais de urbanização. 


Para rememorar, vejamos o quadro sinóptico das "fundações":

Ano Expedido por Local

1533- Martim Afonso de Souza -São Vicente

1803- José Antônio da Franca e Horta - São Paulo

1833- Regência Trina - Rio de Janeiro


(*) Essas doações são de grande valia, pois coincidem, em grande parte, com a atual delimitação do município de Cubatão. Observemos um trecho da doação a Rui Pinto: "Hei por bem de lhe dar as terras do Porto das Almadias onde desembarcam quando vão para Piratinim quando vão desta Ilha de Sam Vicente, que se chama Apiaçaba, que agora novamente chama-se o porto de Santa Cruz, e da banda do sul partirá pela barra do Cubatão pelo porto dos outeiros que estão na boca da dita barra do Cubatão, entrando os ditos outeiros dentro das ditas terras do dito Ruy Pinto".



Imagem aérea do centro de Cubatão e parte da área industrial em 1973.Nela é possível notar os terrenos ainda vagos de onde hoje estão o Paço Municipal, o Fórum, Escola Senai, entre outros. Na época da foto o trecho que liga a estrada que levava ao parque industrial à rodovia Anchieta ainda não existia e a linha do trem que hoje fica rende a este trecho ainda estava em construção. Ainda é possível ver o trecho de terra que foi desocupado e deu lugar a retificação do rio Cubatão a fim de acabar com as enchentes no centro da cidade. Cubatão Antigamente.

*

AO GRANDE CIDADÃO RUY BARBOSA


CARTA DE LIBERTOS REVELA FALTA DE ESPERANÇA APÓS-ABOLIÇÃO


Ao grande cidadão Ruy Barbosa.

Comissionados pelos nossos companheiros, libertos de várias fazendas próximas a estação do Paty, município de Vassouras para obtermos do governo Imperial educação e instrução para os nossos filhos, dirigimo-nos à Va. Excia. Pedindo o auxílio da invejável ilustração e do grande talento de Va. Excia., verdadeiro defensor do povo e que d’entre os jornalistas foi o único que assumiu posição definida e digna, em face dos acontecimentos, que vieram enlutar nossos corações de patriotas.
A lei de 28 de setembro de 1.871 foi burlada e nunca posta em execução quanto a parte que tratava da educação dos ingênuos.

Nossos filhos jazem imersos em profundas trevas. É preciso esclarece-los e guiá-los por meio da instrução. A escravidão foi sempre o sustentáculo do trono n’este vasto e querido país agora que a lei de 13 de maio de 1888 aboliu-a, querem os ministros d’”A Rainha”, fazerem dos libertos, nossos inconscientes companheiros, base para o levantamento do alicerce do 3º reinado.

Os libertos do Paty do Alferes, por nós representados protestam contra o meio indecente de que o governo quer lançar mão e declaram aproveitando esta ocasião, que não aderem a semelhante conluio e que até agora sugado pelo governo do Império querem educação e instrução que a Lei de 28 de setembro de 1.871, lhes concedeu.

O governo continua a cobrar o imposto de 5% adicionaes, justo é que esse imposto decretado para o fundo d’emancipação dos escravos reverta para a educação dos filhos dos libertos.

É para pedir o auxílio da inspirada Penna de Va. Excia., que tanto influiu para a nossa emancipação, que nos dirigimos a Va. Excia.

Comprehendemos perfeitamente que a libertação partiu do povo que forçou a coroa e o parlamento a decreta-la e que em Cubatão foi assignada a nossa liberdade e por isso não levantaremos nossas armas contra os nossos irmãos, embora aconselhados pelos áulicos do paço, outrora nossos maiores algozes.
Para fugir do grande perigo em que corremos por falta de instrução, vimos pedi-la para nossos filhos e para que eles não ergam mão assassina, para abater aqueles que querem a República, que é a liberdade, igualdade e fraternidade.

Estação do Paty, 19 de abril de 1.889

A Comissão de Libertos

Quintiliano Avellar (preto); Ambrósio Teixeira; João Gomes Batista; Francisco de Salles Avellar; José dos Santos Pereira; Ricardo Leopoldino de Almeida; Sergio Barboza dos Santos

SOBRE O DOCUMENTO

Cubatão/SP – Uma carta enviada por uma “Comissão de Libertos” a Rui Barbosa, no dia 19 de abril de 1.889, menos de um ano após a Abolição, cujos originais são mantidos na Casa de Rui Barbosa, no Rio, e que teve uma cópia doada pelo monsenhor Manoel Pestana ao Arquivo Histórico de Cubatão, cidade a 68 Km de S. Paulo, na Baixada Santista, revela a luta quase desesperada pela sobrevivência e pela educação dos filhos travada pelos negros após a Abolição. Pestana, nascido em Santos, foi professor, intelectual influente na Igreja Católica e morreu há dois anos, em 2011, aos 82 anos, como bispo emérito de Anápolis, Goiás.

Na Carta, datada de 19 de abril de 1.889, assinada por sete escravos libertos da Estação de Paty (atual Paty do Alferes, no Rio), os ex-escravos se dirigem “Ao grande cidadão Ruy Barbosa” para pedir “o auxílio da inspirada pena para que o fundo de emancipação dos escravos revertesse em favor da educação de seus filhos”

“Nossos filhos jazem imersos em profundas trevas. É preciso esclarece-los e guiá-los por meio da escravidão. A escravidão foi sempre o sustentáculo do trono n’este vasto e querido país agora que a lei de 13 de maio de 1.888 aboliu-a, querem os ministros d’ “A Rainha” fazerem os libertos, nossos inconscientes companheiros, base para o levantamento do 3º Reinado”, afirma um trecho.

Na verdade a menção ao terceiro reinado, segundo historiadores, deve-se ao projeto da monarquia de distribuir terras aos negros recém libertos. O projeto da Monarquia, contudo, foi interrompido pelo movimento dos republicanos que, em 15 de novembro do mesmo ano, com o marechal Deodoro, proclamariam a República.

O interessante é que, segundo os mesmos historiadores, a base do partido republicano era formada, na sua maioria, pelos fazendeiros desgostosos com o Império por terem perdido a mão de obra escrava, e que se organizavam no "movimento indenizista" para exigir indenização do Estado.

Nesse sentido, a República que acabou prevalecendo, acrescentam, tinha um projeto mais conservador do que a Monarquia que terminaria com o exílio de D. Pedro,  a Princesa Isabel e a família real em Paris.

O documento consta da obra Antologia Cubatense selecionada e organizada pela professora Wilma Therezinha Fernandes de Andrade, e foi publicado em 1.975 pela Prefeitura de Cubatão. Curiosamente, o documento relato que em Cubatão teria sido “assignada a libertação dos escravos”.

“Supomos que deva ser uma referência ao sentimento de liberdade que devia empolgar os escravos fugidos, ao chegaram a Cubatão, então porta da terra da liberdade: Santos. Essa referência pode ser também uma tentativa, talvez inconsciente, de apontar a ação dos escravos para conseguir sua liberdade”, afirma a historiadora Wilma Therezinha, em texto para o site Novo Milênio, jornal eletrônico que retrata aspectos da história antiga e mais recente de Santos e dos demais municípios da Baixada Santista, criado e mantido pelo jornalista Carlos Pimentel Mendes. Segundo o jornalista Manoel Alves Fernandes, de "A Tribuna", o trabalho de Pimentel é pioneiro no sentido de manter um arquivo eletrônico com fatos e aspectos da história que são desconhecidos da maioria das pessoas, como, por exemplo a carta da "Comissão dos Libertos".

O jornalista lembra que, o mesmo Rui Barbosa, em 1.890, após a República, já ministro da Fazenda mandou requisitar, para incinerar, todos os registros e escrituras de escravos, "não se sabendo ao certo se o objetivo era queimar antecedentes da vergonha ou evitar pedidos de indenizações de fazendeiros que julgavam prejudicados pela abolição".

Fontes: Novo Milênio e AfroPress https://www.afropress.com (16/05/2013)



*

AS HISTÓRIAS DO SEU AVARISTO



José Evaristo da Silva, na capa no suplemento especial de A Tribuna de 24/4/1983


Comemorando seu 90º aniversário de publicação, o jornal A Tribuna de Santos publicou - em 24 de abril de 1983 - um caderno especial com uma grande entrevista com José Evaristo da Silva, residente em São Vicente, que nesse dia completava 93 anos de idade "e pode se gabar de ser uma das poucas pessoas a existir há mais tempo do que este jornal. Personagem que se tornou uma testemunha viva de acontecimentos históricos, dramáticos ou simplesmente pitorescos", como citou o matutino na capa desse caderno especial, que abrangeu também histórias de outras cidades da região. (Novo Milênio)

"Cubatão tinha a estação do trem, umas casinhas por perto, e o resto era ainda aquelas choças de sapé. Você conhece sapé?"

Jean Luciano, o velho, retocava a pintura descascada de Menino Felipe, um quadro que pintara na década de 1970, quando ouviu um baque surdo, logo seguido de explosões, fogo, a mistura de mil cheiros e gritos.

Naquela manhã nevoenta - como todas as manhãs de Cubatão em 1993 - o sol se fazia ainda mais escuro. Luciano teve ainda tempo de proteger a tela, sair do Museu Municipal de Piaçaguera às pressas, meter-se num carro e fugir. Enquanto percorria o curto espaço entre Cubatão e São Paulo, por entre a luz tímida do sol que penetrava na densa camada de fumaça das fábricas, conseguiu descobrir o que acontecera: a grande mancha de piche que cobria a serra, ou o que restara da antiga e luxuriante Serra do Mar, começava a desabar. Uma grande fenda se abria de alto a baixo, desde a base da Refinaria Presidente Bernardes até onde outrora fora o Palácio da Eletropaulo, no início da antiga hidrelétrica Henry Borden.

Pequenas avalanchas já haviam sepultado as fábricas de coque de alumínio, estireno, cola da Alba para foguetes e pilhas atômicas da Carbide. Lágrimas chegaram aos olhos do sensível Luciano ao se lembrar que a tela que levava consigo registrava as últimas cenas do passado, do presente momentâneo da década de 70 e de um futuro que não houve.

A grande mancha de piche começou a crescer, timidamente, em 1985. Antes disso, era apenas uma cobertura que segurava o solo frágil da serra de Cubatão, já ameaçada pela poluição industrial que queimava os vegetais e os impedia de crescer.

O sábio Aziz Ab'Saber vinha, desde 1949 - ano em que Cubatão se emancipou - olhando o estranho processo de desgaste da serra. Acompanhou agoniado a destruição dos vegetais para a abertura de uma estrada suspensa chamada Imigrantes. Viu os tanques da refinaria tomando espaço de árvores, registrou com sensíveis aparelhos a presença de monóxido de carbono e de ozonas que destruíam os vegetais. Alertou para a possibilidade de a serra - imensa, com mais de 700 metros de altura, majestosa - vir abaixo sepultando fábricas.

Em 1975, uma grande chuva arrastou troncos e troncos de árvores que desceram da serra e inundaram fábricas. Ninguém deu atenção ao fato. A mancha de piche que cobria terra seca foi subindo a serra. Primeiro para proteger os oleodutos. Depois, para proteger os moradores dos bairros das cotas, que fizeram seus barracos onde antes havia a floresta nativa. Quedas freqüentes de barreiras obrigaram à colocação da proteção de piche. No final de 1990, o piche tomava conta da serra. A paisagem era negra onde antes havia sido verde, às vezes mesclada de aleluias roxas e douradas.

"Cubatão tinha a estação do trem, umas casinhas por perto, e o resto era ainda aquelas choças de sapé. Você conhece sapé? Tinha também duas ou três casas lá por perto do Rio Casqueiro. A estrada da serra era macadamizada e quando a gente começava a subir era como se entrasse num túnel. Era impressionante, mas era um túnel mesmo, feito pela vegetação muito fechada. Era impressionante..."


Trecho do depoimento de José Evaristo da Silva, dado a A Tribuna, em abril de 1983, por ocasião do nonagenário deste jornal.

"Há 70 anos, a luxuriante vegetação da Estrada Velha do Caminho do Mar - meio de ligação entre o Planalto e o Porto, no centro da qual ficava Cubatão - impressionava o jovem José Evaristo da Silva. Se ele retornar hoje ao mesmo local, certamente ficará ainda mais impressionado".

Agora, o trecho é da reportagem feita, em abril de 1983, por um jornalista de Cubatão, ao considerar a entrevista dada por José Evaristo da Silva. Seguem-se algumas considerações feitas por esse jornalista, que tomou o depoimento de outras pessoas, nessa mesma época, na cidade moribunda de Cubatão, em 1983.

Da janela da Sucursal de A Tribuna em Cubatão, vemos por entre a fumaça das fábricas que pouco resta desse túnel feito de uma vegetação muito fechada que impressionou José Evaristo da Silva, quando ele subiu a serra num antigo carro. Hoje, a poluição industrial de Cubatão contribui para tornar rara essa paisagem. Os velhos troncos de árvores e as espécimes vegetais nascidos há séculos estão doentes, comprometidos pelos restos de produtos químicos presentes na atmosfera da Cidade. As poucas choças de sapé e algumas casinhas deram lugar a torres de produção de material petroquímico, a fábricas de fertilizantes, cimento e aço.

Cubatão continua com uma estação de trem e um caminho de ferro que escoa a produção do maior pólo petroquímico da América Latina. De simples ponto de passagem, passou a uma cidade industrial mundialmente conhecida por causa não apenas dos produtos químicos e siderúrgicos, e mais pela poluição que lhe deu outros títulos: "Vale da Morte" e "Cidade de Anencefálicos (crianças sem o cérebro)".

Aí está o comendador Celso Grandis do Amaral, no balcão de sua farmácia, todo vestido de branco. Há dias, estava ele de elegante terno preto, cheio de medalhas, comendas e insígnias, descerrando uma placa na "Praça dos Emancipadores", uma homenagem da Cidade àqueles que a tornaram emancipada. É verdade que alguns cidadãos mais ousados estragaram parte da festa, portando faixas onde se pedia a autonomia.

Parecia estranho estar comemorando a emancipação e ao mesmo tempo reclamando autonomia. Mas, em 1968, o Governo e o Congresso Nacional entenderam que Cubatão, por causa das fábricas, não deveria ter direito de eleger o seu prefeito, indicado pelas autoridades governamentais.

Não foi bem isso que Celso, Lindoro Couto, Armando Cunha e outros emancipadores pretendiam quando fizeram um movimento que por 1.081 votos fez Cubatão separar-se de Santos. Celso lembra-se das manchetes de A Tribuna dando essa notícia. Como se lembra da reportagem que registrou a decisão histórica do Governo de construir a primeira refinaria estatal da futura Petrobrás, no ano seguinte à emancipação. Previa-se um futuro promissor para Cubatão. Muitos empregos, um comércio forte, uma população forte e uma cidade rica. As indústrias logo viriam.

As fábricas trouxeram realmente o progresso muito depressa para Cubatão. Só que depressa demais. Armando Cunha, Luiz Camargo da Fonseca e Silva, Abel Tenório e José Rodrigues Lopes (também emancipador) foram prefeitos que viram e fizeram a cidade crescer, no tempo em que a população os elegia.

José Evaristo da Silva, nosso leitor, poucas vezes voltaria mais a Cubatão. Como a maioria dos moradores da Baixada Santista, passava ao largo da Cidade, pelas novas rodovias que se abriam - a Anchieta, por exemplo. Apenas sabia do que estava acontecendo porque, de cada vez que por ali passava, via uma nova chaminé, e via também os barracos crescendo na serra e na beira de um mangue que logo tomou nome: Vila Socó. Socó de um passarinho branco, uma pequena garça que com o tempo começaria a nascer preta.

Evaristo leu nas manchetes de A Tribuna o crescimento rápido de Cubatão. A chegada de uma siderúrgica que logo seria a mais importante do Estado; a expansão petroquímica (Estireno, Alba, Carbocloro, Union Carbide, Copebrás, Cimento Santa Rita); o surgimento de um parque de fertilizantes (Ultrafértil, Manah, IAP, Solorrico, Adubos Trevo).

Do balcão da sua farmácia, Celso lembra-se do nascimento e da morte de muitas fábricas. Atrás da farmácia, onde hoje é um imenso parque, havia uma indústria - a fábrica de Anilinas. Mais além, próximo à Companhia Santista de Papel, ficava a antiga Costa Muniz. Era o tempo de uma cidade pacata, antes da emancipação, em que a passagem do Zepelin era ansiosamente aguardada e até fotografada.

Um dia, em 1976, o jovem pintor Jean Luciano ganhou o prêmio Afonso Schmidt, retratando num quadro que se encontra no Paço Municipal o Cubatão do passado, bucólico, encantador, com a estação do trem vislumbrada por José Evaristo da Silva. E pintou também, tudo no mesmo quadro, Cubatão da sua época, cheia de fábricas. E registrou também a visão do futuro de Cubatão, conforme a visão profética do seu maior poeta e escritor, Afonso Schmidt.

Era uma cidade alegre e divertida, cheia de prédios altos e pirâmides, sem fábricas, um centro de artes e lazer. Celso Grandis do Amaral, da sua farmácia, diz em 1983 que Cubatão do futuro vai ser assim, vai ser a cidade de Zanzalá. Garante que a poluição será dominada, que as favelas acabarão, que haverá conciliação entre o lazer, a esperança e a produção industrial.


Na Avenida Nove de Abril, em pleno outono, começam a nascer os frutos das árvores plantadas pela administração Vida Nova do prefeito Passarelli. Em 1965, A Tribuna estampa, para horror de José Evaristo da Silva, a trágica morte do prefeito eleito Abel Tenório, no meio da rua, a tiros.

Em 1968, José Evaristo lê com apreensão a transformação de Cubatão em área de segurança nacional. Chega o primeiro dos prefeitos nomeados. Logo chegaria o segundo, construindo grandes palácios, e viria o terceiro, consolidando os projetos do segundo. Cubatão era agora um imenso parque industrial e a Cidade um imenso acampamento industrial. Nas ruas, havia mais um meio de comunicação: a "Rádio Peão", um estranho meio de comunicação de boca e ouvido inventado pelos trabalhadores das empreiteiras que construíam a Rodovia dos Imigrantes, a expansão do estágio II da Cosipa, as fábricas de fertilizantes. Em certo tempo, José Evaristo da Silva lê que há em Cubatão mais de 20 mil peões residindo em favelas.

Ao assumir o cargo, em fevereiro de 1982, o prefeito Passarelli constata que a Cidade vive uma crise. A recessão econômica faz cair a receita municipal; a poluição ameaça fazer cair a serra; os industriais reclamam mais crescimento para dar empregos. Os desempregados fazem passeatas nas ruas. Evaristo lê nos jornais a ameaça de saques.

O menino Avelino Ruivo Júnior, filho de tradicional família local, nasceu em Cubatão, brincou nas águas dos rios Pilões e Perequê, viu as fábricas tomarem conta dos mangues e as favelas subirem o morro. Botou na cabeça que seria arquiteto. Entrou na faculdade e quando anunciou seu sonho, foi chamado de louco. Consertar Cubatão? Estás louco? O arquiteto Avelino Ruivo Júnior está agora dizendo que, na época da faculdade, descobriu, com espanto, que havia uma psicose de Cubatão.

"Eu pensava em Cubatão. Tem alguma coisa para ser salva? Agora, digo que tem. Estamos numa encruzilhada. Ou Cubatão acaba, por causa do desastre ecológico, ou se resolve tudo de uma vez. A serra não tem o meio termo. Parece-me que, de repente, o pessoal acordou. Hoje, o morador de Cubatão faz excursões aos rios Pilões e Perequê e descobre encantado os mesmos locais onde meu pai ia caçar".

Ao lado de Avelino está a arquiteta Lígia Maria Martins do Monte, que trabalha na Prefeitura desde 1977. "Temos hoje 15 favelas, e só uma controlada, a Favela Natal".



Vila Parisi no início dos anos 1970. Cubatão Antiga.


Lígia começa a refletir, para justificar a existência das favelas.

Lígia explica que o processo industrial de Cubatão começou de fora para dentro, sem nenhum planejamento. Não teve orientação no sentido do Município. Para Cubatão, chegaram levas de migrantes à procura de empregos, embora sem nenhuma qualificação profissional. As indústrias nunca ofereceram local para moradias. Esse pessoal foi morar nas favelas, fazendo-as crescer sem controle. Hoje a ocupação das encostas da serra se faz aleatoriamente. Há riscos de desabamentos.

No começo da década de 1980, com a recessão econômica, deixou de haver migração. Mas, as favelas continuaram crescendo. Agora, em razão de um novo fenômeno, a população urbana está sendo expulsa para as favelas por causa do aumento dos aluguéis. Em 200 pessoas entrevistadas na Favela Natal, 160 estão desempregadas.

A administração Passarelli preocupa-se agora em organizar as favelas de forma a permitir melhores condições de vida a 60% da população da Cidade. Lígia ajuda a organizar a Favela Natal, que tem arruamento, água, luz e equipamentos urbanos. Aos poucos, a administração deixa de lado os planos habitacionais grandiosos, de dez mil casas populares. Lígia: "Não acredito em remoção de favelas. Elas passaram ao contexto da Cidade".

Sérgio Lucon, arquiteto que projetou a maioria das obras em Cubatão, tem o horror característico dos arquitetos aos conjuntos habitacionais gigantes, todos iguaizinhos, ao infinito. Ele não quer ver uma Cubatão de favelas de concreto. Quer cidade harmoniosa. "A gente discute sempre a questão da Cidade. O Avelino e o Augusto (outro arquiteto da Prefeitura) elaboraram a atualização do Plano Diretor de Cubatão, ordenaram os projetos destinados a mudar uma Cidade perdida no tempo, confusa com o crescimento industrial. Hoje, temos uma cidade mais humana, embora se critiquem algumas obras faraônicas, como o prédio da Prefeitura. Hoje, o prédio da Prefeitura está saturado".

Se a Cidade cresceu como apoio ao parque industrial e em decorrência da receita orçamentária proporcionada pelas indústrias, os bairros foram mal planejados. Avelino: "Os loteamentos abertos não deixaram espaço. Na Vila Nova, por exemplo, os espaços foram cedidos para a construção de prédios públicos, igrejas, pouco sobrou para praças e centros de recreação. Tivemos que projetar praças e centros de lazer aproveitando os pequenos espaços disponíveis".

Com os recursos proporcionados pelas fábricas, foram construídas escolas, praças, centros esportivos e de lazer. A Cidade não tem agora mais espaços para crescer. As poucas áreas disponíveis foram tomadas pelas fábricas ou pelas favelas. Um recente decreto do governador José Maria Marin tomou ainda mais as áreas da Cidade para a expansão das fábricas. Cubatão está numa encruzilhada. Terminará um imenso distrito industrial, como deseja Nei Eduardo Serra e o sempre otimista Plínio Assmann, presidente da Cosipa?

Ou as manchas de piches que sobem a serra vão acabar mesmo tomando conta de tudo, dando sempre a impressão do limiar da catástrofe? Falo a Avelino, a Lígia e a Lucon da história que pretendo escrever, de um exercício de ficção em que projeto a minha visão particular do futuro de Cubatão, destruído por uma avalancha, em virtude da incúria dos homens que querem apenas produzir, sem proteger a natureza.

Lembro-lhes das predições de Aziz Ab Saber, de Florivaldo Cajé, de Ernesto Zwarg Júnior; de avisos de jornalistas como Randau Marques ou de entidades como o Cesec.

"Você está errado. Nada disso vai acontecer", me dizem os três.

Avelino garante que a comunidade vai conseguir - graças ao progresso científico e ao fato de as autoridades terem concluído que Cubatão chegou ao limiar da destruição - uma solução conciliatória, entre a indústria e a Cidade. "Piorar a solução ambiental é impossível", diz. "A poluição está assim porque abandonamos a tecnologia que tem saída para isso. Na verdade, vem muita coisa de fora, imposta, e a Prefeitura pouco opina", observa Lígia. "Hoje, todos estão mais preocupados, lá fora, em instalar mais indústrias do que em salvar a Cidade", arremata Lucon.

Mas, os três têm uma visão otimista do futuro. Acreditam que haverá mesmo uma conciliação. Lígia vê as favelas organizadas, sendo aos poucos substituídas por casas de alvenaria. Lucon vê prédios de mais andares sendo construídos no pouco espaço da Cidade, em lugar de imensos conjuntos habitacionais. Os três são favoráveis à permanência organizada das indústrias, à cessão de espaço para a implantação de indústrias leves, não poluentes, de apoio à indústria pesada, de base, para gerar milhares de empregos.

Avelino expõe o sonho de uma cidade cercada por bairros autônomos, com comércio e escolas, praças, equipamentos de lazer próprios, dependendo do centro atual da Cidade. As indústrias de base, com o controle da poluição hoje tecnologicamente possível, ficariam próximas às de apoio, gerando os empregos para os moradores desses bairros.

Avelino entusiasma-se com essa idéia de "federação de bairros", como ele a chama, ocupando núcleos de pequeno porte no Jardim Casqueiro, na Vila Nova, nas ilhas de Caraguatá e Nhápium, no quadrilátero do Sítio Cotia Pará. Lígia vê um estudo profundo do IPT (N.E.: Instituto de Pesquisas Tecnológicas, da Universidade de São Paulo - USP) nos conjuntos das cotas. Lembra que se for possível habitá-los, é necessário que sejam cercados, para evitar o crescimento que destrua a serra. Mas, cercá-los de todo o apoio urbano, introduzindo-se melhoramentos, acessos, pavimentação, água e luz. Lembra que todas as favelas de Cubatão têm água e luz. Lucon é realista e ao mesmo tempo sonhador, na opinião de políticos mais radicais. Ele acredita numa integração entre os governos e a comunidade, para conciliar o parque industrial e a Cidade. "A indústria está aí, é um organismo do qual a gente não se pode desligar..."

Vou-me embora com a minha visão destruída de um futuro destrutivo para Cubatão. José Evaristo da Silva não lerá a manchete de Jean Luciano fugindo com o quadro do Menino Felipe da catástrofe de Cubatão.

Conto a uma pessoa querida a visão antiga de Evaristo, de um Cubatão de estradas macadamizadas, com ramadas de árvores que pareciam túneis.

Essa pessoa me chama de nostálgico. Ela passa todos os dias pela Via Anchieta e tem uma definição muito particular da Cidade que vê ao longe: "Cubatão é apenas fumaça..."

Lembro-me então de uma idéia fixa do prefeito Passarelli, que se revolta contra essa imagem pessimista da sua Cidade: "Um dia desses fecho a Via Anchieta e obrigo todo o tráfego a passar pelo Centro de Cubatão. Todos verão como é falsa a idéia que fazem da nossa Cidade".

Vila Nova no final dos anos 1970. 

 Cubatão no final dos anos 1960. 


Ilha Caraguatá  nos anos 1970. 

Vila Socó nos início dos anos 1980. 


OCUPAÇÃO, FAVELIZAÇÃO E POLUIÇÃO


Cesar Cunha Ferreira, Francisco Rodrigues Torres e Welington Ribeiro Borges. 


Cubatão, Caminhos da História. Ed. do Autor. 2007.



 
A ocupação territorial de Cubatão está relacionada à industrialização e à migração de trabalhadores que, por sua vez, desencadeou um crescimento demográfico exagerado. A falta de planejamento habitacional aliada à indisponibilidade de “terrenos firmes” para novas moradias e o estado de pobreza dos migrantes recém-chegados, empurrou-os para a periferia e afetou em demasia a estrutura socioeconômica do município.

Historicamente há dois momentos que estouraram o surto migratório e a utilização de subabitações. Primeiro, a construção da Via Anchieta, em meados de 1940, que deu origem aos “bairros” Cota. Segundo, a implantação do pólo industrial que, em local inadequado, deu origem aos aglomerados habitacionais de baixa renda como a extinta Vila Parisi e o Jardim São Marcos (antigo Maracangalha).
Para entender o processo de favelização gerado pelo fluxo migratório “atraído”pelo parque petroquímico de Cubatão deve-se observar alguns fatores sociais.

Constatou-se que a maioria dos trabalhadores arregimentados para as construções das fábricas eram os de menor qualificação. Os migrantes assimilados na construção civil, em sua grande maioria, eram semi-analfabetos (analfabetismo funcional).

Conforme estudos realizados pela Universidade de São Paulo, na implantação do Plano Diretor para Cubatão, há a citação de que os munícipes não reivindicavam seus direitos com mais intensidade devido à baixa escolaridade. A somatória desses problemas, ou seja, ausência de planejamento urbano e a baixa instrução escolar (influência direta na baixa qualificação profissional), propiciaram o surgimento de várias áreas favelizadas com carências sociais. Estas podem ser identificadas através das consequências imediatas, como:

a) Consequências primárias: falta de creches, de postos de saúde e policial, de centros de convivências, de transporte, de praças esportivas e de saneamento básico. Tais fatores estão atrelados diretamente à má qualidade de vida;

b) Consequências secundárias: surgimento de uma população carente no sentido amplo. Há carência de opções de lazer, de politização e mobilização social, de educação, ou seja, carência de cidadania;

c) Outras consequências: além da baixa qualidade de vida e do impacto ambiental gerado pela alta densidade demográfica, as submoradias colaboram para a intensificação da violência, da dependência das drogas e dos crimes correlatos.
 
Situação atual (Favelização)

Cubatão foi conhecida como uma das cidades mais poluídas do mundo entre 1970 e 1980. Mas a industrialização não gerou apenas problemas ambientais: de 86.270 moradores ouvidos em uma pesquisa da Prefeitura, em 2002, 51% dos entrevistados moravam em favelas, sendo 22,93% em casas de madeira e 8% em palafitas sobre mangues. O déficit habitacional de Cubatão ultrapassa 12 mil unidades.

Boa parte das áreas foi ocupada por pessoas que trabalharam na industrialização da cidade entre as décadas de 1950 e 1970, um movimento típico de todo o país durante o período: a migração de trabalhadores de todo o Brasil para São Paulo. Em 1960, o Estado reunia 45,1% de operários das indústrias do Brasil.

A pesquisa da Prefeitura mostra isso: 67,68%, de 86.270 pessoas entrevistadas, nasceram em outras cidades do Brasil e chegaram à cidade principalmente, durante a forte industrialização da região. Foi em grande parte esta população que provocou a ocupação dos manguezais e de áreas ambientais como os “bairros” Cota.

Há a Cota 95 (95 metros acima do nível do mar), a Cota 200 (200 metros) e Cota 400 (400 metros). Por estarem em área ambiental, nenhuma melhoria ou alteração urbana poderia ser feita, mas a situação parece mudar. Em 1994, a Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo, aprovou a Lei 8.976/94, que permitia a transferência das "Cotas", inseridas no Parque Estadual da Serra do Mar para o Município de Cubatão (no jargão jurídico: desafetação).

Em 2003, a Lei Municipal 2.890/2003, autorizou o Poder Executivo Municipal receber a doação das Cotas 200 e 400, conforme área demarcada na Lei.
 
Impactos ambientais

Em decorrência de uma industrialização desordenada e sem planejamento, a cidade de Cubatão sofreu com os impactos ambientais decorrentes dessas ações. Diante dessa conjuntura, chegou-se a níveis alarmantes, da poluição atmosférica e do solo, causando a mortificação vegetal de cerca de 60 km² da escarpa da Serra do Mar, elevando sensivelmente os riscos de escorregamentos de terra, colocando em perigo tanto a população local, em caso de um deslizamento repentino que atingisse uma área residencial, quanto às instalações industriais e de armazenamento de produtos perigosos (corrosivos, inflamáveis e tóxicos) com grande probabilidade de vítimas fatais.

Um dos efeitos mais notórios da poluição atmosférica no município foi a morte gradativa das árvores causada pelo pólo industrial de Cubatão devido à queima de carvão e do petróleo, dos fluoretos produzidos por indústrias de fertilizantes, pó de cimento que lançavam na atmosfera quantidades significativas de poeiras e gases.

As chuvas ácidas também causam morte da vegetação. Esse fenômeno é decorrente da dissolução das gotas de chuva e os inúmeros compostos químicos existentes na atmosfera de Cubatão. Com precipitação da chuva ácida, ocorre a alteração das propriedades químicas e biológicas do solo em contato com as gotas d’água que penetram também nos caules e folhas causando danos às mesmas. Este fato origina uma paisagem desoladora conhecida como paliteiros, que podem ser observados nas encostas mais diretamente voltadas para a área industrial, estendendo-se por alguns vales até as costas mais elevadas da Serra.

Por causa disso, aumentaram as possibilidades de desastres ecológicos como o desaparecimento da fauna e a frequente ocorrência do deslizamento de encostas.

Estes desmoronamentos ou escorregamentos de terra ocorreram por causa da ausência da vegetação natural que tem como função estabilizar as encostas. As raízes vegetais têm capacidade estabilizadora do solo em planos inclinados e sua copa tem capacidade de atenuar o impacto das chuvas torrenciais diretamente ao solo.

Em janeiro de 1985, fortes chuvas provocaram um evento coletivo de escorregamentos de terra e blocos rochosos que atingiram áreas industriais e urbanas provocando enchentes e assoreamento dos rios.
A poluição do solo, vinda também da chuva ácida, provoca processos de desertificação, devido à alteração na composição do solo. 

Outra consequência da poluição atmosférica de proporções globais, no que se refere ao estudo e preocupações que o fenômeno gera, se dá com a intensificação do Efeito Estufa, que se caracteriza pela retenção de radiações infravermelhas na atmosfera do planeta, elevando sua temperatura em decorrência da concentração de gás carbônico na atmosfera.

Houve investimentos no Pólo Industrial de Cubatão, até 2007, da ordem de US$ 1,095 bilhão aplicado em gestão e controle ambiental. Este tipo de iniciativa permitiu identificar e controlar as fontes poluidora.

Fonte: Novo Milênio

Vila Parisi os anos 1980. 


Projeto do Bairro Operário da, que nunca saí do papel.



Avenida 9 de Abril. Enchente de 1971. Cubatão Antigamente.

Vila Socó. 


Vila Esperança. Cubatão Antigamente. 




Vila Parisi


Jornal Cidade de Santos, sábado, 9 de janeiro de 1971



Vila Socó


ESCOLAS, CIVISMO E MOVIMENTOS POPULARES

CENAS DA CIDADE EM DIVERSAS ÉPOCAS


Fotos: Cubatão Antigamente



Banda Musical durante apresentação em 1958, na esquina da Avenida 9 de Abril com a Rua São Paulo.

Doralice Lopes: Acervo da família Lopes .A primeira formação dessa banda data de 1934 e foi criada por José Lopes( Carvalho) e José Ruivo (Zézinho Ruivo ) pertencia a Sociedade Musical Cubatense ,seus ensaios eram a Sociedade de Socorros Mútuos de Cubatão ( perto do Larco do Sapo ).A banda acompanhava as procissões e todo domingo após a missa apresentavam-se no coreto em frente a Igreja Matriz . Cubatão Antigamente. 



Projeto e prédio do Grupo Escolar.

Desfile cívico na avenida 9 de Abril nos anos 1950.

Desfile cívico no Casqueiro nos anos 1950. Cubatão Antigamente.

Desfile nos anos 1970


Desfile cívico nos anos 1960


Desfile anos 1960




Casqueiro. Cine Veleiro, 1967. 

Evento cultural da Petrobrás (Refinaria nos anos 1960.




Desfile cívico nos anos 1960

Desfile cívico nos anos 1970

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Carnaval  de rua em 1958: Sujos da Fabril. 
Jogos Regionais de 1967. 

Atletas dos Jogos Regionais de 1968.



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JOAQUIM MIGUEL COUTO: O IRMÃO DE LEITE DO IMPERADOR


Joaquim Miguel Couto (*)
Colaborador



Avelina Couto (à direita), em frente à casa de seu pai, em 1949. Foto publicada com a matéria


Edição comemorativa ao aniversário de Cubatão, em 9 de abril de 2000, o jornal santista A Tribuna 
Fonte: NOVO MILÊNIO

I - Chegamos nas terras do Cubatão no início do século XIX. Existiam poucas casas situadas à margem esquerda do rio que cortava a pequena vila. Segundo o censo de 1822, Cubatão tinha 23 casas, num total de 94 moradores (41 homens, 40 mulheres e 13 escravos). Em uma delas morava Miguel Francisco do Couto (24 anos, comerciante, português da Ilha da Madeira) e sua esposa Maria Gertrudes Carmo do Couto (20 anos, descendente de índios tupi-guaranis).

Nesta primeira metade do século XIX, Cubatão viveu um período de prosperidade, pela euforia da exportação de açúcar, através do Porto de Santos. A vila, nesta época, não passava de um porto de sopé de serra, com seu posto alfandegário. Era o lugar da baldeação entre o porto marítimo e o planalto. Em 1833, em razão do grande fluxo de açúcar que passava pela vila, Cubatão obteve a sua primeira emancipação política.

II - D. Pedro, filho de D. João VI, costumava vir a Santos com certa freqüência, por motivos não muito nobres. A descida da Serra do Mar era ainda uma grande muralha e as tropas chegavam cansadas ao pé da serra de Cubatão.

O Brasil já havia sido elevado a Reino Unido de Portugal e Algarve, e D. Pedro se habituou a descansar e se alimentar na casa de Miguel Francisco do Couto, antes de embarcar em direção a Santos. Na volta, era a mesma coisa: uma descansada antes da subida da serra.

Em 1821, D. João VI retorna a Portugal e deixa seu filho, D. Pedro (23 anos), como príncipe regente do Brasil. Apesar do aumento de suas obrigações, D. Pedro continuava a visitar Santos para se divertir. Isto também ocorreu no dia 7 de setembro de 1822. D. Pedro chegou a Cubatão irritado com alguns problemas e com dor no estômago. Evitou comer e logo partiu em direção a São Paulo, dizendo a Miguel Francisco que o dia não estava bom para ele. O resto da história todos sabem: o Brasil se torna politicamente independente de Portugal.

III - Em 1825, já casado e pai de Pedrinho, D. Pedro I desce a serra com sua família. Abriga-se como de costume na casa de Miguel Francisco. A imperatriz Maria Leopoldina, que estava amamentando Pedrinho, percebe que seu leite havia secado. Maria do Couto, esposa de Miguel Francisco, que estava amamentando um dos seus primeiros filhos, acolhe Pedrinho e o amamenta. D. Pedro I, entusiasmado pela aceitação de Pedrinho ao novo leite, convida Maria do Couto para ser ama de leite de seu filho e, portanto, morar no Rio de Janeiro. O convite foi estendido a toda a família de Maria. Mas, tanto Maria como Miguel Francisco, recusam o convite, pois viviam felizes na pequena vila.

D. Pedro I, então, parte para Santos, deixando Pedrinho e a imperatriz em Cubatão (na casa de Miguel Francisco). Na volta de Santos, D. Pedro I refaz o convite e diante da recusa se retira com sua família para São Paulo. Passados alguns dias, D. Pedro I retorna a Cubatão, exigindo que Maria do Couto o acompanhasse. Os ânimos se exaltam e D. Pedro I vai para Santos. No dia seguinte, as tropas do imperador desembarcam em Cubatão com a missão de matar Miguel Francisco e capturar Maria do Couto. Avisados por terceiros, os Couto se refugiam na serra do mar. As tropas ocupam sua casa e passam a vasculhar a região. Depois de alguns dias, D. Pedro I reúne seus soldados e retorna ao Rio de Janeiro. Segundo outras fontes, D. Pedro I estava era encantado com a beleza exótica de Maria do Couto.

IV - Com a volta de D. Pedro I a Portugal, em 1831, os Coutos voltam a viver normalmente em suas terras. Mas, para a tristeza da comunidade, em 1841 Cubatão perde o seu status de cidade e é incorporada a Santos.

Em 1840, a Assembléia Geral declara a maioridade de D. Pedro II e o confirma como imperador do Brasil. D. Pedro II visita Cubatão, pela primeira vez, em 1846. Conhece, então, sua mãe de leite Maria do Couto, que amamentava, na época, um de seus últimos filhos, Joaquim Miguel do Couto. D. Pedro pede para segurar seu irmão de leite e se desculpa pelos arroubos de seu pai, colocando-se à disposição para indenizar qualquer prejuízo daquele acontecimento. Miguel Francisco só lhe pediu sossego. Maria do Couto teve dezessete filhos.

D. Pedro II voltaria a Cubatão trinta anos mais tarde, em 1876, junto com sua esposa, a imperatriz Tereza Cristina. Encontra seu irmão de leite, Joaquim Miguel, já homem feito. Se surpreende pela erudição de Joaquim Miguel, letrado e curioso das ciências, embora trabalhasse a terra com as próprias mãos.

Juntos, vão visitar as sepulturas fósseis que existiam no sítio do Casqueirinho. Conversam sozinhos por meia hora e se despedem. Nunca mais se viram. O que conversaram ninguém sabe. Comentou-se que D. Pedro II ofereceu algum cargo público a Joaquim Miguel.

Nesta época, Joaquim Miguel já era o maior proprietário de terras da região. Terras do Império, doadas a Joaquim Miguel para serem cultivadas, situavam-se na margem direita do Rio Cubatão, se estendendo da ponte do mesmo rio até a estação de trem. Como a vila não tinha grande concentração de capital, as terras praticamente não tinham valor econômico. Como afirma Afonso Schmidt, "pelas décadas de 1880 a 1920, o povoado de Cubatão se confundia com a figura desse homem. Com mais de dois metros de altura, Joaquim Miguel era uma mistura de agricultor, curandeiro e estudioso das ciências". Sua modesta casa foi a primeira a ser construída no caminho que mais tarde recebeu o nome de Avenida dos Bandeirantes (atualmente Avenida 9 de Abril).


Avelina Couto (com a mão no queixo), aos dezoito anos, na janela da antiga estação de Cubatão (1910)
Foto publicada com a matéria

Algumas histórias de Cubatão

V - Homem humilde e simples, Joaquim Miguel nunca utilizou as suas terras para auferir riqueza para si próprio, ao contrário de algumas outras famílias da região. Pobre economicamente, distribuía o fruto de seu trabalho entre os mais necessitados do povoado e ajudava os viajantes famintos. Aprendeu com sua mãe a curar os doentes, através do que se convencionou chamar de medicina homeopática, bem como aliando novas conquistas da ciência. A maior parte dos habitantes lhe recorriam em tempos de enfermidades. Nunca cobrou nada pelo seu serviço.

Nas épocas de epidemias, comprava remédios com os recursos oriundos da venda de bananas e doava aos doentes. Em certa época, na impossibilidade de tratar a todos, solicita a ajuda de Oswaldo Cruz no Rio de Janeiro, que lhe envia vacinas e outros medicamentos.

VI - A expansão do Porto de Santos e a exportação de café fazem com que Cubatão se torne rota de passagem obrigatória do ouro negro. Novos imigrantes chegavam à cidade, e Joaquim Miguel começou a distribuir suas terras entre os novos moradores e parentes. Nunca vendeu nenhum de seus terrenos: deu a quem precisava.

Mesmo sendo um homem justo, Joaquim Miguel não podia contentar a todos. No início do século XX, Manoel Jorge recebe algumas terras de Joaquim Miguel.

Passado algum tempo, Manoel solicita mais terras, que iriam até o quintal da casa de Joaquim. Negado o pedido, Manoel contrata um pistoleiro para matar Joaquim. Quando o pistoleiro chega em Cubatão, pede água e comida na primeira casa que encontra: era a casa de Joaquim Miguel. Foi convidado a almoçar com toda a família: Joaquim, sua esposa Alexandrina Siqueira do Couto e seus dez filhos (oito mulheres e dois homens). Após o almoço, o pistoleiro se despede e pergunta onde ficava a casa de Manoel Jorge. Passados alguns minutos, o pistoleiro retorna e diz que Manoel o havia contratado para matá-lo, mas que ele iria embora, pois reconhecia nele um bom homem.

Em novembro de 1889, Joaquim Miguel assiste com desilusão à queda de D. Pedro II e a proclamação da República: "Deve ser muito triste ser obrigado a abandonar o País onde se nasceu e cresceu". Neste novo regime, nascia em 9 de outubro de 1892 a filha caçula de Joaquim Miguel: Avelina Couto. Pequena e frágil (comparada aos outros filhos), Avelina logo toma o gosto pelas letras.

Em 9 de agosto de 1919, através da portaria nº 191, Avelina Couto é nomeada pelo prefeito de Santos para exercer o cargo de professora da Escola Mista de Cubatão, em substituição a Anna Dias Pinto e Silva. Mais tarde, Avelina se tornaria a primeira funcionária pública federal da região, ao exercer o cargo de Agente dos Correios.

VII - Em outubro de 1922, Joaquim Miguel tem sua última alegria: vê sua vila ser elevada à categoria de Distrito de Paz pela lei nº 1871. Pouco tempo depois, em 1924, velho e doente, Joaquim Miguel morre em sua casa, nos braços de Avelina. Não pôde presenciar o relativo sucesso de seus dois filhos: Joaquim alcança o posto de capitão do Corpo de Bombeiros de Santos, e Abelardo o cargo de chefe da Estação da Luz de São Paulo. Pelo costume da população, o estreito caminho que cortava as terras de Joaquim Miguel passou a ser conhecido pelo seu nome, e parte do local onde morava recebeu o nome de Vila Couto.

Casada com seu primo Manoel Antônio do Couto, em 1918, Avelina herdou de seu pai a humildade e a simplicidade, bem como o amor pela sua terra. Além disso, coube a ela, como herança, a modesta casa de seu pai, situada na antiga Av. dos Bandeirantes nº 165 (atual Av. 9 de Abril, 2.190). A antiga casa viria a ser demolida para construção da segunda pista da Av. 9 de Abril (nos anos 60).

Abandonada pelo marido, em 1929, Avelina continuou morando na casa de seu pai, onde também funcionava os Correios. Tinha três filhos: Maria, Tabajara e Joaquim.

VIII - Pouco depois, é demitida dos Correios, sendo obrigada a alugar sua casa e morar no porão da casa de um velho amigo. Passou a sustentar a família com a venda de seus bordados e crochês, que alcançou sucesso até em Santos.

Mesmo assim, vai aos poucos perdendo todas as suas coisas na luta pela sobrevivência. Seu filho Joaquim era obrigado a caçar e pescar todos os dias para terem o que comer.

Em 1948, comprovada a sua injusta demissão, Avelina é readmitida como agente dos Correios de Cubatão. Retorna à sua velha casa, trabalhando ativamente na coleta de assinaturas para o requerimento que solicitava a emancipação política de Cubatão.

Joaquim Couto, filho de Avelina, que participava das reuniões noturnas que antecederam a ida da comissão emancipadora ao Rio de Janeiro, relata as discussões: "As reuniões se alternavam nas casas de vários moradores. Eram homens sérios, principalmente Domingos Rodrigues dos Santos. No fim, a futura prefeitura caiu em mãos estranhas aos moradores de Cubatão, pois a cidade passou a ser área de segurança nacional, sendo seu prefeito nomeado pelo Presidente da República".

Em 9 de abril de 1949, Armando Cunha assume como o primeiro prefeito eleito de Cubatão.

IX - No início dos anos 60, Avelina recebe a visita de um antigo amigo de infância: o poeta Afonso Schmidt. Lembrando da antiga Cubatão do início do século, diz Schmidt: "Ninguém foi mais querido e respeitado em nossa cidade do que seu pai. Sem dúvida, Joaquim Miguel Couto foi o grande homem de seu tempo, legítimo filho de Cubatão". E acrescenta: "Quando mencionei seu nome na Câmara Municipal, ninguém sabia quem foi ele. Acredito que esta seja a lógica: todo homem simples logo é esquecido pela história de sua comunidade".

Em 1981, aos 89 anos de idade, Avelina morre na Santa Casa de Santos. Na missa de corpo presente, na capela do cemitério de Cubatão, seu neto, Frei Márcio Alexandre Couto, assim começou sua oração: "Minha avó foi uma pessoa simples, morreu como viveu". Avelina foi sepultada ao lado de seu pai. Por sua vontade, recebi o nome de Joaquim Miguel Couto, e estas foram algumas das histórias transmitidas pelos meus antepassados.

X - Parabéns Cubatão pelo seu 51º aniversário de emancipação política, e por abrigar "a gente dos Couto" por quase 200 anos. Somos seus grandes devedores.

(*) Joaquim Miguel Couto, bisneto de Joaquim Miguel Couto (hoje nome de avenida em Cubatão) é doutorando do Instituto de Economia da Unicamp e professor universitário.

Comício de Armando Cunha em 1949, que se elegeria prefeito e assumiria a cidade recém emancipada. Cubatão Antigamente. 

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OS BANANAIS


AFONSO SCHMIDT

(Especial para a "Folha da Manhã")


Imagem: ilustração de Belmonte, publicada com o texto


Nasci em Cubatão, passei a infância à beira do rio, entre bananais. Com o tempo, troquei o sítio primitivo com a casa de pau-a-pique, os doze mil pés de bananeiras, as quatro laranjeiras amargas e uma canoa com dois varejões, pela cidade com suas praças, avenidas, palácios e uma população diligente que trabalha para viver e vive para trabalhar. Sinto que mudei. Por outro lado, os que chegam de serra-abaixo contam-me que os bananais também mudaram.

O sítio do Salvador ficava entre a serra e o rio, mesmo diante de uma itupava que era para os olhos um tear de águas fiadas por entre pedras, tecendo guirlandas de espumas. De noite, quando o vento dormia, quando nem sequer se escutava o palpitar da vegetação, a corredeira cantava. Cantava o que? Cantava o que a gente quisesse. Era só atentar o ouvido e, do queixume das águas, surgiam, desdobravam-se na noite quente, harmonias de órgão.

Os contrafortes da serra começavam no quinta. De certos pontos se via, ali mesmo, como a silhueta branca de uma noiva, o salto. O síto chamava-se do Salvador porque foi Pai Salvador o seu último caseiro. Havia também o de Pai Benedito, pelo mesmo motivo. Para o lado de cima da Água Fria e de Pilões, os morros tinham nomes sugestivos: Mazagão, Pai Cará, Mãe Maria, Tomé de Pina. Eram nomes que cheiravam a África, a Portugal do Descobrimento.

Para lá dos picos da serra, ficavam as terras do Zanzalá, nome que lembra "zahr Allah", flor de Deus, ou "zanerelali", flor da altura. Francisco Martins dos Santos, historiador da minha terra, acha que esse nome é do primeiro morador daquela região, mas eu acho a sua explicação terrivelmente certa. Prefiro a outra. Zanzalá deve ser a expressão com que o preto muçulmano designava a aleluia, árvore que viceja nos pontos altos da serra e que, no mês de março, floresce como pinceladas de ouro.

Do lado de baixo do sítio ficava, para os que iam a pé, o Morro do Poço e, para os que iam de canoa, o Poço do Morro... Era um cotovelo do rio onde as águas remoinhavam, cavando profundamente o leito. Passava-se por cima dele num caminho de cabras, entre o barranco a pique e o mistério das águas negras em que se espelhavam os ingazeiros. Quando o rio enchia, isto é, quando estava de "água do monte", como se dizia, o caminho ficava encoberto. E a gente do Salvador via-se ilhada. Durante uma semana, ou mais, comia-se o que Deus dava. Moía-se a cana na engenhoca e com a garapa coava-se o café. Preto velho pitava folha de cambuci. As refeições eram constituídas de palmito inhame, taioba, mangarito, ou alguma caça que os camaradas traziam dos mundéus, perdidos na mata encharcada.

O rio subia aos saltos, como se já pelas cabeceiras desmoronassem açudes; galgava os barrancos, espraiava-se pelo terreiro ameaçando a casa. E os moradores dormiam com a porta do quintal sem tramelas, apenas encostada, esperando a hora, que felizmente não chegou, de correrem, trouxa à cabeça, para o morro mais próximo. Quando a cheia era bravia, grandes árvores arrancadas dos barrancos rolavam pelo rio, virando de ponta-cabeça, mostrando ora a copa escorrida, ora as raízes esbranquiçadas, em cambalhotas, com vergastadas e estrondos que punham pequenino o coração da gente. Naquelas noites, a itupava (N.E.: pequena queda d'água) não tinha harmonias de órgão, mas os sapos dialogavam no quintal e as untanhas, "que tinham chifres", berravam lugubremente pelas várzeas alagadas.

Nos bananais do litoral, como em muitas propriedades agrícolas do interior, os trabalhadores são chamados de camaradas, como nos núcleos socialistas, ou nos quartéis. De onde virá esse costume? O camarada era, naquele tempo, um caiçara que deixava a roça de mandioca, à beira-mar, para ir melhorar de sorte nos bananais de Cubatão ou do Jurubatuba. Entre eles, contavam-se também trabalhadores vindos de outros Estados. A procedência se lhes apegava ao nome. Benedito Baía, Pedro Guasca, Mané Ubatubano, Chico Cananéia, que sei eu!

Muitos eram andantes. Nunca mais ouvi essa palavra... Andante era o marinheiro fugido de bordo, o desertor, o evadido que dava um nome qualquer e esquecia o passado. Ninguém lhe fazia perguntas. No sítio [d]o Salvador trabalhou um austríaco que falava diversas línguas, deleitava-se com os gregos e lombava cachos de bananas do carreador para a picada. Um dia foi ao povoado comprar tabaco e nunca mais voltou. Fez a viagem do corvo. Outro estrangeiro interessante... Mas para que contar estas coisas?

Não creio que o bananal melhorasse a sorte de ninguém, pelo menos naqueles dias. Os camaradas moravam em ranchos de palha, dormiam em tarimbas de varas com esteira por cima, construídas ao longo das paredes esburacadas. No centro do rancho ardia, a noite inteira, um fogo de lenha verde, verdadeira fábrica de fumaça, para afugentar os pernilongos.

Guardavam a roupa - os que tinham roupa - em baús de folha feitos na Cadeia. Esses baús eram vistosos e tinham na tampa uma grande rosa pintada, certamente, com a ponta do dedo, pelo recluso artífice. A alimentação era exclusivamente de feijão, nacos de carne seca e uma conchada de arroz.

Certa vez, houve no sítio um corre-corre porque, como abundasse a criação, os donos se lembraram de substituir a carne seca por galinhas e ovos. A comissão que foi parlamentar com o patrão alegou "que galinha era imundície, deixava tísico". Ganhavam 2$000 por dia de trabalho. E o dia de trabalho nos bananais, há quarenta anos, era uma coisa espantosa.

Por hoje chega, mas ainda tenho um samburá de lembranças, muita coisa velha para contar.


Transporte fluvial de bananas entre os sítios serranos e o porto de Santos. Novo Milênio.

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PEDRA GRANDE

UM SÍTIO LUSO-VICENTINO NO ITUTINGA-PILÕES




ANTÔNIO NUNES, DE FERREIRO A PRODUTOR DE BANANA


LUIS RENATO THADEU LIMA


Antônio Nunes nasceu na Freguesia de São Joaninho, município de Santa Comba Dão em Portugal. Pouco se sabe da sua infância e imigração para o Brasil.

Com certeza no final do século dezenove residia a Rua Ipiranga 12, onde tinha oficina de ferreiro e anunciava seus serviços no jornal “O Vicentino”, vendia e instalava canos de água e esgoto, reformava carroças, consertava máquinas e atendia nas residências.

No mesmo período casou-se com Camilla Maria Inocêncio de Farias nascida na região da Jureia no litoral sul do estado. Da união do português com a praiana nasceram seis filhos: Walter, o primogênito nascido em 1898, Elvira (Mocinha), Maria de Lourdes (Mariquinha), Isaura, José (Zezé) e Oriete.
Decidiu, talvez incentivado pelo cunhado Capitão Gregório Inocêncio de Farias [vereador em São Vicente de 1899 a 1901], ao plantio, cultivo e venda de bananas.

Formou quatro sítios em Itutinga denominados Pedra Grande (ou Duas Pedras), fazendo divisa com o Rio Cubatão e a Estrada de Ferro Sorocabana, no município de São Vicente, pois Cubatão obteve sua autonomia somente em 1949.
              
Além da banana plantou laranjas, mexericas e construiu alambique e também uma serraria que forneceu as tabuas para o assoalho da Ponte Pênsil, em cuja construção Antônio trabalhou com seu conhecimento de funileiro e ferreiro. Na sua oficina foram feitos vários lampiões para iluminação pública de São Vicente, inclusive os quatro que até alguns anos ladeavam o monumento da Praça 22 de Janeiro.
 
Tudo indica que em 1910 ele já residia com a família no sitio aonde se chegava pelas ferrovias bananeiras, saindo da Estação de Cubatão num trolei (veiculo de inspeção de linha) e por onde a banana era embarcada em pequenos vagões, provavelmente da Ferrovia Itutinga Pilões que ia de Cubatão até a represa da Companhia City e depois, na década de 1930, até a Estação Mãe Maria da Sorocabana.
Sua filha Mariquinha ensinou os irmãos menores a ler e escrever, e depois do almoço Antônio a chamava: "Ó Maria vem cá a ler o jornal para mim".

Em 1914 recebeu uma correspondência de um compadre sobre uma herança em Portugal, mas segundo se sabe não deu a mínima importância.

Antônio morreu em 25 de novembro de 1917 e Camilla assumiu o comando dos sítios com ajuda dos filhos Walter e Zezé e do funcionário Eduardo Rita. Os filhos menores de idade ficaram sob a tutela do advogado Lincoln Feliciano da Silva.

Um fato interessante é que a família tinha apenas uma foto de Antônio, tirada no navio vindo de Portugal, e após sua morte a levaram num estúdio fotográfico em Santos para reprodução. No período o comercio sofreu um incêndio que destruiu o acervo incluindo a única foto de Antônio Nunes,
Camila era mulher enérgica e decidida exigindo dos filhos e filhas honrarem seus compromissos, sua filha Isaura foi professora em Itutinga até 1925 ,quando se casou com Camillo Thadeu, outra filha Oriete casou-se com Francisco Papalardi em 1929 em cerimônia realizada no próprio sitio.
     
Casou-se em segundas núpcias com José da Silva Amaral e foi residir em Santos, na Avenida Marechal Deodoro, em um sobrado construído com o dinheiro resultante da venda de banana.
Camilla morreu em nove de janeiro de mil novecentos e trinta e oito, e em maio do mesmo ano foi feita a partilha amigável dos sítios e outros bens, sendo os filhos, já maiores e casados, representados pelo advogado Lincoln Feliciano. 

Se a única foto de Antonio se perdeu, de Camilla a família tem apenas uma foto da época do seu segundo casamento.

Seus filhos Walter e José juntamente com o cunhado Francisco trabalharam muito anos na empresa Comercial Construtora.

Walter, depois de aposentado, voltou para São Vicente onde faleceu. Seu neto Luis Fernando Nunes Junior vive em São José dos Campos e colaborou no resgate destas memórias do bisavô Antônio e da bisavó Camilla. Elvira ou Mocinha tem sua descendência no Paraná. Maria de Lurdes ou Mariquinha tem dois filhos ainda vivos em Santos: Nédio da Silva Amaral e Nilce Silva Amaral.  Isaura faleceu em 2007 com 101 anos e sua filha (minha mãe) Neyde Thadeu Lima tem hoje 97 anos. José foi um dos pioneiros da cidade de Telêmaco Borba, no Paraná, onde residem seus descendentes. Oriete teve uma filha Nair e uma neta Camila Oriete, que mora em Ponta Grossa no Paraná.

Outros bisnetos e trinetos deste casal também são profissionais bem sucedidos, e foi pensando neles, que junto com o primo Luis Fernando, que me arrumou uma cópia do inventário da bisavó Camilla, decidi resgatar e registrar a história deste casal, que faz parte da história de São Vicente e Cubatão, e que originou a nossa família.

Gratidão também a minha Avó Isaura e a Tia Oriete que transmitiram oralmente ao Fernando (a tia Oriete tinha especial carinho para com os netos do Tio Walter) e a mim os fatos do sítio; e a minha mãe Neyde que guarda com carinho as fotos deste período, sendo que a da bisavó Camilla tem lugar de destaque na sala da nossa casa.

Os sítios atualmente devem fazer parte do Núcleo Itutinga Pilões, no Parque Estadual da Serra do Mar, e as terras da família de Camilla ficavam na área da Estação Ecológica Jureia- Itatins em Peruíbe, locais abertos a visitação.






Foto 1: Casa principal do sítio. F.2: Troley em carregamento. F3. Casamento de Oriete e Francisco em 1929. F4:Oriete, Isaura (filhas) e Neyde no colo (neta)-1928. Foto 5: Correspondência de Portugal comunicando a  herança recebida por Antônio Nunes. Foto : retrato de Camilla Maria Inocêncio de Farias.


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O DESAPARECIMENTO DO MARCO ZERO




Marco Zero sumiu por quatro anos - Novo Milênio

Durante quatro anos, Cubatão ficou sem sua referência geográfica básica, o chamado Marco Zero, que serve como base para as medições e localizações de áreas no município. A peça reapareceu no depósito de uma empresa local, como relataram os jornais do dia 13 de janeiro de 1983 (uma quinta-feira). Esta é a notícia do jornal Cidade de Santos:

O marco zero, ponto geográfico central do Município de Cubatão, que havia desaparecido, foi localizado terça-feira - por uma comissão designada pela Prefeitura e presidida pelo procurador Clóvis Pereira de Carvalho Filho - em um depósito da Engeterpa.

Segundo antigos funcionários e moradores da cidade, o local do marco geográfico ficava distante dois metros do antigo Cruzeiro Quinhentista. Quando a Condephaat autorizou a Prefeitura, em 1979, a fazer o desmonte devido às rachaduras na estrutura, todas as peças foram encaminhadas ao D.E.R., com uma numeração, para que posteriormente fosse facilitada a sua remontagem. Fotos também foram tiradas para ajudar nesse trabalho. O marco geográfico acompanhou essas peças e foi igualmente encaminhado ao D.E.R. Como a Engeterpa foi a firma contratada para a remontagem do monumento, todas as peças foram-lhe entregues, inclusive o marco e até hoje encontrava-se sob a sua guarda, uma vez que ele não fazia parte da estrutura do cruzeiro.

O prefeito José Osvaldo Passarelli e todos os membros da Comissão designada para localizar o marco estiveram no depósito da Engeterpa, constatando a falta da cruzeta indicativa dos pontos cardeais, peça que ficava em cima da esfera, que possui a inscrição: "Comissão Geológica, Geográfica, Nivelamento". A Prefeitura deverá recuperar o marco para torná-lo igual à peça original.

Mas os trabalhos da Comissão não param aí, pois deverão manter contato com o Instituto Geográfico e Cartográfico para a correta recolocação do marco, tendo em vista que é a partir dele que se registram com exatidão os pontos de partida geográficos para a demarcação dos limites do Município. Além disso, de acordo com a Lei Orgânica dos Municípios, podem as Prefeituras reivindicar ao Serviço do Patrimônio da União (SPU) as terras devolutas, situadas em um raio de 8 quilômetros a partir desse eixo geográfico. E como a Administração tem interesse em áreas que estão enquadradas nessa situação, é importante que seja recolocado o marco.

E esta foi a notícia no jornal santista A Tribuna:

REENCONTRADO O MARCO ZERO EM DEPÓSITO DE EMPRESA


O marco zero de Cubatão, peça que marcava o ponto geográfico central do Município, foi reencontrado ontem, pela comissão nomeada pelo prefeito José Osvaldo Passarelli, após a denúncia feita por este jornal sobre seu desaparecimento. A peça foi encontrada no depósito da Engeterpa e teria ido parar lá por ocasião da remontagem do Cruzeiro Quinhentista.

O local do marco zero ficava, segundo antigos moradores de Cubatão, a cerca de dois metros de distância do antigo Cruzeiro Quinhentista. Quando o Condephaat autorizou a Prefeitura, em 1979, a fazer o desmonte daquela estrutura, as peças foram encaminhadas ao DER. O marco foi também para esse órgão, mas acredita-se que não tenha sido catalogado pelo Condephaat. E a Engeterpa, responsável pela remontagem do Cruzeiro, recebeu todas as peças, inclusive o marco, que manteve no depósito como sucata, uma vez que ele não fazia parte do monumento.

Ao serem comunicados do achado, o prefeito e todos os membros da comissão estiveram no depósito da Engeterpa, ontem, e verificaram que no marco falta a cruzeta indicativa dos pontos cardeais. Esta ficava sobre a esfera que possui a seguinte inscrição: "Comissão Geológica, Geográfica, Nivelamento". A Prefeitura deverá recuperar o marco, tentando torná-lo semelhante ao original.

Ainda divergências - Mas, os serviços da comissão do marco zero não terminaram. Seus membros vão entrar em contato com o Instituto Geográfico e Cartográfico para saber a correta recolocação do marco, pois é a partir dele que se registram com exatidão os pontos de partida para a demarcação dos limites do Município.

A exata localização do marco zero é motivo de polêmica, pois há quem acredite que ela seria nas proximidades da Igreja Matriz. A recolocação do marco é importante também para que a Prefeitura possa reivindicar áreas devolutas de seu interesse situadas em um raio de oito quilômetros a partir desse eixo.


O reencontro do marco geográfico de Cubatão. Foto divulgada pelo historiador cubatense Arlindo Ferreira em seu perfil na rede social Facebook, em 27 de abril de 2014


Meses antes, o mesmo jornal santista A Tribuna registrava a preocupação com o sumiço da peça, em matéria publicada no dia 30 de dezembro de 1982:

CUBATÃO FICA SEM MARCO GEOGRÁFICO


CUBATÃO - A questão da disputa de áreas da Cosipa na divisa de Santos com Cubatão poderá piorar a partir da constatação de que o marco zero, ponto geográfico central da cidade, foi aterrado ou desapareceu, durante as obras de reconstrução do Cruzeiro Quinhentista, nos últimos meses de 1979, ainda na administração Carlos Frederico Soares Campos.

Ontem, durante a procura desse marco - que registra a latitude e longitude em relação à marca horária de Greenwich - constatou-se também que o Monumento do Cruzeiro Quinhentista, deslocado para as proximidades da Refinaria Presidente Bernardes, está afundando no solo.

O afundamento é visível pelas inúmeras rachaduras na base dos imensos blocos de concreto que constituem o monumento. Acredita-se que a causa das rachaduras esteja no estaqueamento mal feito, ou na infiltração de água do córrego que passa sob o monumento. Na época, a Prefeitura gastou uma verdadeira fortuna em estaqueamento, e muito antes da base da cruz ser armada, já se registravam os primeiros afundamentos. O estaqueamento foi revisto, e agora se descobriu que não suportou a carga de algumas toneladas representadas por imensos blocos de pedras talhadas em 1922, pelos operários dirigidos pelo arquiteto francês Dubugras. A Prefeitura deverá agora escorar o monumento, para que ele não ofereça riscos de desabamento.

Tudo sepultado - Para moradores mais antigos, a restauração do Cruzeiro Quinhentista, alterando-se a antiga localização (avançou cerca de 200 metros no sentido da Refinaria Presidente Bernardes) representou uma ofensa à tradição histórica do município. Os apelos desses moradores, na época, não foram levados em conta, porque técnicos do Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico, Arqueológico e Turístico do Estado - Condephaat - acharam que a alteração seria insignificante.
A remoção tornou-se necessária porque o antigo Cruzeiro também estava afundando no solo, em razão da infiltração de água que corria do Morro da Boa Vista. A pista foi elevada em quatro metros, e fizeram-se obras de drenagem. Na época, várias pessoas alertaram para o fato de o marco geográfico ficar ao lado do monumento, próximo a um pequeno jardim. Era uma pedra, tendo ao centro uma placa de bronze com as inscrições: "Marco zero: latitude 23º50' e 23º55' e longitude: W de Greenwich 46º30". Apontava ainda os pontos cardeais.

Técnicos da Coordenadoria de Obras da Prefeitura garantiram que o marco seria preservado, elevando-se o padrão em três metros, e fazendo-se referência ao fato, para evitar distorções.
Nada disso foi feito, segundo alguns funcionários mais antigos da Prefeitura, que não se recordam dessa alteração ter sido executada. Supõe-se que o marco foi sepultado pelo aterro, ou simplesmente roubado por algum colecionador.

A última foto desse marco foi publicada por este jornal, em 1977, dias antes de se iniciar o desmonte do Cruzeiro Quinhentista, durante visita do ex-presidente do Condephaat, Carlos Lemos.

História esquecida - Sem o marco, torna-se difícil registrar com exatidão os pontos de partida geográficos para a demarcação dos limites. Além disso, de acordo com a Lei Orgânica dos Municípios, podem as prefeituras reivindicar ao Serviço do Patrimônio da União (SPU) as terras devolutas (sem dono) situadas em um raio de oito quilômetros a partir desse eixo geográfico. Para efeito de comparação, o marco tem a mesma significância da Praça da Sé, em São Paulo, onde se localiza o ponto zero da Capital.

Segundo suspeita do vereador Florivaldo de Oliveira Cajé, do PMDB, grande parte das terras recuperadas pela Cosipa - em cerca de seis milhões de metros quadrados - ao mangue seriam terras sem dono, e deveriam ser reivindicadas pelo município, porque se localizam na faixa dos 8 quilômetros.
Ontem, o vereador Armando Campinas Reis, do PMDB, ao saber do sepultamento do marco geográfico da cidade, disse que essa era mais uma mazela dos prefeitos nomeados para administrar a cidade. Esses prefeitos permitiram a alteração de todo o traçado antigo da cidade e as modificações que destruíram o acervo histórico do município.

"Cabe ao atual prefeito, que mora na cidade, reparar esses erros, procurar apurar responsabilidades da remoção do marco, e providenciar para que seja recolocado no ponto certo, se necessário com o auxílio do professor Aziz Ab'Saber, que traçou os limites geográficos da cidade", disse Campinas.

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AFONSO SCHMIDT E SEU TEMPO 

 3/4/1964, texto com redação de Henrique L. Alves e Mário Donato e iconografia da Coleção Afonso Schmidt existente na Biblioteca Municipal e Arquivo Histórico de Cubatão. A impressão do livrete foi feita na Gráfica Prodesan, de Santos, com patrocínio da Prefeitura Municipal de Cubatão:
 


Afonso Schmidt em 1908, logo após o seu regresso da Europa
Foto publicada com o texto. Publicada também, em 1954, na revista Fundamentos nº 34, pág. 6


Estamos em 1890. Uma República em vigor, A vida na Baixada Santista não apresentava novidades. Uma parada de trem entra na história, dessas paradas que possuem apenas um pequeno abrigo e um nome: Cubatão. Nada mais. O trem passa dia e mais dia, parando vez ou outra, quando alguém deseja apear.

"Ali nascia, vivia e morria gente, gente criada preguiçosamente, ao embalo do trem, que tinha nomes, dramas, amores e ódios, gente que pertenceu a um romance jamais escrito e cuja existência se enriquecia de novos episódios, a cada passagem pela estrada, a cada conseqüente evocação do poema dedicado à vila humilde." (carta de Afonso Schmidt a Nair Lacerda ao evocar a sua terra natal).

O ambiente dos bananais, lírios e sapos do brejo é um poema. Uma estrada que se abria ao horizonte rumo ao infinito. "Ao fundo, a Serra. Pinceladas frouxas/De ouro e tristeza em fundo azul..." formava o painel de um passado. "Gente tostada que desfolha o mangue,/Crianças pálidas que vêm da escola".

29 de junho de 1890. Nasce um menino predestinado a futuro promissor, enquanto balões riscam festivamente o céu na orgia de "Curiangos". Um mundo se descortinou aos olhos do menino, visão de um cenário:

"Nasci em Cubatão, passei a infância à beira do rio, entre bananais. Com o tempo, troquei o sítio primitivo com a casa de pau-a-pique, os doze mil pés de bananeiras, as quatro laranjeiras amargas e uma canoa com dois varejões, pela cidade com suas praças, avenidas, palácios e uma população diligente que trabalha para viver e vive para trabalhar. Sinto que mudei. Por outro lado, os que chegam serra-abaixo contam-me que os bananais também mudaram".


A casa onde nasceu Afonso Schmidt, em Cubatão
Foto publicada com o texto. Publicada também, em 1954, na revista Fundamentos nº 34, pág. 9


E passados quase 100 anos, muita coisa mudou em Cubatão, ficando apenas os contrafortes da serra, esfumaçada pelo complexo industrial. E raramente floresce o amarelo-ouro da flor do reino de Zanzalá, terras da serra a lembrar "Zanr Allah", flor de Deus, ou "Zanerefail", flor da altura. Esse vocábulo do preto muçulmano a determinar a aleluia que floresce em março, vislumbrando a abolição da escravidão, cujo centenário transcorre neste ano (N.E.: 1998).

A sua infância está contida em crônicas, poemas e romances e representa significativas evocações de um tempo, carregado de fatos e acontecimentos, numa descrição comovente para qualquer época. Teve ao longo de sua vida um anjo tutelar, a sua mãe, a quem devotou página primorosa. Sentia que ela se debruçava e "sem dizer palavra, chorando comigo, sugeria o caminho mais acertado. Seu nome fazia milagres. Se não descambei para o mal, se trago, por acaso, alguma coisa de aproveitável, ao cabo desta jornada incrível, a ela, exclusivamente a ela, o devo - minha mãe!"

E o jovem Afonso Schmidt, com a obsessão da estrada, caminhou pela vida cruzando muitos caminhos. E eles se tornavam limpos e luminosos, graças ao respeito e ternura que sempre dedicou a Odila, sua mãe. E foi ela que providenciou o início do escritor, ajudando a publicar seus primeiros livros.



Foto 1: Adeline Gueit, mãe de Marie Josephine, foi bisavó de Afonso Schmidt. Foto 2: O pai de Afonso Schmidt, João Afonso Schmidt, nascido em 4/5/1859 e falecido em 24/1/1927.
Acervo do Arquivo Histórico Municipal de Cubatão.



Desafiava aos dezesseis anos toda uma sociedade, quando vê nas primeiras páginas de seu livrinho o seu retrato, "cabeleira, gravata borboleta, uma atitude hostil para com os preconceituosos armazeneiros da rua Piratininga..." Levou os mil réis contados e amealhados com sacrifício para o tipógrafo Thomaz, da Typ. Thomaz Stocco, para a edição dos primeiros versos, intitulados Lírios Roxos. Em duas palavras dirigidas à querida leitora, dizendo que seus versos são simples "como podem ser os sonhos e as aspirações aos quinze anos", Afonso Schmidt relembra seu início e afirma:

"Tempos depois, dei o livro a um poeta em moda naqueles dias, um poeta de rimas como o classificaria o Osmar Pimentel, e ele se pôs a contar as sílabas nos dedos. Não entendi aquilo. Ele me explicou, caridosamente:

- Falta metrificação.

- Falta o quê?

- Metrificação...

- Sei lá que diabo é isso...

Era a primeira vez que ouvi semelhante palavra que deveria atormentar-me ainda por muitos anos. Foi mais ou menos assim que comecei.

O poeta nasceu daí."


Afonso Schmidt e Adélia Leoni Schmidt, em 1922, o ano em que se casaram
Original de foto publicada com o texto, no acervo do Arquivo Histórico Municipal de Cubatão



Aos 21 anos consegue a proeza de ser reconhecido pela Academia Brasileira de Letras, ao concorrer ao prêmio de poesia com Janelas abertas, e tem como relator Silvio Romero, autor de História da Literatura Brasileira. Em seu parecer reconhece a poesia do jovem, onde desponta "boa métrica, felizes imagens, real inspiração". Acha futuro no autor e destaca os poemas Beijos, Aquário, Coração fadista e No campo, considerados "lindíssimos".

Já Rubens do Amaral, ao travar amizade com Schmidt, considerou-o um mau foca no jornalismo e a sua prosa era eivada de muitas impropriedades, como "mau noticiarista".

"Quando publicou Janelas abertas, conheci Afonso Schmidt fazendo jornalismo. Por sinal que me pareciam muito mal redigidas as suas notícias. Ao ponto de eu haver decidido que ali estava o caso dos poetas excelentes que não sabem escrever prosa, como Alberto de Oliveira, como tantos outros...".

Talvez esta opinião tenha influenciado o poeta a se dedicar ao jornalismo. Produz durante muitos anos boa poesia, acabando por incursionar na ficção em 1922. O jornalismo foi a grande oficina a moldar um estilo e forma para criar contos, novelas e romances. Determina com essa experiência um lema onde ele "daria tudo para atingir a última simplicidade, de modo a exprimir coisas pensadas em palavras vividas; enxugar a prosa até poder falar ao tecelão com a fluência do fio mercerizado que escorre dos teares, ao ir e vir, azeitado, das lançadeiras".


Familiares de Afonso Schmidt, em 26 de julho de 1931. Original de foto publicada com o texto, no acervo do Arquivo Histórico Municipal de Cubatão


Anarquista, revolucionário, empreende viagem pela Europa para vislumbrar novos horizontes. Tem na boêmia a integração de rumos de tantas estradas trilhadas. Escreve Ode aos russos, primeira expressão de exaltação à revolução socialista escrita por um poeta latino-americano. E laudas e mais laudas de papéis são consumidas, deixando aos poucos a poesia. Cassiano Nunes tem este conceito:

"Zombaria do destino. O anarquista que não queria se escravizar nem à fortuna, nem à glória, nem à felicidade, foi se entregar, sem queixas, à tirania de uma banal máquina de escrever. O poeta, que tudo queria sacrificar pela poesia, teve que deixar de escrever poemas, porque só a prosa, no Brasil, consegue obter algum rendimento".

Passa o seu tempo preocupado com o cotidiano. Escreve sobre fatos e acontecimentos do momento para usufruir a oportunidade. Diríamos que Schmidt foi o grande repórter de São Paulo e de sua época. Vivia a cada dia com a intenção de registrar os instantes e as inquietações de seu povo.

Afonso Schmidt incursionou ao teatro com Levianas e fez muito sucesso, inclusive, o de ser encenado nos palcos de Buenos Aires, com aplausos consagradores. Agripino Grieco, crítico mordaz, ele que se arvorava, dizendo: "Quem tem razão sou eu, quando me revolto contra as forças pornográficas dos deseducadores das platéias do país", considerava Schmidt como "admirável poeta e um dos melhores prosadores brasileiros". Louvava Levianas como peça integrada dentro da técnica teatral da época e acrescentava:

"É um trabalho sutil, de uma arte encantadora com trechos irônicos e trechos apaixonados. Conciliando verdade e poesia, oferece-nos ali deliciosas condensações de malícia, perversidades de felino civilizado, a par de notações líricas e de notações psicológicas de alguém que não encontra a menor dificuldade em traduzir a linguagem cifrada dos alunos. O sr. Schmidt pode ainda dar-nos peças bem superiores a essa, de resto já bastante elogiável em si mesma. É ele um desses talentos robustos em condições de renovar o teatro e melhorar o público".

Pouco produziu neste setor, ficando como ponto de referência a presença de Schmidt, autor de algumas peças encenadas, todas com sucesso. Resta a expressão de Agripino Grieco, cáustico como crítico, complacente com as boas produções na arte literária e, em especial, na fase em que era crítico teatral. Essa preocupação da crítica encontra nos mais variados setores uma palavra em torno do Schmidt, tal como faz Maria de Lourdes Teixeira:

"Romances, contos, novelas, crônicas ou memórias, em cenários recentes ou antigos, apresentam a constante de um blackground de mural paulista, sem motivos retóricos ou barrocos, a que se irá valorizando cada vez mais, à medida que os anos decorreram. Gerações diversas perpassam por essas páginas, sucedendo-se figuras populares e intelectuais, estudantes e boêmios, artistas e aventureiros, brancos e pretos, gente da terra e de além-mar, operários e vagabundos, poetas líricos e anarquistas românticos, de misturas com instantâneos da vida paulista de hoje e de sempre".

O futurismo tão em voga na Europa, a abrir caminho entre os intelectuais, empolgando o escritor ao considerar essa onda de excentricidades. Dizia que o "futurismo é uma poeira azulada de artistas de nomes bizarros, que empana, com miríades de livros quisilhantes, o poente ensangüentado de uma era - e o futurismo dos que verdadeiramente são inovadores, daqueles cujo espírito criador deixaria um sulco profundo em qualquer época e em qualquer escola".

Era o reinado de Marinetti, o apóstolo; Soffici, o evangelista; Polazeschi, o realizador; e Papini, o iconoclasta, todos a poder de talento, sabedoria e audácia tentavam impor um programa que tinha por lema: renascer. L'Acerba renovou a arte e Clarté a sociedade, com o objetivo de destruir para reconstruir uma novidade. O debate sobre a estética da arte empolga os jovens e o artigo Futurismo, de Afonso Schmidt, traz considerações sobre idéias, onde a arte para Zola era uma esmeralda e para Soffini um raio de sol. Schmidt conceitua:

"Ao contrário da poesia atual, a poesia futurista deve surpreender pela forma, despertar emoções desconhecidas pelo ritmo e conjunto, mesmo porque, segundo as suas afirmações, o artista vai unicamente pelo que apresenta de absolutamente original na soma comum dos valores estéticos, ou porque a originalidade não tem limites, como é sem limites a variedade dos seres e das sensibilidades".

Essa visão do futurismo, artigo publicado em 1921, dá a dimensão da presença do poeta em seu tempo, visando captar as transformações que vão se sucedendo, ano após ano. É uma lição de estética e suas conseqüências, analisado por um espírito preocupado com os destinos da humanidade, em sua trajetória evolutiva. Viveu aventuras e provocou façanhas como intelectual, dando o melhor de seus esforços. Integral na boêmia humanizada, galante, cheia de vida, sol, seiva. Mantinha um ardor pela luta das idéias e achava a existência de uma obra boa ou má, efêmera ou duradoura.


Suas crônicas ou depoimentos marcam um tempo, na dimensão interpretativa de uma visão global:

"Sou filho do litoral. Vi o oceano lutar contra o rochedo. Toda onda que se atira contra a pedra, volta esfarrapada, desfeita, vencida: no entanto, os penhascos vitoriosos vão de ano para ano desaparecendo da fímbria do mar. Essa é a luta do pensamento contra o interesse, do novo contra o estabelecido. Há milênios que nós assistimos a um calculado esmagamento das idéias, pelas armas, pela calúnia, pela corda, pela cadeira elétrica. No entanto, apesar disso, o pensamento humano continua a desabrochar como uma grande flor. A nossa vida é constituída de derrotas".

Podemos afirmar que o escritor tinha sempre a esperança do amanhã. Acreditava no seu ideal e propugnava por uma aurora de libertação de seu povo. Tinha em mente que as suas preocupações ideológicas teriam uma vitória. E assim sonhou e lutou, durante toda a sua vida, marcando presença em movimentos políticos.

A identificação de seu tempo está na participação do cotidiano, onde desponta a temática episódica em busca de tesouros perdidos, ou melhor, escondidos. Assim o fez com o negro e sua luta pela liberdade, ao remexer nas canastras da História, e dizia: "Encontrei tanta coisa bonita, que fiquei com pena de estragar o assunto".

Manteve contato com gente lúcida que viveu o período e obteve subsídios importantes para sentir o que foi a luta abolicionista. Considerava a epopéia abolicionista coisa muito séria. Como escritor, procurou determinar conceitos sobre sua profissão. Merece registro o seu depoimento sobre o livro A Marcha, publicado como contribuição para as comemorações do cinqüentenário da abolição, e o registro dessas palavras ganha notoriedade no centenário do evento:

"Qualificativo de escritor popular é aquele que mais me convém, por ser o mais verdadeiro. Na vida e na literatura, ao longo de uma existência que já se vai fazendo comprida, procurei ser o intérprete dos que me cercam, os que esperam na mesma fila, os que viajam no mesmo ônibus, os que me acotovelam na rua, no café, no cinema, por toda parte.

"Por uma questão de temperamento, de formação intelectual, nunca mantive estreitas relações com os colegas, nas redações das revistas, nos clubes disto ou daquilo, nos salões literários que, em certos dias da semana, fazem e desfazem reputações. Não ponho nessa esquivança minha caridade, antes dela me penitencio. A verdade é que se tivesse freqüentado esses meios escolhidos, meus romances, meus contos e até mesmo meus poemas de outros tempos não seriam viveiros de vadios, de desajustados, de boêmios e de homens à procura de qualquer coisa difícil de encontrar.

"Mas eu, graças a esta maneira arrepiada de ser, fiquei com os meus personagens de carne e osso, que vivem, sofrem e esperam. Dessa humanidade triste que me coube na partilha da terra não tenho motivos para queixar-me. Aqui, por exemplo, estão os negros. Eu os conheço e estimo desde que nasci: as velhas me contaram histórias lindas, os meninos brincaram comigo à beira do riacho. Mais tarde, trabalharam na imprensa a meu lado, escreveram formosas páginas que enriqueceram a nossa literatura. Agora, conto-os com satisfação no número de meus amigos, os melhores.

"Eu tenho com os negros uma dívida imensa, que só poderei pagar com o meu afeto. Esta edição de A Marcha, primorosamente ilustrada pelo artista Álvaro Moya, lançada pela empresa Editora Brasil-América Limitada, em sua coleção Maravilhosa, profusamente distribuída pelo país inteiro, em todas as bancas de jornais, é o que de mais carinhoso se tem feito por minha obra. Colocar esse romance popular, da abolição, ao alcance de todos os que devem conhecê-lo, numa publicação correta e acessível como esta, é o que eu mais desejo, a melhor homenagem que os amigos me podem prestar. E por essa delicada iniciativa aqui deixo, comovido, o meu muito obrigado.".

Assim, Afonso Schmidt sentiu o grande instante de sua vida e exultou com o sucesso de sua obra A Marcha, transformada em história em quadrinhos, atingindo tiragem fantástica e conquistando leitores em dimensão nacional. Uma obra que fica como marco de uma marcha para a liberdade, visualizando a luta desenvolvida para abolir a escravidão. Uma epopéia de personagens que deixaram o exemplo de tenacidade.

Para marcar a presença de Afonso Schmidt no seu tempo, devemos evocar a sua preocupação pela profissionalização do escritor, defendendo a tese de que "o escritor, portanto, já tem a honra de figurar entre os carpinteiros, os médicos, os engenheiros, os tecelões e todos os profissionais". Isso ele o fez na década de 30, sem contudo querer industrializar o seu talento. Perguntas eram formuladas: o intelectual deve exercitar como profissão, a sua cultura e a sua arte? ou a pena deve ser classificada na categoria de ferramenta que arranca o pão de cada dia? Enfatizou a criação de uma associação profissional ou sindicato de escritores. Foi militante e defensor da profissão de escritor. Eis uma entrevista, cujo texto tem atualidade nos dias de hoje:

"O conceito romântico que se formou sobre nossas cabeças tem-nos prejudicado tanto que, ainda hoje, somos próprios a descrer de nós mesmos e dos que se parecem conosco. Nós somos ainda, indiscutivelmente, os nossos maiores inimigos. E cada um por si, temos de lutar contra esse preconceito, essa idéia errônea que certa gente ainda tem, a começar pelos nossos próprios companheiros. Entretanto, para combater esses velhos vícios basta citar fatos. Muitos dos maiores homens do Brasil foram ou são nossos colegas, de Pero Vaz de Caminha a Pedro II, de Ouro Preto a Getúlio Vargas. Numa terra excepcional como a nossa, onde o próprio chefe da Nação deixa o Catete para tomar parte nas reuniões da Academia Brasileira de Letras, a profissão de escritor não merece o desamparo em que se encontra.".


O escritor, a esposa d. Maria José (segundas núpcias) 

Original em sua maneira de ser, Afonso Schmidt pautou pela simplicidade e pelo humanismo. Começou como poeta numa interpolação de tendências ou escolas literárias, caracterizadas pela transição de uma poesia, cujas raízes mergulham no passado, mas que, pelo conteúdo, consegue sobreviver em nossos dias. Sua comunicabilidade terá sentido de presença sempre atual, jogando com imagens psicológicas de evocação, com pesquisa pessoal, mesclando tonalidades de revolta, com sentimento de lutas sociais.

Renata Palottini considera Schmidt como poeta puro, essencialmente poeta, "não apenas poeta no que escreve, mas também o poeta que vive, no que faz. Quem senão um poeta teria o gosto e a altura de envelhecer pobre e puro, quem teria o poder de ser amado por todos, nunca tendo renegado suas idéias nem hesitado em suas escolhas? É fácil ser amado quando se concede, quando se titubeia, quando se é ambíguo. Ser querido por honesto, a despeito de honesto, é coisa de poeta.

"A poesia de Afonso Schmidt é a miniatura delicadamente perfeita de sua obra e de sua vida. Ali se encontram em poucos poemas sua maneira de ser, as preocupações de seu coração fraterno, as dúvidas do seu espírito afligido".

O itinerário traçado ao título "Afonso Schmidt e seu tempo" tem curiosa diretriz: a difícil missão de sintetizar em poucas páginas a força e dimensão de um escritor que viveu e vibrou com entusiasmo o seu tempo. Lutando com palavras, buscando sua contemporaneidade, enxugando frases e parágrafos, sintetizando opiniões, sofrendo com cortes, chego a afirmar que o escritor vai transbordando todos os limites de espaço para traçar sua época.

Ao conviver com o mestre e amigo, ficaram tantas relembranças, tantos encontros a marcarem profundamente um período da vida literária. Não poderia deixar de registrar o instante sentido de sua passagem, ouvindo e rememorando palavras de seu companheiro Cid Franco, na derradeira saudação:

"Afonso Schmidt, meu velho e querido amigo. Amigo desde 1925 ou 26, nem me lembro mais. Você foi o criador da poesia social da fase do proletariado, como Castro Alves foi o criador da fase da escravidão. Você sofreu injustiças dos poderosos durante toda sua vida. Há mesmo uma literatura em que seu nome não se encontra.

"Agora, desce à terra. Não como um cadáver, mas como uma semente, que há de brotar e frutificar". E começa a declamar o poema Ao bater das enxadas:

"Revolve a terra, lavrador,
que anda por tudo o sol esparso,
nessa explosão de vida e amor
que aos campos traz o mês de março!
Florido enterro da semente
no seio amigo de uma cova,
para que surja, viridente,
a planta e dê semente nova...

Mas, ai! Quando a Mãe Terra estremecer no parto
e este humo palpitar em fibra, em folha, em flor,
outro aproveitará o que plantaste e, farto,
há de correr contigo, oh pobre lavrador!

Depois, ao longo dos caminhos,
órgão de amor, judeu sem lar,
errante como os passarinhos,
que Junho-Mau faz emigrar,
verás o fruto abrindo na haste,
de um rubro sol ao doce banho...
Fome terás, tu que plantaste
e enriqueceste a algum estranho!

Não vás te revoltar contra essa dor suprema
de ver teus filhos nus e ricos os ladrões:
dirão: 'o mundo é assim, há quem cante e quem gema...'
Para os pobres somente ergueram-se as prisões!

E, se teu corpo não resiste
a tanta mágoa e tanta dor,
num hospital gelado e triste
terás teu fim, oh lavrador.

Nem mãos amigas, nem o pranto...
Sois enterrados todos juntos...
Que existe até no Campo Santo
o bairro pobre dos defuntos!

O sol esplende no alto... A torreira em começo,
zumbidos de verão nas árvores copadas...
Eu caminho no campo e estas estrofes terço,
cadenciando o meu verso ao bater das enxadas!"

E o poeta ficou no tempo, marcando presença efetiva. Sua obra lida e relida. Seus poemas ganham notoriedade. Sua vida repassada em estudos, crônicas e ensaios. Seu tempo revigorado pelos contemporâneos, numa seqüência evocativa, útil e necessária. Voltamos a viver e vibrar com Afonso Schmidt, cuja ausência é uma viagem empreendida de bons tempos aqueles, em que dizia: "Foi uma aventura, uma façanha esportiva em que, de alto a baixo, todos deram, alegremente, o melhor de seu esforço". E muitas histórias ainda estão para serem contadas. E assim, este texto tumultuosamente improvisado, sempre com a esperança de melhorá-lo, vai ficando assim como está para ver como fica.

Os poetas dimensionam seu universo e falam com alma. Renata Palottini, usando versos e palavras de Afonso Schmidt, soube saudá-lo num grande instante de sua vida, o da conquista do troféu "Juca Pato", dizendo:

"Afonso: pensei que te queria um pouco
e nunca imaginei que te quisesse tanto!"

Henrique L. Alves - 25/3/198


Foto do desembarque de Afonso Schmidt (ao centro) no porto de Santos, não datada
Imagem cedida a Novo Milênio em 19/3/2008 por Aldo Schmidt, filho do escritor


MEU AFONSO SCHMIDT

MÁRIO DONATO, 1988


Filho de operário gráfico, Luiz Donato, e também gráfico até os 20 anos de idade, ainda menino tive acesso a muitos livros, dentre os quais dois de contos de Afonso Schmidt: Os Impunes e Brutalidade.

Abalaram-me fortemente. Eram um sadio tranco da realidade em quem, como eu, vinha das leituras amenas da infância e juventude, como os livros de Perrault, dos Irmãos Grimm, de Monteiro Lobato, de Alexandre Dumas. As cores cintilantes do meu mundo tornaram-se opacas, cinzentas. Quem seria aquele escritor amargo, tão duro, cruel?

Em 1936, pela mão de Menotti Del Picchia, que me apresentou a Júlio de Mesquita Filho, entrei como redator de O Estado de São Paulo. Comecei a carreira numa tarde e, em certa sala ao fim do corredor do prédio da Rua Boa Vista, sala essa que dava passagem àquela onde eu trabalharia, meu chefe, Hormisdas Silva, me apresentou a Schmidt, que batucava vagarosa e cuidadosamente numa desmantelada máquina de escrever.

Fiquei gelado. Imaginava-o enorme, magnificente, com auréola e tudo o mais. Schmidt não era nada disso. Era de altura mediana, claro, com pastinha caída de lado na testa e uma cara de garoto de praia. Parecia tão pobre como eu. Pelo menos a sua gravata, torcida, a escorrer de um colarinho mal passado, não mostrava que ele tinha melhores finanças do que o seu apresentado. Só não sei, porque não espiei, se tinha as calças remendadas no traseiro, como acontecia com as minhas.

Ficamos amigos. Custei a chamá-lo de você, uma das primeiras coisas que me pediu que fizesse: nada de senhor. Não queria saber de senhores. Depois vim a saber que era comunista, um dos primeiros que tomaram tal decisão em nosso país. Vim a saber também que o P.C.B. o tinha expulsado sob o pretexto - o que era pura maldade - de que queria carteira do partido para entrar com meia entrada no cinema... De qualquer forma, era absolutamente inimaginável supor o Schmidt abrindo um comício, comandando uma greve, trocando sopapos com quem quer que fosse.

A nossa intimidade diária durante dez anos nunca me mostrou um Schmidt capaz de dizer uma palavra dura ou tomar uma atitude que lembrasse aquelas feras sanguissidentas, como eram denominados os comunas pelo P.R.P. e a sua ativa Polícia. Era uma doçura de pessoa. O que não impedia que, nas freqüentes razias para colher os comunas, Schmidt encabeçasse a lista dos procurados. Mas, ao que eu saiba, nunca o levaram, pois os Mesquitas, avisados a tempo por alguém da delegacia, mandava o Schmidt esconder-se e, ainda, no fim do mês, enviavam-lhe o ordenado à sua esposa.

Como trabalhávamos paredes-meia, vi-o escrever, capítulo por capítulo, vários dos seus livros. Ele gostava de lê-los à medida que os escrevia, desde que o ouvinte mostrasse interesse, coisa não muito comum entre jornalistas, mesmo os do passado. Assim, vi nascerem Zanzalá, A Marcha, O Retrato da Valentina, O Menino Felipe e Paulo Eiró. E ganhei com dedicatória um volume da reimpressão de A Sombra de Júlio Frank, cuja primeira edição, todinha - dizia ele, olhando para os lados -, fora comprada e queimada por um figurão de São Paulo, também ele bucheiro...

Quando ele estava escrevendo O Reino do Céu, sobre São Francisco de Assis e os seus seguidores, não pude deixar de comentar que, para um comuna, ele estava muito católico. Ao que Schmidt respondeu, em voz baixa: "Mas Ele também era!" Perguntei: "Quem lhe disse isso?" E o Schmidt, piscando um olho, maroto: "O Papa. Mas não conte a ninguém".

Raro era o dia em que não me vinha ele com uma pergunta de algibeira: "Qual é a palavra que substitui piquenique?" - Ou: "Sabe qual foi a sétima maravilha do mundo?" - Ou, ainda: "De que lado emagrece a Lua?" Como, em geral, eu não sabia a resposta, saía rindo e só depois me dava a solução. Era meio moleque, o Schmidt. Meu chefe Hormisdas, que o adorava, dizia: "O Schmidt é uma criança grande".

Fugia de discutir política. Com o passar do tempo, durante o Estado Novo, ocupado o jornal e exilados os Mesquitas, recebíamos discretamente a visita de gente disposta a passar informações, conversar e até conspirar. Schmidt, sem dizer coisa alguma, afastava-se. Causava-me estranheza aquela atitude de quem escrevera coisas terríveis como O Dragão e as Virgens e Carne para Canhão. No meu inconsciente de jovem plumitivo talvez eu quisesse que Schmidt encarnasse a figura de um mosqueteiro de Dumas, capaz de invadir sozinho o Palácio do Catete e de lá escorraçar o Getúlio a pontapés... Ou o dr. Ademar dos Campos Elíseos.

Cheguei a perguntar-lhe, atrevidamente, o porquê do seu aparente absenteísmo. Ele sorriu o seu sorriso miúdo, com o toco de cigarro pendente do lábio. E praticamente desconversou, dizendo que era preciso mudar os homens, não quebrar-lhes a cabeça. Velho leitor da Bíblia, achei impróprio retrucar a um homem tão mais idoso do que eu, que ele não estava fazendo mais do que repetir Jesus Cristo quando dizia que o homem deveria nascer de novo. Meu bom Schmidt!

E agora eu pergunto ao leitor, em nome de Afonso Schmidt: - "Sabe você o que é escalabitano?"


PAI SUMÉ


AFONSO SCHMIDT

O Estado de São Paulo, publicada na página 3 da edição de 2 de abril de 1944



O escritor Calmon Barreto, do Rio de Janeiro, não se contenta em ser um artista em quem a técnica disputa primazia à inspiração. É, ao mesmo tempo, um estudioso e um enamorado das nossas lendas. Foi nessa vereda escura, coberta pela poeira dos séculos, que ele encontrou assunto para uma de suas obras, aquela que, certamente, enriquecerá ainda mais o patrimônio artístico dos dias que estamos vivendo.

Trata-se de Pai Sumé, figura lendária, pouco conhecida, mas que interessa a todo o continente. Pai Sumé, de um certo modo, pode representar a civilização americana, no seu progresso social, político, científico, industrial e agrícola. É um símbolo. Talvez o mais belo símbolo do Novo Mundo.

Quem será, afinal, esse Pai Sumé? Vamos enumerar algumas das escassas informações que, vencendo todas as dificuldades através dos séculos, chegaram até nós.

Quando os primeiros colonizadores desembarcaram na América, encontraram um continente selvagem com diversos núcleos de uma civilização que se distanciava da europeia. Aparte poucas nações, entre as quais os incas e os astecas, que dispunham de organização social adiantada para o tempo, à parte determinadas tribos que já haviam constituído as bases de nascente sociedade, o resto eram povos nômades cujo nível moral e intelectual começava a alvorecer. No entanto, apesar dessa disparidade de cultura, esses povos da América já dispunham de adiantada compreensão para guardar, sob a forma de lendas e apólogos, de enternecedora beleza, muitos dos mais importantes acontecimentos do passado.

Vários estudiosos julgaram encontrar numa lenda tupi, transmitida oralmente através de mil gerações, o cataclismo do Dilúvio Universal. Por seu turno, em determinadas vezes, a cruz não era de todo desconhecida como elemento de culto. Alguns riscos gravados na face dos monólitos foram interpretados como o símbolo do fogo, que, naquelas terras, se conseguia mediante o uso de duas hastes e era guardado, com pomposo ritual, de geração para geração. No entanto, não são muitas as lendas repetidas ao mesmo tempo, pelas nações do Norte e do Sul do continente. Entre as que, segundo parece, constituem exceção, está a lenda de Pai Sumé. Boa parte da América repetiu de pais a filhos a façanha apostólica desse homem diferente.

Tal tradição, ou que outro nome tenha, é a seguinte:

Um dia, na mais remota antiguidade americana, quando os filhos da terra ainda viviam em completo obscurecimento, na região das altas florestas e dos grandes rios, foram surpreendidos com a chegada de estranha personagem que vinha do mar. Esse vinha do mar devia significar para os narradores que ela surgiu das ondas, alcançou a praia e se adentrou pela terra virgem.

Com razoável boa vontade, tal frase pode perder alguma coisa do maravilhoso que encerra e passar a referir-se apenas a um navegante, aventureiro ou náufrago, figura assaz encontradiça na nossa história e que, certamente, antes de 1499, aqui surgiu e aqui ficou para sempre. Caramuru, é de crer-se, não foi o único europeu encontrado na praia, entre destroços de naufrágio; não seria, também, o primeiro a socorrer-se do milagre ao seu alcance, procurando por esse meio conquistar o respeito dos aborígenes. O mágico é um dos mais velhos elementos de domínio, de Moisés ao Padre Cícero.

Os índios chamaram-no de Pai Sumé. Era um homem alto, de estatura delgada, de barbas e cabelos longos, cor de ouro, envergando alvíssima túnica. As mãos eram brancas, as palavras macias, as atitudes de infinita bondade. Que pretendia ele? Ninguém sabe. A verdade, porém, é que, segundo a tradição conturbada que nos chegou através dos anos, ou dos milênios, conseguiu viajar do extremo Norte ao extremo Sul do continente, deixando vestígios de sua passagem na lembrança dos povos, com os quais teve contato. Os índios chamaram-no logo, respeitosamente, de Pai.l Na língua portuguesa, a voz que o designou entre os índios tem sido grafada como Pai Sumé. Na língua espanhola, a voz é a mesma - Pay Zumé -, com grafia diferente.

Há cerca de dois anos, o sempre apreciado Matias Arrudão publicou um artigo neste jornal, sobre a misteriosa personagem. Lembrou esse nosso colega que, em diversos pontos do território brasileiro, existem pegadas em baixo relevo, algumas realmente semelhantes à forma de um pé, outras simples covas na pedra, sugerindo vagamente o passo de um peregrino e que a lenda conta como sendo o "rastro de São Tomé".

Referiu-se a frei Jaboatão que viu uma dessas marcas a sete léguas de Recife bem como a Simão de Vasconcelos, cronista da Companhia de Jesus, que testificou existir "na Bahia, fora da barra, distante como duas léguas da cidade, onde chamam a Itapoá, outra pegada de homem, perfeitíssima, metida de impressão na sustença da pedra".

Na parte referente a São Paulo, o autor cita as "Informações do Brasil e suas Capitanias, de Anchieta, que falava em Çumé como sendo São Tomé e que deixou sinais em São Vicente. A frei Gaspar da Madre de Deus, que registrou o caso do Embaré, de que falaremos linhas adiante. Estudou a tradição na Argentina e no Paraguai, na parte relativa ao mate. Apoiou-se em Roque Gaona e no padre Diogo de Torres, concluindo que a lenda do Sumé teria sido absorvida pela Companhia de Jesus e, depois de habilidosa superposição, devolvida aos índios como sendo a lenda de São Tomé, visto como o sincretismo religioso foi um dos principais fatores da vitória dos Inacianos (N.E.: jesuítas, discípulos de Inácio de Loyla).

Como teria surgido por aqui o apóstolo São Tomé, realizando milagres que milênios depois deveriam assinalar ainda a sua passagem? A explicação dos cronistas é a seguinte:

Depois de haver manifestado dúvida sobre a ressurreição de Jesus, e de ter ouvido a resposta do Mestre, o apóstolo desapareceu. Sua presença só foi assinalada, mais tarde, por ocasião da morte da Virgem Maria. A seguir sumiu de novo e para sempre. Supõe-se que ele, no intuito de penitenciar-se da pecaminosa dúvida, tenha tomado a si a missão de pregar o Evangelho nos confins do mundo, entre os selvagens. Com tal intuito, ter-se-ia feito ao mar num daqueles fantásticos navios fenícios, sob o comando de navegadores anônimos que, sem dar o devido valor às suas façanhas, visitaram as cinco partes do mundo, muitos séculos antes dos famosos navegadores.

O caso do Embaré é um dos mais curiosos.

O historiador Francisco Martins dos Santos registra-o no seu livro Lendas e tradições de uma velha cidade do Brasil, atribuindo-o a uma esperteza de Antonio Rodrigues, o solitário de São Vicente, com o intuito de explicar aos colonos trazidos por Martim Afonso de Sousa a existência de uma pequenina civilização anterior. Vários pontos da ilha e da região, observa o meu ilustre conterrâneo, já haviam recebido sementes. Por ali já se encontravam milho, mandioca, feijão, cana-de-açúcar e vestígios de criação antiga, porcos e galinhas. O governador e seus nobres tinham interesse em esconder desses homens rudes uma vida anterior da colônia, encabeçada e dirigida por um degredado, embora ilustre, que fora o "bacharel".

Daí a lenda que Francisco Martins dos Santos assim resume:

"Sumé viera do alto, enviado por Tupã, das grandes florestas do Toriba (paraíso), chegara àquela fonte cansado, parara para beber e, em sinal de gratidão à terra que saciara a sua sede, deixara a impressão do seu pé na primeira laje vizinha. E fez mais,: ele que viera para ensinar a arte do trato da terra e que trazia para isso um grande saco ás costas, repleto de sementes, resolveu iniciar a obra naquela região, que tão boa lhe parecera. Anunciou-se por toda a ilha como enviado de Tupã, convocou os habitantes daquelas dezenas de ocas que se espalhavam por ali,e, diante de todos, jogando ao chão um punhado de sementes, fez brotar muitas plantas que logo produziram alimento e riqueza, fartura para a tribo. Depois da experiência que deixou os circunstantes entusiasmados, Sumé distribuiu por eles alguns punhados dos preciosos grãozinhos, para que os plantassem, desaparecendo em seguida, em passadas lentas e solenes sobre o mar".

A figura de Sumé está sempre ligada ao mar. A sua obra é sempre de ensino, de ensino direto às populações primitivas. O que há de importante na voz dos antigos santistas é a afirmação de que, entre eles, estava presente, conhecida de todos, a formosa lenda pan-americana, a tal ponto que a pegada inexplicável, entrevista nas rugosidades de uma pedra, logo lhes trouxe à mente a figura iluminada de Pai Sumé.

Para isso, era preciso que, naquele tempo, a misteriosa personagem estivesse no conhecimento de todos e, verdadeira ou não, fosse lembrada pelo primeiro bugre, ou pelo primeiro colono lusitano que observou a curiosa depressão na face daquela pedra.

Seja Pai Sumé quem for, emprestemos esta ou aquela interpretação à sua presença, ele comparece ao chamado da nossa imaginação com a figura que Calmon Barreto lhe atribuiu, no seu bloco de mármore. Alto, cabelos compridos, barbas pela altura do umbigo, a túnica leve arrepanhada pelo vento, moldando-lhe o corpo de magreza esquelética. Foi essa fraqueza angélica que lutou com o agressivo cenário do continente "ainda molhado do Dilúvio".

Surgindo sobre um crescente de praia, vencida a cólera ou o terror do primeiro aborígene, entrou pela terra firme. A floresta era alta, escura, inextricável. Árvores felpudas, ressoantes de insetos e de passarinhos, embargavam-lhe o passo. Todos os animais, ainda na alegria do primitivo Éden, saíam das tocas, dos caraguatás, das luras e vinham cheirar a fímbria esvoaçante da sua túnica. As serpes se lhe enroscavam nas pernas e o santo precisava desatá-las com as mãos, como se fossem cipós caídos. As onças aproximavam-se rastejantes, esperando o instante propício para se atirarem contra o seu vulto diluído em ouro e brancuras, mas dali a pouco, surpreendidas pela carícia macia de seus olhos, atiravam-se para trás, num uivo espantoso, só deixando empós da fuga um tremor de medo na folhagem, um silêncio de pasmo entre as nuvens de passarinhos.

Os jacarés se arrastavam para a lagoa, sulcando a água morta em linhas retas, até se perderem no lodo, numa floração de bolhas, de espumas e de ramos. As garças, desajeitadas, ensaiavam o voo difícil, com um aflar de leques aflitos. Os lagartos que dormiam ao sol, sentindo a aproximação daqueles pés finos e magros, fugiam para a sombra das velhas árvores, num remoinho de folhas secas revolvidas.

Quando Pai Sumé atravessava as campinas, esmaltadas de miríades de corolas, as borboletas vinham dançar ao redor da sua figura, como de uma flor; os enxames de irapuá esqueciam-se das colmeias ocultas nas forquilhas e iam emaranhar-se naquela bola de fios de ouro que rolava pela terra.

Atrás dos troncos ou no turbilhão verde das copas, cabeças humanas cercadas de penas espreitavam curiosamente a sua passagem. Mais de uma vez a destra mão de um índio levou a flecha ao arco, distendeu a corda, apoiou um joelho no chão e, no instante em que ia disparar, sentiu pulsarem sobre os seus os olhos suaves daquele estranho caminhante. Todo ele se perturbou. A corda afrouxou, o arco voltou à primeira posição, a flecha caiu inútil a seus pés e o homem branco prosseguiu no seu caminho, por entre as árvores, com a fímbria da túnica a enroscar-se nos açucarás cujos espinhos parecem unhas de gato.

Foi assim que ele chegou à primeira taba. Devia ser quase noite. À hora em que a terra bárbara se recolhe numa grave cisma. As fogueiras erguiam chamas altas. A fumaça azul era feita de seu desmanchado e regressava ao alto, de onde tinha vindo, com o fogo, atributo de Deus.

À sua chegada, houve um corre-corre. Mulheres cor de terra, quase nuas, com os cabelos ásperos caídos aos ombros, espiavam-no pelo buraco das ocas. Os curumins correram para ele e tocaram com as mãozinhas grudentas de mel a pulcritude das suas vestes. Ele parou, acariciou-os. E os curumins, em algazarra, correram para as ocas, contando que o filho do sol tinha as mãos macias. O cacique desejou vê-lo. Chegou rodeado de conselheiros, ao som de tambores e buzinas. O desconhecido falou-lhes numa linguagem estranha, mas que todos entendiam. Sentaram-se ao redor da fogueira e ficaram conversando pela noite a dentro, ante a curiosidade pisca-pisca das estrelas.

Quando o cacique se retirou, cheio de vênias e zumbaias, Pai Sumé chamou os feiticeiros da tribo. Tinham o corpo negro e a cabeça ramalhuda, como os pés de xaxim. Só então falou a linguagem da sabedoria e da revelação. Disse que fora mandado por Tupã; vinha das regiões serenas e azuis do Toriba, onde os homens têm asas brancas e voam pela terra, como os pássaros voam pelo céu.

Então, os pajés veneraram-no.

E ele traçou a linha sinuosa, sempre inquieta, que divide os reinos do Bem e do Mal. Esses dois reinos, como as tribos da terra, estavam sempre em luta. O bom era aquele que repartia com o hóspede o calor da fogueira, o teto da cabana, o peixe pescado no rio ou a caça abatida no bosque. O que respeitava a sorte dos vencidos na guerra, o que plantava o chão, o que ajudava os velhos a atravessarem o rio ou as crianças a colherem os frutos altos.

O mau, em contraposição, era o que pescava exclusivamente para si, que negava uma brasa para o vizinho acender a itacoruba, que fazia a guerra atrás do toco, que cegava os prisioneiros para que eles não mais pudessem combater, ou que, num acesso de ódio, moqueava os heróis de outras tribos para mastigar-lhes o fígado.

Um pajé perguntou:

- Para quê ser bom?

Então o estrangeiro enumerou os galardões para os bons e os castigos para os maus. A América toda, quando os navegadores chegaram, já tinha ideia de paraíso e de inferno, a seu modo, naturalmente. Para os Peles-Vermelhas (escreve Charlevoix), as sombras dos hábeis caçadores, dos guerreiros vitoriosos, iam para uma imensa campina, espécie de Terra Prometida, onde reinava perpétua primavera. Búfalos e cabritos monteses andavam por ali, ao alcance de qualquer flechada. A carne era excelente e esses animais podiam ser abatidos sem derramamento de sangue. Ao contrário, as almas dos Peles-Vermelhas que na terra se tinham comportado como homens maus iam padecer em trágica região setentrional, coberta de eternos gelos.

Os próprios esquimaus (N.E.: esquimós) tinham as suas ideias a tal respeito. Os bons, isto é, os que haviam caçado muitas focas, afrontando perigos, ou que se haviam afogado no mar, habitavam, depois da morte, um mundo superior, onde o sol brilhava sempre, onde as focas, peixes e aves aquáticas nadavam em águas límpidas e se deixavam capturar complacentemente. Muitos destes animais (observa o citado autor) já ferviam voluntariamente, com delicioso molho, nas caldeiras paradisíacas. Mas os maus...

O mesmo com os incas, com os astecas.

E com os índios da imensa terra que deveria chamar-se Brasil. Quando morria um bom, Tupã vinha e o carregava para o Toriba, onde bastava estender a mão para pescar um peixe, abater uma caça, colher um fruto,ou apropriar-se de uma colmeia. A sua taba era azul, alumiada de estrelas. Mas quando um mau morria, Anhangá tomava de sua alma e carregava-a para as planícies escuras, onde não havia dia nem noite, onde os perseguidos tinham vida e se apresentavam mais fortes, retribuindo com largueza as ofensas recebidas...

Os pajés, ouvindo aquele ensinamento, cabeceavam.

Falou da família, do respeito dos filhos pelos pais e pelos irmãos dos pais. Pôs um laço de cor sobre o artelho esquerdo das virgens. Ensinou como se fabrica uma igaçaba, como se conseguem na mesma desenhos de duas ou mais cores. Demonstrou aos pajés atentos a necessidade de enterrar os mortos. Ensinou-os a dividir o tempo pela repetição dos fenômenos naturais. Com certeza, foi depois daquela conversa que o tupi pôde dizer e ser compreendido: "quando a Lua voltou a ficar redonda", ou "quando a imburana estava em flor"... Ensinou os mais rudimentares cuidados com o campo, a plantar mandioca, a ralar a raiz, a fornear farinha, a fermentar a bebida. Pôs ordem nos sons dos instrumentos. Ensinou os pingas a profetizarem. Os velhos a conhecerem as raízes e as plantas que aliviam a dor, que dão alento aos caminheiros estropiados, que cicatrizam as feridas recebidas em combate.

Tudo isso teria feito Pai Sumé quando por aqui andou.

Foi um bem e foi um mal. Foi um bem porque tornou os índios americanos hospitaleiros, generosos e acolhedores. Foi um mal porque os europeus que aqui chegaram nos primeiros tempos não corresponderam ao suave ensinamento de Pai Sumé - destruíram tudo quanto encontraram, as normas de vida e os homens. E essas normas de vida não eram tão ruins como se possa imaginar. Séculos depois, alguns índios foram levados à Europa e os filósofos se admiraram da beleza da vida simples, nas florestas. Dessa aproximação nasceu uma literatura. O povo leu e gostou. Em 1793 desencadeou-se a Grande Revolução. Há quem diga que aqueles índios contribuíram, em parte, para ela.

Mas ninguém se lembrou do grande mestre de vida que há milênios por aqui passou: Pai Sumé.

Affonso Schmidt

Novo Milênio


A PÁGINA FINAL DE SCHMIDT 


SÉRGIO FREDDI



O poeta-jornalista Afonso Schmidt, prêmio "Intelectual do Ano" de 1963, morreu anteontem, aos 73 anos, e foi sepultado ontem à tarde, no cemitério do Araçá.

Edema agudo do pulmão – o mesmo problema que quase o abatera em junho do ano passado – levou-o desta feita. A crise manifestou-se repentinamente e durou apenas 35 minutos, de nada adiantando os esforços feitos para socorrê-lo. Faleceu dentro de uma ambulância em movimento, ao lado da esposa, sra. Maria José da Silva Schmidt, quando, numa última tentativa, se encaminhavam para o Hospital Municipal.

A Biblioteca Municipal manteve-se fechada para as consultas dos estudantes, guardando por algumas horas, num velório comovente, do qual participaram dezenas de escritores, jornalistas, parentes e amigos, o corpo do bom Afonso Schmidt, chamado "o mais paulista dos escritores paulistas".

Glória que morre – À beira da sepultura, vários de seus amigos discursaram, numa última homenagem. Inicialmente, afirmou o sr. Oliveira Ribeiro Neto:

- "Assim morrem as glórias do mundo! Há um mês apenas estávamos juntos, meu querido Schmidt, quando você recebia a consagração da inteligência brasileira como O intelectual do ano, e eu emprestei à sua timidez o som da minha voz, para dizer do seu agradecimento. Aqui estamos hoje, comovidos, à beira do seu túmulo, junto à terra querida de São Paulo, em que seu corpo vai de novo fundir-se. Mas seu espírito está vivo, Afonso Schmidt, e no céu do Brasil há de projetar-se a todo o mundo, como um dos mais intensos brilhos do nosso sol, como um dos mais belos talentos da nossa raça. Repousa em paz na terra que você tanto amou e glorificou, como um lírio de bondade e de pureza que volta de novo à terra e deixa no ar e nas lembranças dos que o viram o clarão de sua presença eterna. A Academia Paulista de Letra aqui está para dizer-lhe adeus. Seus amigos aqui choram para dizer-lhe adeus. Para sempre, Afonso Schmidt".

O biógrafo de Schmidt, escritor Henrique L. Alves, afirmou:

"Neste derradeiro instante, São Paulo tributa-lhe as homenagens pela sua vida e obra, dedicadas ao longo de sua existência, sacrificadas no dia a dia, na construção de uma obra monumental. Dobra-se sua última página e encerra-se o ciclo mais lindo da vida de um escritor, ao cujo final recebe as maiores consagrações. Deram-lhe o troféu Juca Pato". Posteriormente, falando sobre o escritor, afirma que, incompreendido, por vezes, "sua literatura é de uma amplitude sem horizontes". No final da oração, disse o biógrafo: "Adeus mestre Afonso, intelectual símbolo da cultura nacional".

Poeta social – O deputado Cid Franco, também presente, disse:

- "Afonso Schmidt, meu velho e querido amigo. Amigo desde 1925 ou 26, nem me lembro mais. Você foi o criador da poesia social da fase do proletariado, como Castro Alves foi o criador da fase da escravidão. Você sofreu injustiças dos poderosos durante toda sua vida. Há mesmo uma literatura em que seu nome não se encontra.

"Agora, você desce à terra. Não como um cadáver, mas como uma semente, que há de brotar e frutificar". Citou então, causando viva emoção nos presentes, a poesia do extinto, Ao bater das enxadas:

- "Revolve a terra lavrador, que anda por tudo o sol esparso, nessa explosão de vida e amor, que aos campos traz o mês de março. Florido enterro da semente no seio amigo de uma cova, para que surja, viridente, a planta e dê semente nova."

Lembrou por fim que, ideologicamente, "de 1912 a 1964 foste um homem coerente. É pena que não possas assistir, como semente, o dia da libertação".

Finalmente, o escritor Fernando Soares, numa breve alocução, disse que "a coisa mais dolorosa para nós é perder um talento. Nós o perdemos, mas os teus livros ficam. Que seus livros sirvam de exemplo para todos nós".

Foi muito grande o número de escritores que passou pela Biblioteca e vários exprimiram a grandeza da perda e o valor do homem que partiu:

Mario Graciotti: "O Brasil perde um dos grandes generais da beleza e da bondade".

Menoti Del Pichia: "É uma perda irreparável".

Caio Prado Jr.: "Um grande escritor. Sobretudo, um grande coração".

Oliveira Ribeiro Neto: "A morte de Afonso Schmidt deixou em todos essa impressão que se tem quando uma luz se apaga. Na escuridão, no vazio de sua ausência, a luminosidade do seu espírito ficou em todos nós".

Ligia Fagundes Teles: "Sentia por Schmidt uma ternura. Foi um homem generoso, extraordinariamente bom. Foi a primeira porta que se abriu no meu mundo literário. Um homem puro no sentido da palavra – inteligente e bom".

Antonio D'Elia: "Chegou ao fim a vida de dedicação extremada à literatura – Afonso Schmidt".

João Gualberto de Oliveira: "Sinto muito o desaparecimento do mestre e amigo, de quem levo a orientação de diversos trabalhos meus".

Renata Palotini: "Com Afonso Schmidt desaparece toda uma época, todo um tempo de São Paulo, de sua literatura e de sua vida. A UBE chora a perda de seu presidente, e São Paulo chora a morte de seu romancista".

Aureliano Leite: "São Paulo perde a figura primacial de nossas letras".

Brasil Bandecchi: "Afonso Schmidt, escritor de alta sensibilidade, levou para o romance e a poesia a alma heróica de São Paulo".

Alfredo Gomes: "Era uma biblioteca. Estilo admirável, tem nas páginas de suas leituras a riqueza de um grande escritor".

Caio Porfirio Carneiro: "Se foi antes de tudo um grande escritor, um patrimônio das letras nacionais, foi sobretudo um homem bom".

Aristeu Bulhões – "Afonso Schmidt não foi só um escritor e um poeta. Foi uma mensagem humana de paz e fraternidade, num mundo em que o egoísmo cego destrói toda esperança de compreensão e harmonia. Sua morte não perturbou, porém, sua cruzada de fé cristã e bem-estar social".

Modéstia e Renome – A grande modéstia do escritor é considerada, por muitos, como a explicação para o fato de não se ter projetado tanto quanto seria de esperar. Mesmo assim, além de seus cerca de 800.000 exemplares editados no Brasil, Schmidt foi traduzido na Rússia, Itália, Polônia, Espanha, Lituânia e, clandestinamente, também em Portugal.

Atualmente, era o presidente da União Brasileira de Escritores, seção de São Paulo. Recebeu 5 prêmios da Academia Brasileira de Letras (3 dos quais, em um só ano), era sócio honorário do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, correspondente de várias entidades culturais, membro da Academia Paulista de Letras. Atualmente, era apontado como sério candidato de São Paulo a uma cadeira na Academia Brasileira de Letras.

Homenagens – Ainda na tarde de ontem o Instituto Histórico e Geográfico realizou uma sessão solene para homenagear a memória do escritor, designando comissão composta dos escritores Henrique L. Alves, Celestino Frazio e Jacob Penteado para representar a entidade nos funerais.

Por outro lado, no próximo dia 9, às 11 horas, uma placa de bronze será inaugurada na Prefeitura de Cubatão, em homenagem a Schmidt.

Afonso Schmidt, nascido a 29 de junho de 1890, em Cubatão, deixa viúva a sra. Maria José da Silva Schmidt (em segundas núpcias) e os filhos Bruno, Aldo, Vera e Sérgio (casados) e Rosana, menor. Eram seus irmãos os srs. Godofredo, Rodolfo, Odila e Vital (casados) e Maria Clara (solteira).

Afirmando ser um escritor "por fatalidade", e que escreveria "até que um sujeito bata aí na porta e avise: Ei velho, o caixão já está aqui. Vê se não demora..." – seu desejo cumpriu-se. Escreveu até o fim.

Operário. Da. Maria José da Silva Schmidt, esposa do escritor, velando o corpo na Biblioteca Municipal, chora silenciosamente, respondendo a perguntas, contando coisas de uma lembrança recente ou remota do convívio com o marido:

- "Não esperava isto agora. Minha esperança era levá-lo de crise em crise, como no ano passado, até um dia. Mas não esperava que esse fosse o dia.

"Mas ele teve a morte que sempre quis. Morreu trabalhando. Em sua máquina de escrever ficou um papel com o começo de um trabalho que seria publicado em janeiro. Sua tenacidade para escrever era admirável. Não importava que estivesse doente ou sem dinheiro. Ainda dia 1º último ele foi à Hebraica, onde se programara uma homenagem à sua pessoa. Tive, não sei porque, um pressentimento de que talvez ele não voltasse. Mas a revolução provocou o cancelamento e, ao retornar, ele me dizia: 'Você sabe que os judeus dariam uma história maravilhosa?'

"Começou então a falar da idéia que nascia, com judeus vindos para o Brasil, numa história humana e suave, com tonalidades locais:

- "Ele só gostava de coisas assim".

O livro era como uma pá - Depois, da. Maria lembra o sentimento que Schmidt nutria pelos livros:

"O livro nunca era para ele uma distração. Nem valia pela sua encadernação, pelo seu exterior. A leitura era uma espécie de obrigação, estudo, atividade que apresentava algum fim. Minha impressão era a de que ele pegava o livro como um trabalhador pega a pá ou a enxada.

"Quando as pessoas morrem a gente diz, querendo consolar: descansou. Mas dizer que o Schmidt descansou não é consolo. Ele gostava tanto de trabalhar".

Perguntado qual fora, agora ao final, o resultado de tanto trabalho, a esposa responde:

"Sua vida de trabalho deixou, ao término, livros, muitos livros; e a ternura, uma grande ternura por tudo: pelos grandes, pelos pequenos, pelas coisas, pelos bichos. Há a casa em que moramos, produto da tradução de um livro, e há sua vida cheia de dignidade, patrimônio que deixa para todos os filhos".

Devoto de S. Francisco – Querem saber se o autor de A Marcha era religioso:

- "Era um espiritualista. Não se pode dizer que era religioso. Mas era uma pessoa que se comovia até com uma flor caída ou um boneco jogado. Era devoto de São Francisco – devoção exclusiva – e ele mesmo sentia-se um franciscano. Todos os anos, em novembro, ia levar um ramo de flores à igreja de São Francisco. A última vez, levamos os três – eu, a Rosana e ele – flores que ele havia ganho durante cerimônia de inauguração de uma exposição de seus livros".

Depois, lembra a adoração do escritor pela filha que fará 6 anos no dia 20 de maio:

- "Ele dizia, apontando para a menina Rosana, a quem chamava de Ternura do velho: - Isso enche a vida da gente".

E foi a garota que, 5 minutos antes da crise, chamando-o de "meu velhinho adorado", beijou-o antes de ir dormir. Ele também iria dormir muito logo.

O livro querido – Schmidt escreveu cerca de 70 obras e não gostava de apontar uma delas como sendo a melhor, ou a que lhe era mais cara. Da. Maria, entretanto, afirma: "Minha impressão era de que o livro que mais lhe agradava era A Marcha. Mas não posso afirmar. É uma impressão. O culto que tinha pela família – os filhos, os irmãos – talvez justificasse também uma certa predileção pelo Menino Felipe. Mas, quando se falava em traduzir qualquer obra sua, perguntava sugerindo: - "Por que não A Marcha?"

Schmidt e o "Juca" – O escritor de tantas obras – poesia, contos, romance, crônicas -, mesmo contando com grande número de apreciadores e tendo visto serem impressos, por várias editoras, mais de 800.000 exemplares de suas obras, nunca mereceu o beneplácito da crítica literária. Algumas obras sobre a história da literatura brasileira nem mesmo registram seu nome.

Mesmo assim, dentro do concurso O Intelectual do ano, promovido pela Folha de S. Paulo e União Brasileira de Escritores, seu nome foi lembrado e sufragado pela maioria dos eleitores, numa reparação que chegou, cheia de festas e de emoções, 45 dias antes de sua morte.

Sobre o prêmio, afirmou a viúva de Schmidt: "Senti que a consagração com o Juca lhe trouxe um contentamento muito grande, intimamente. Nós achávamos que era uma reparação à sua ausência dos compêndios de literatura, numa consagração oficial, prestigiada pelos escritores. O essencial é que ele pôde sentir, ainda em vida, o reconhecimento do valor de sua obra".

O corpo foi velado na Biblioteca Municipal com o assentimento do secretário de Educação e Cultura da municipalidade, prof. Carlos Rizzini, e esta última passagem por entre as prateleiras e estantes valeu como uma simbólica despedida do grande escritor dos seus companheiros de toda a vida: os livros.

*

MORANDO EM SÃO VICENTE, ESTUDANDO EM SANTOS,
TRABALHANDO E TAMBÉM SE DIVERTINDO EM CUBATÃO


DALMO DUQUE DOS SANTOS




Ônibus da ECTC-Linha 04 Jardim Nova República



Minha classe  na Faculdade Católica de Santos foi uma turma marcante cujos nomes guardo na memória, pela proximidade de convivência: Marco Antônio, Roberto e Vanja (que se casaram após se formarem. A Vanja tornou-se diretora e supervisora de ensino), Lígia (casada com o professor Jabur, do Curso Objetivo), Francisco, Nero o (sobrinho do prefeito Osvaldo Justo) e Euflauzina Chabunas, ambos já desencarnados; e adultos já formados e atuantes em outras áreas como o Pablo (advogado e depois promotor público), Juarez (ex-ator e funcionário na Distribuidora BR) e o Hugo, aposentado da Refinaria Presidente Bernardes, de Cubatão, onde exercia o cargo de relações públicas. Poliglota e muito viajado, o Hugo foi um dos que primeiros a revelar sua decepção com o curso de História. Ele só não desistiu por causa das amizades que fez entre nós e que muito preenchia sua solidão. O mesmo acontecia com o solteirão Juarez, ator profissional,  que anos mais tarde voltaria para sua terra natal em Minas, que chamava carinhosamente de Cemitério de Elefantes. 

Era uma turma muito divertida, cheia de talentos e que certamente marcou época na faculdade e cujo convívio só desfrutei por dois anos. Fiz o curso às minhas próprias custas, pois não queria sobrecarregar meus pais, que custeavam meu vestuário, lazer e outras despesas do dia a dia. Para sobreviver nos primeiros meses da faculdade, fazia bicos de pintura (de parede) e ajudava um colega do CVV que tinha um trenzinho turístico em Bertioga nos fins-de-semana. Cheguei a realizar cursos livres de oratória na própria faculdade, campus da Euclides da Cunha, incentivado pela professora Isa, então coordenadora do curso.

Naquele mesmo ano, em 1984, comecei a trabalhar em Cubatão, município industrial da Baixada Santista. Era o grande celeiro de empregos e oportunidades  da Baixada Santista. Minha família quase toda trabalhou em algum tipo de atividade profissional na região; meu pai e um dos meus irmãos (Mia) foram motoristas que levavam agrimensores para a Serra do Mar em uma Kombi durante as obras da rodovia dos Imigrantes em meados de 1970. O Bill trabalhou numa empreiteira dirigida por um dos nossos vizinhos da rua Rio de Janeiro. O Nenê (Maurício) iniciou sua carreira de designer-ergonomista na GAPP, dentro da COSIPA.  

E eu fui trabalhar numa empreiteira que atuava na área da Liquid Química, uma pequena, mas muito rica fábrica multinacional de derivados de petróleo: ácido benzoico conservante, plastificante, aldeído de perfumaria, etc. Esse “trampo” era interessante e bem barra pesada, cortesia do amigo Waltrudes, engenheiro químico carioca, companheiro nosso de Aliança e CVV. Chegava em casa quase morto. 

A fábrica não era muito grande e funcionava em três turnos semanais de oito horas: das 8, das 16 e das 24. Entre esses turnos tínhamos folgas pequenas de 24 e uma grande de 72 horas. Minha função era de servente de operação, peão de área. Antes de ser efetivado na fábrica era funcionário de uma empreiteira, iniciando serviço exatamente num período de "parada" de manutenção geral da área.  

Cada turno tinha apenas quatro funcionários: o operador-chefe, o auxiliar de operação(caldeireiro) e dois serventes. Essa equipe era responsável por toda a produção, realizada por quatro reatores (que são torres gigantescas, semelhantes a enormes panelas de pressão viradas de cabeça para baixo), três caldeiras, três grandes tanques de mistura, um sublimador (muito parecido com aquela máquina de fazer algodão doce), dois flakers, que são enormes cilindros de resfriamento para fazer flocos de ácido. 

Tínhamos que cuidar também dos filtros, estoques de produtos de manipulação (permanganato, barrilha, filtros de papel), os equipamentos como bombas de água, compressores de ar, trocadores e separadores de líquidos, piscina de resfriamento, tanques de matéria-prima (soda cáustica, tolueno, óleo diesel). Toda a produção de ácido era embalada em sacos de papel de 60 quilos (flocos), em tambores de papelão de 20 quilos (sublimados), e os líquidos em tambores grandes de latão para os plastificantes e galões de PVC para o aldeído. 

Dependendo do turno, a jornada podia ser intensa, mediana ou eventualmente de faxina. Em algumas noites a produção era paralisada, em função de estoques excedentes, e tínhamos então que nos movimentar com alguma atividade  extra e quase sempre inútil. O encarregado inventava que no dia seguinte a fábrica iria receber uma visita importante e tudo tinha que estar muito limpo. Era a festa dos esguicho, que começávamos no terceiro andar , mais ou menos à 11 da noite, até chegar no térreo, que era a parte mais suja.  Podíamos gastar água à vontade, que vinha de uma piscina reciclável. Quando o ralo da piscina entupia com algas, alguém tinha que tirar a roupa e mergulhar. Serviço pesado e também perigoso. 

Certa vez nosso operador-chefe, sempre muito apressado e descuidado, se atrapalhou ao abrir uma válvula do reator, espalhando ácido líquido e quente por toda a área. Não tinha como estancar aquele esguicho e o ácido ficava sólido quando entrava contado com a temperatura ambiente. Resultado: tumulto e muita sujeira para limpar durante a madrugada inteira. Ele queimou o rosto e o peito; e eu, vendo aquela cena de desespero dele, ao invés de avisar o caldeireiro, corri para o banheiro para lavar os braços, atingido por respingos. Estava tão nervoso que desandei a rir. Alguns minutos depois, ainda abalado, ria mais ainda, pois achava que todos iriam pensar que tinha sido eu quem havia causado o acidente. Voltei para a área e vi o estrago e o grande risco que todos nós corríamos naquele lugar. 

Esse operador, semi analfabeto, xucro, porém considerado o mais produtivo da fábrica, sempre aprontava algo grave e que colocava a vida dele e dos outros em risco. 

Numa outra vez ele esqueceu uma linha de combustível aberta e jogou milhares de litros de tolueno no esgoto, erro que foi descoberto pela Cetesb alguns dias depois ao coletar amostras no córrego que passava próximo da fábrica. Por decisão dos diretores da empresa, nos Estados Unidos, ele continuou trabalhando normalmente, mesmo dando aquele enorme prejuízo do combustível perdido e da multa pelo dano ambiental. 

Os encarregados eram bem diferentes uns dos outros e dirigiam o turno de acordo com o estilo e ritmo próprio deles. Tinha uns que percebiam que poderíamos sucumbir ao sono - geralmente a partir da três da madrugada - e mandavam a gente tirar uma soneca no quarto da sacaria. Eles mesmos iam acordar a gente depois. 

No geral, eram todos operários, menos ou mais experientes, a  maioria gente simples e muito companheira. Me admiravam muito pelo fato de eu estar cursando a faculdade enquanto a maioria deles nem tinha concluído o ginásio. Um deles, brincando, sempre tentava me desmoralizar trazendo um desafio de conhecimento para eu decifrar. Nunca errei e, ao responder corretamente a pergunta-chave, era sempre ovacionado, enquanto o meu desafiante era calorosamente vaiado. Isso acontecia no refeitório nos turnos do dia, mas os elogios e  o sarro prosseguia a semana inteira, inclusive no ônibus fretado. 

Outro problema  nesse trabalho em Cubatão era o turno das 24, conhecido como “Cinderela”. Esse nos tirava do cinema, das festas, enfim, do melhor que a gente estava fazendo. Nessa época, ainda estudando  no primeiro ano da faculdade,  perdia uma semana de aulas no mês. Correndo o risco de ser reprovado e sabendo que aquela carreira não tinha nada a ver comigo, decidi abandonar o emprego e mudar para São Paulo em dezembro de 1985.


Meus registros em carteira entre 1982 e 1985, o último na Liquid Química em Cubatão. 


Três coisas foram marcantes nesses dois anos de trabalho em Cubatão: 

O incêndio da Vila Socó, em 1984, tragédia que tirou a vida de dezenas de favelados que moravam sobre dutos de combustível da Refinaria (da Petrobrás).

O nosso encontro com uma névoa tóxica de amônia, proveniente de uma daquelas fábricas de fertilizantes. Naquela tarde ficamos parados na rodovia Piaçaguera e não conseguimos render o turno que sairia às 16 horas. Voltamos para casa para retornar somente no outro dia. O interessante é que houve uma grande movimentação da Defesa Civil para retirar a população dos bairros industriais, com mais de 200 ônibus que transportavam funcionários da Cosipa (Companhia Siderúrgica Paulista). Nada foi noticiado nos jornais. 

E finalmente o risco de desabamento da encosta da serra. Era uma época de terror: tinha acontecido também aquele acidente na Índia (Bohpal), numa fábrica da Union Carbide, que também tinha uma filial idêntica em Cubatão. A Cetesb estava começando a fiscalizar e multar com mais rigor as indústrias que cometiam abusos ambientais, num tempo em que não se dava nenhuma importância para ecologia. Crianças nasciam sem cérebro na Vila Parisi e operários da coqueria na Cosipa eram contaminados com gás benzeno, altamente cancerígeno. Tudo isso aumentava o nosso medo em trabalhar em Cubatão, apesar dos bons salários.


Avenida 9 de Abril nos anos 1970. Publicado na página "Cubatão Antigamente"


Mas Cubatão não era somente trabalho e sofrimento. Tinha vida cultural e incentivo à artes. Alguns anos antes dessa busca pela sobrevivência no trabalho fabril, fazíamos incursões na cidade para participar dos Festivais da Canção promovidos pela Secretaria da Cultura. Eram momentos de diversão, emoção e muita expectativa. Queríamos ser reconhecidos como pessoas e a arte era a melhor forma de expressar esse anseio. 

A foto abaixo é de 1979 no auditório da Câmara Municipal em uma das nossas apresentações  no Festival da Canção . Nosso grupo, Bando de Aves (futuro Manvantara), era composto de oito músico e sempre alguns convidados, além das amigas e namoradas: Mia, Gilberto, Zé Názara, João Mádio, Bill, Maurão, Dadau (Eu) e William. 

Em São Vicente, no início da noite de sábado,  pegávamos o ônibus Cubatão-Cosipa na avenida Antônio Emmerich, que seguia via Matadouro, Casqueiro, cruzando a via Anchieta e, já quase noite, logo estávamos entrando na avenida principal. Era uma paisagem e cenas sempre impressionantes ver no centro uma mistura de residências comuns, comércio urbano e fábricas enormes com seus gigantescos equipamentos industriais iluminados com postes de lâmpadas ultra-potentes e também pelo fogo das grandes torres de queima de gases da Refinaria Presidente Bernardes. Na medida que o ônibus entrava na avenida 9 de Abril, nosso coração acelerava, pois sabíamos que iríamos ter uma noite intensa de emoções e alegrias, mesmo que não fôssemos vitoriosos no concurso. 

Nos intervalos buscávamos um bar ou lanchonete para reabastecer as energias e comentar as performances, nossa e dos concorrentes. Lembro bem que a música mais influente daquele contexto era "Superman, a canção", que foi virada na carreira de Gilberto Gil, do LP  Realce. A banda de apoio do festival abria o evento com essa música. Ficávamos irritados porque o saxofonista era desafinado e estragava o belo solo que havia no disco.  

Não ligávamos para vitórias ou derrotas no certame. As apresentações naquele salão bem iluminado e cheio de ouvintes já era uma vitória e prova do reconhecimento que ansiosamente buscávamos. Os aplausos ecoam até hoje em nossas lembranças. Voltávamos para casa felizes e cheio de sonhos. 


1979, apresentação do Bando de Aves (futuro Manvantara) no Festival de MPB promovido pela Secretaria de Cultura de Cubatão. 


*

TRAGÉDIA DA VILA SOCÓ, UMA TRISTE LEMBRANÇA

MANUEL ALVES FERNANDES
Da Sucursal de Cubatão




Tragédia abalou a região, comoveu o Brasil e foi noticiada no mundo inteiro.


NOVO MILÊNIO. Imagens e uma análise em 1998. Uma das maiores tragédias de Cubatão, senão a maior, foi o incêndio de um oleoduto da Petrobrás que passava sob uma favela, Vila Socó, destruída pelas chamas com a morte de cerca de uma centena de pessoas, em 24/2/1984. O assunto é sempre lembrado, como nesta matéria publicada na edição de 28 de agosto de 1998 pelo jornal santista A Tribuna:

Negligência, imprudência e imperícia. Estas três palavras, que costumam ser consideradas como condições alarmantes e de alto risco pelas normas mais sérias de segurança, talvez expliquem a tragédia da Vila Socó, em Cubatão, e, por analogia, também o incêndio da Vila Fátima, em São Vicente.

Houve negligência das autoridades desde as 18 horas do dia 23 de fevereiro de 1984, em Cubatão, já que elas nada fizeram quando os moradores da Favela de Vila Socó, situada nas margens pantanosas entre os KMs 56 e 59 da Via Anchieta, se queixaram do forte cheiro de gasolina que emanava do mangue. Afinal, era apenas mais um cheiro que saía dessas águas.

Houve imprudência dessas mesmas autoridades - dentre elas dirigentes da Petrobrás que seriam posteriormente condenados pela Justiça - que se faziam de surdas às advertências de dirigentes políticos e representantes dos moradores, de que o oleoduto adquirido da antiga São Paulo Railway estava podre, cheio de buracos, vazando. Exames periciais, solicitados posteriormente pelo Ministério Público e constatados pelo perito Jorge Moreira, comprovaram o apodrecimento e as falhas da proteção catódica que a Petrobrás alegava existir nessa canalização.

Palafitas - Houve imperícia, inabilidade das autoridades municipais e estaduais da época, para resolver os problemas habitacionais decorrentes da extrema penúria social de moradores obrigados a viver, nos tempos modernos, em casebres típicos da segunda fase da pré-história (na primeira, os homens viviam em cavernas), palafitas erguidas sobre estacas fincadas no mangue.

Na madrugada de 24 de fevereiro, enquanto se comemorava o ante-sábado de Carnaval cantando a marchinha Meu Coração Amanheceu Pegando Fogo (gravada por Gal Costa) em um dos clubes da orla, 93 moradores da Vila Socó morriam no incêndio provocado por algum fósforo, vela ou cigarro inadvertidamente lançados (nunca se soube ao certo a origem do estopim da tragédia) sobre o mangue que, naquele momento, era na realidade um imenso caldeirão com uma camada de gasolina que tomou conta de toda a área das palafitas.

Sobreviventes da tragédia contam que, nas partes mais rasas, foi possível sair correndo para os pontos onde havia terra, queimando apenas os pés e tornozelos. O ator de teatro amador Lourimar Vieira morava em um barraco a menos de 30 metros do ponto onde o duto tinha um furo por onde vazou gasolina e alimentou a grande chama (até que queimasse todo o combustível), contra a qual lutaram os bombeiros, durante toda a madrugada.

Mortos - Lourimar saiu correndo e só parou na Igreja Matriz, três quilômetros adiante, para rezar porque tinham conseguido salvar sua mãe.

Pela manhã, os jornalistas se depararam com um saldo dantesco: cerca de 300 barracos queimados. Tocos enegrecidos que haviam sido gente; crianças mortas por asfixia dentro de geladeiras, onde foram colocadas pelos pais na esperança de escapar do incêndio. Casais mortos, abraçados. Uma das vítimas ficou na memória dos jornalistas como uma espécie de símbolo da tragédia, até ser coberta pelo lençol de um bombeiro piedoso: grávida, exibia na pele retesada o contorno, quase desenho em alto relevo, do feto, morto no seu ventre.

Colados ao seu corpo, por ela abraçados, como uma única massa, dois filhos com cerca de cinco anos. Essa imagem fez o então governador Franco Montoro sentir-se mal, quase desmaiar e ser atendido pelos médicos.

A extensão da tragédia, como sempre ocorre, chamou a atenção, finalmente, das autoridades. A Petrobrás trocou todo o sistema de oleoduto, proibiu a construção de barracos sobre a faixa de segurança de passagem da canalização; construiu nove casas para os sobreviventes e indenizou as vítimas. A Prefeitura aterrou o mangue.

Cruzeiro - Hoje não há mais barracos na Vila, que até mudou de nome. É conhecida oficialmente como Vila São José.

A tragédia também contribuiu para que Montoro exigisse da Cetesb e das indústrias a aplicação de um rigoroso plano de controle ambiental e de segurança industrial em Cubatão.

Hoje, 14 anos depois, a realidade da vila é bem mais agradável e segura. Quem passa pela Via Anchieta não imagina a proporção da tragédia. Porém, no jardim próximo ao posto da Polícia Rodoviária, uma cruz de madeira se destaca, cercada por um muro onde há uma placa de bronze, com a seguinte inscrição:

Cruzeiro da Vila São José - da vontade política da administração municipal e da determinação desta comunidade, a Vila Socó, de palafitas e insegurança, transformou-se na Vila São José. Nossas homenagens àqueles que, em 24 de fevereiro de 1984, com suas vidas, fizeram renascer a fé e a esperança de uma vida melhor.

De Kátia Cilene da Silva, uma criança; a Manoel José dos Anjos, um trabalhador, segue-se a relação de 89 mortos. Porém, oficialmente, registraram-se 94: muitos não foram identificados, ficaram anônimos, calcinados pelo fogo.


AS GREVES DOS METALÚRGICOS NA COSIPA


Reflexo do movimento sindical e político da Polônia no final da Guerra Fria e das inquietações sindicais do ABC Paulista, as greves dos metalúrgicos da COSIPA- Companhia Siderúrgica Paulista, em Cubatão, marcaram uma época de transformações no mundo e no Brasil. Por ser uma empresa de majoritariamente de capital estatal, cuja maioria dos dirigentes desse período se opunham ao regime militar, as greves da COSIPA destoavam do silêncio predominante nas empresas privadas do polo petroquímico do Cubatão, incluindo a Refinaria-RPBC, que ofereciam melhores condições salariais aos funcionários fixos e relativamente aos salários pagos pelas empreiteiras que contratavam funcionário terceirizados. 

1ª Greve de 1984 (Ocupação da Usina) de 28, 29 de fevereiro e 01 de março de 1984.

2º Greve de 1984 (de 15 horas) de 19 de setembro até 20 de setembro de 1984.

3ª Greve de 1985 (Ocupação e Conflito na Aciaria) de 05 de novembro até 07 de novembro de 1985, nesta greve somente não houve morte porque não seriam poucos os 
mortos de ambos os lados. 

4ª Greve de 1986 (Manutenção) de 23 de setembro até 26 de setembro de 1986.

5ª Greve de 1987 (Tomada da fábrica de oxigênio) de 11 de fevereiro até 16 de fevereiro de 1987, quase nada faltou para uma grande explosão da fábrica de oxigênio.

6ª Greve de 1987 de 01 de dezembro até 12 de dezembro de 1987, a greve que demite diversos ativistas, após cuidadosa seleção.


Imagens e in formações : Sindicato dos Metalúrgicos da Baixada Santista. 


Recorte de notícia do jornal A Tribuna incluído num powerpoint do sindicado sobre as greves. 





Afastamento do funcionário Aparecido Lino do Prado comunicado por telegrama  em 10 dezembro de 1987, entregue em sua residência, na rua Alice Machado de Azevedo, Cidade Náutica, São Vicente. 


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PARQUE ESTADUAL ITUTINGA-PILÕES

VISITA DOS APRENDIZES DO CAMP RIO BRANCO (SÃO VICENTE) 

FOTOS: DALMO DUQUE DOS SANTOS: JULHO DE 2018















































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